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1 LEITURAS DO ANIMAL HUMANO SOBRE O NÃO HUMANO:

1.3 Plumwood: a estrutura lógica do dualismo

1.3.2 Descartes e o dualismo mente / natureza

Segundo Plumwood (2003), a oposição dualística humano / natureza desenvolveu-se historicamente através das seguintes etapas: 1- construção da identidade humana normativa (ideal ou melhor) como mente ou razão, exclusão ou inferiorização dos demais seres humanos e características não humanas, consideradas não pertencentes ou não essenciais ao humano; 2- construção de mente ou razão como exclusivo e oposto à natureza; 3- construção da natureza como inconsciente (irracional).

Para a filósofa, os dois primeiros passos foram realizados por Platão, o último é de responsabilidade de René Descartes, o qual, fundamentado nos passos anteriores, intensifica e consolida o grande abismo entre o humano e a natureza no ocidente, interpretando a identidade humana em contraste e em exclusão radical com a natureza. Para essa reelaboração da tradição racionalista, não é necessária a presença da natureza, nem dos animais não humanos, para que as características da mente existam. A mudança é sutil, mas devastadora: na primeira concepção, a razão é negada à natureza e atribuída ao humano; na segunda, a natureza, de pronto, é considerada como irracional.

A visão mecanicista de mundo de Descartes foi crucial à manutenção do dualismo humano / natureza, pois, além de manter, há a ampliação e o aprofundamento do abismo entre as identidades (humano / natureza), conforme explanação da autora. Antes, em Platão e Aristóteles, a identidade humana, que a autora chama de identidade mestre, não se referia à totalidade dos humanos, mas apenas a um seleto grupo em oposição dualística à natureza; os escravos e a grande maioria das mulheres, por exemplo, eram pouco diferentes dos animais não humanos.

Noutras palavras, Platão e seu discípulo Aristóteles viam os humanos pertencentes a vários tipos, cada um deles adaptado a um tipo de vida; nem todos os humanos eram associados à razão e separados da natureza, apenas os melhores, os mais elevados. Platão defendia o domínio da natureza interna para alçar à identidade humana; Aristóteles, ainda segundo a autora, escalonava os seres, de modo que as plantas serviam aos animais e os animais aos humanos. Em ambos, ressaltemos, o que os autores chamam de humanos não abarcam a totalidade. Com Descartes, conforme Plumwood (2003), há a generalização da separação das esferas de humano e de natureza e o humano julga ter alcançado o domínio pleno da natureza através da ciência.

Plumwood (2003) afirma que Platão não atribuía ao humano a tarefa de controlar a natureza, mas apenas o controle e domínio da natureza interna por meio da disciplina do corpo, das emoções e dos sentidos. Ao humano cabia ultrapassar a esfera da natureza, romper os laços com o lado dito inferior e alçar à razão. A autora afirma, ainda, não encontrar no pensamento platônico a ideia de controle e poder do humano sobre o mundo natural externo, mas, sim, o entendimento desse mundo como uma esfera inferior de pouco interesse.

Citando John Passmore, para o qual o surgimento da tecnologia proporciona ao humano, no século XII, a confiança em poder dominar a natureza, Plumwood (2003) afirma que Descartes espelha essa visão. Para ela, Platão via a natureza interna como prisão, enquanto Descartes concebia a natureza externa como cera, a qual é passível de modelagem, e como máquina, submetida ao controle. Assim, com Descartes, há uma concepção estreita de natureza associada ao instrumentalismo e à perspectiva mecanicista (controle).

Em decorrência dessa nova visão, a natureza passa a ser vista, conforme Plumwood (2003), como falta, nula, passiva, inerte, não criativa, a ação advém de fora. Ela é apenas matéria, ou seja, carente de características relacionadas à mente ou pensamento. O humano é que a direciona. O reino humano, pois, é o reino da liberdade,

enquanto a fixação e a determinação são atribuídas à natureza. A natureza é desprovida de valor próprio, e o que possivelmente venha a ter é decorrente da ação da consciência humana.

Essa visão da natureza, afirma Plumwood (2003), está em estreita ligação com o instrumentalismo, ou seja, a natureza está disposta como fonte de suprimento às necessidades humanas. Uma vez que é desprovida de agência, não pode impor restrições ao tratamento humano; logo, é vista como meio às finalidades humanas. Tal visão nasce em paralelo à ascensão do capitalismo, segundo a autora, para o qual é conveniente conceber a natureza nesses termos, visto que pode ser tomada enquanto recurso e mercadoria, sem restrições morais ou sociais.

É com Descartes, ainda, que temos a associação do dualismo humano / natureza com mente / corpo, criando, conforme disserta Plumwood (2003), um novo dualismo mente/ natureza. Novamente, a problemática não reside na distinção, mas, segundo a filósofa, no tratamento hierárquico conferido, assim como a presença das demais características do dualismo (negação, exclusão radical, definição relacional, instrumentalização e homogeneização). Herdeiro de Platão, Descartes, segundo a filósofa, vê o corpo de forma desvalorizada, negando a dependência dele e acrescentando o elemento consciência (mente); a mente leva à consciência ou ao pensamento.

Nesse raciocínio, argumenta Plumwood (2003), as características como percepção, sensação e emoções, as quais parecem envolver o corpo, deveriam ser compartilhadas com os demais animais. A solução encontrada por Descartes, segundo a autora, foi negar aos animais não humanos o status de consciência e excluir radicalmente mente e corpo. Assim, sensações, para o mecanicista, são modos de pensamento e são construídas por duas partes: modo da matéria, externo, impressão nos órgãos sensoriais; e modo da mente, interno, consciência dessa impressão. A autora explica que a lógica de Descartes considera apenas a percepção interna como sensação de fato, a qual se efetiva no pensamento. A partir dessa polarização de corpo e mente, bem como o pressuposto anterior de ausência de pensamentos (racionalidade) nos animais não humanos, a conclusão é de que os animais não humanos não possuem sensação. O corpo, para Descartes, está associado ao lado dicotômico da natureza, ou seja, não possui agência, mas é dirigido pela mente, assim como o humano coordena a natureza. Plumwood (2003) chama esse cenário de “sonho de poder” e admite a necessidade de despertarmos dele.

Buscando esse despertar, Plumwood (2003), além das alternativas traçadas a cada uma das características do dualismo, conforme mostramos, propõe o reconhecimento da continuidade e da diferença de maneira não hierárquica. Por continuidade, Plumwood (2003) entende a noção de não se ver separado, apartado dos outros e da natureza, mas isso não implica a dissolução da diferença notadamente existente. Segundo a autora,

O dualismo humano/natureza distorceu nossa compreensão da semelhança e da diferença humana em relação à esfera da natureza, assim como o uso de critérios que supostamente distinguem os humanos e a esfera mental. Quando se descarta o marco da descontinuidade, podemos ver que a principal característica mental e do que é supostamente distinto do humano não endossam uma imagem na qual a natureza é diferente, mas sim uma imagem na qual a natureza pode ser reconhecida como semelhante ao humano; a diferença humana, como de outras espécies, aparece sob a forma de parentesco, formando uma rede de continuidade e diferença. Necessitamos entender e afirmar tanto a alteridade como a união com a terra30. (Ibid., p.

137, tradução nossa).

Rever nosso relacionamento com a natureza, bem como com os animais não humanos, é pauta urgente, dada a atual crise ecológica. Além disso, há que se compactuar com a visão proposta; em outras palavras, buscar a recuperação de um relacionamento com a natureza anterior à formação da identidade humana ocidental, tal qual a concebemos hoje. A revisão das identidades (humana e não humana) também é ponto dessa nova ótica, pois, como vimos, essas identidades foram construídas sob processos artificiais.

Plumwood (2003) ressalta a necessidade de o humano reconhecer-se como parte da natureza e, além disso, admitir o ponto de vista de outros seres da natureza, cujas necessidades devem ser respeitadas e reconhecidas, assim como as nossas. Noutras palavras, a autora propõe um relacionamento com a natureza e com as outras espécies em termos éticos e políticos, considerando-os moralmente. Essa proposta, como vimos, coincide com o pleito da Ética Animal e de seu principal representante, Peter Singer, bem como com o reconhecimento de que os animais não humanos possuem uma perspectiva ante os humanos, defendida por Jacques Derrida.

30 Human/nature dualism has distorted our view of both human similarity to and human difference from

the sphere of nature, and the use of criteria which are supposed to distinguish the human and the mental sphere. When this framework of discontinuity is discarded, we can see that the major marks of the mental and of what is supposedly distinctive of the human, do not support a picture in which nature is alien but rather one in which nature can be recognised as akin to the human; human difference, like that of other species, appears against an overall background of kinship, forming a web of continuity and difference. We need to understand and affirm both otherness and our community in the earth. (PLUMWOOD, 2003, p. 137).

Por fim, Plumwood (2003) propõe, para essa nova harmonização com a natureza e com as demais espécies, que as necessidades de um ser não eliminem nem se sobreponham às do outro. Para isso, concebe o “eu” em relação com o outro. Esse novo “eu” relacional se pautaria no respeito, na benevolência, no cuidado, na solidariedade e na amizade e, como já citamos, na concepção ética, moral e política em uma perspectiva não hierárquica. Mais uma vez, a proposta de Plumwood converge com a proposta de consideração dos animais não humanos como alteridade, de Derrida, e com a proposta de igualdade interespécies e igual consideração de interesses, de Singer.

A literatura que não se resume ao que é próprio da sua linguagem, conforme defende Derrida (2014, p.64), mas, pelo contrário, necessita de outros discursos (históricos, filosóficos, etc.), não se confundindo nem se resumindo a eles, surge como “[...] potencialmente mais potente [...]” (DERRIDA, 2014, p. 62) diante deles e diante da discussão em questão, o relacionamento interespécies, além do antropocentrismo, uma vez que tudo pode dizer (DERRIDA, 2014, p. 22). Ou seja, como Derrida pontuou em O animal que logo sou (a seguir), cabe à literatura imaginar a subjetividade animal.