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1 LEITURAS DO ANIMAL HUMANO SOBRE O NÃO HUMANO:

1.3 Plumwood: a estrutura lógica do dualismo

1.3.1 O dualismo platônico

Para Plumwood (2003), a origem do dualismo humano / natureza remonta aos primórdios do racionalismo na cultura grega, com a filosofia platônica, na qual houve o casamento da razão com a dominação, bem como a associação da natureza com o feminino. Assim, a autora argumenta que algumas leituras de Platão como um precursor do feminismo e defensor das mulheres, bem como ambientalista, são errôneas.

No que concerne à suposição de Platão como um ambientalista, Plumwood (2003) afirma que a natureza é desvalorizada por Platão. Assim, a autora elenca todos os sentidos associados à natureza na filosofia platônica, quais sejam:

1- corpo;

2- paixão, emoção;

3- o mundo visível (sentidos); 4- animal;

5- selvagem, paisagem e seres não humanos; 6- escravo, bárbaro;

7- feminino (matriz primordial), natureza reprodutiva; 8- reino das mudanças, do vir-a-ser, vida biológica; 9- matéria excluída do cosmos, como caos; 10- cosmos, ordem universal (natureza) 29.

(Ibid., p. 80, tradução nossa).

Segundo a autora, apenas no último sentido, natureza como a ordem racional do universo, contrastando com o caos primitivo, é, aparentemente, conferido um sentido positivo ou superior à natureza; nos demais, ela é tida por inferior e dualizada com a razão. Plumwood (2003) argumenta que a natureza como cosmos (sentido positivo) está ainda subscrita pela razão, pois é o princípio racional que ordena e subjuga as necessidades materiais do caos (natureza primária).

Dessa forma, não temos a superioridade da natureza, mas, ainda, a da razão. A autora explica que a transformação de caos em cosmos de Platão se relaciona com um conjunto de outros pares dualísticos (mestre / escravo; homem / mulher; alma / corpo), pois o processo de conversão de caos em cosmos representa o modelo de reprodução no que concerne à dominação.

29 Nature as 1- body / 2- passion, emotion / 3- the visible world (senses) /4- animal / 5- wild, non-human

landscape and beings / 6- slave, barbarian / 7- feminine (primal matrix), reproductive nature / 8-realm of changes, of becoming, biological life / 9- matter as excluded from cosmos, as chaos / 10- cosmos, universal order (Nature). (PLUMWOOD, 2003, p. 80).

Plumwood (2003) conclui que a inferiorização da natureza está relacionada à inferiorização de mulheres, bem como de escravos e animais não humanos, e aos demais aspectos da vida associados às mulheres. Platão, conforme Plumwood (2003), concebe a hierarquia racional implícita em ordens superiores e ordens inferiores do ser, o que leva a relações sociais de subjugação. Assim, a relação entre razão e natureza, na perspectiva platônica, segundo a autora, é retratada como de controle e dominação, logo, corpo, paixões devem ser controlados e são uma espécie de prisão à alma.

A autora afirma que o logos de Platão expressa a perspectiva do mestre, o qual forma a parte superior das metáforas/dualismos e demais exclusões a ela relacionadas, impondo ordem à dita desordem presente nos marginalizados no contexto de classe, raça, gênero e espécies. Plumwood (2003, p. 89) diz que o pensamento de Platão sobre a natureza, especialmente o concebido na obra Timeu, antecipou alguns aspectos do Cristianismo, mas também influenciou a sua formação, bem como o pensamento de vários filósofos sucessores, tais como: Aristóteles, Plotino, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino.

Além disso, influencia, consideravelmente, a construção da identidade humana, o significado de morte e a relação alma-corpo. Para Platão, conforme a autora, corpo, sentidos, emoções, paixões, desejo e natureza pertencem ao reino da aparência, enquanto a alma é divina e imaterial, associada às formas ou realidade. O mundo das formas ou realidade está associado ao que é imutável, imaterial, incorruptível e atemporal, daí a associação com as ideias e à razão. Já o mundo das mudanças, das aparências, associa-se aos sentidos, à vida biológica e à natureza. O ser verdadeiro, em Fédon, de Platão, está associado à razão, à alma, enquanto a animalidade, emotividade e natureza, às formas do corpo. Corpo esse que é um obstáculo, uma espécie de prisão à alma, ao alcance do verdadeiro ser, daí a necessidade e o desejo da morte, pois representa o escape do corpo, das limitações.

Segundo Plumwood (2003, p. 91), Platão antecipa o dualismo humano / natureza em termos de dualismo mente / corpo. Na correta relação platônica entre corpo e razão, não apenas há a dominação e a disciplina, mas também distanciamento, e essa é a descrição da melhor vida. A natureza, na filosofia platônica, conforme descreve Plumwood (2003), é uma espécie de ensaio do lugar perfeito no qual a alma habitará tão logo se desprenda do corpo; tudo o que nela é encontrado é considerado como imperfeito e corruptível, o que justifica o tratamento instrumentalizado a ela dirigido.

Ecologicamente, essa visão implica, conforme a autora, a concepção do homem como celestial, não pertencente à natureza, a qual é um lugar de passagem. A busca humana é a busca do distanciamento da natureza, alcançada em sua totalidade na morte, na qual há a realização da separação e da negação da dependência e a reconciliação com a ordem divina. Em síntese, a autora classifica a filosofia platônica como desvalorizadora da natureza, como profundamente antiecológica.

A construção dualista em seus vários pares, conforme Plumwood (2003), é representada ainda na metáfora da caverna de Platão, em sua obra República. A jornada para fora da caverna (descrita por Platão de forma similar ao útero, conforme a autora) equivale ao deslocamento do mundo das aparências para o mundo das formas; da natureza à razão, da natureza à identidade humana, entre outras. Na caverna, segundo a autora, quedam-se todos os elementos associados à natureza, e o deslocamento para fora representa tanto a inferiorização quanto a negação da dependência do par dualístico, a qual, conforme concepção contemporânea, é impossível.

No que concerne à visão dos animais não humanos, decorrente da filosofia platônica, Plumwood (2003) explica que eles são concebidos como moralmente carentes e inferiores. Assim, a autora aponta que o filósofo caracteriza os animais não humanos como inferiores correlacionando sua suposta distância do logos à fisiologia dos seus corpos, que os aproximam da terra, a exemplo dos quadrúpedes e répteis, sendo estes últimos os mais carentes de razão.

Retomando a centralidade da morte para a filosofia de Platão, Plumwood (2003) a correlaciona com a guerra e o seu papel na sociedade grega, que estava associado à razão. A sociedade grega era escravocrata, dependia da guerra tanto para ser independente como para manter seus meios de produção, o que é totalmente plausível com a sociedade ideal imaginada por Platão, na República, para a qual a guerra era vista como essencial. Ainda conforme explicação da autora, a educação, os demais aspectos sociais da Grécia e até as representações artísticas eram voltados à valorização da morte.

Assim, Plumwood (2003, p. 93) cita Nancy Hartsock, para a qual o herói grego representava o espírito, a honra e o domínio da cultura sobre a natureza, pois ele preparava sua vida para arriscá-la em lutas, demonstrando controle e desconsideração pelo corpo e emoções. Já os sobreviventes do confronto, os escravos, merecidamente tinham seus destinos associados com a ordem inferior da natureza. Logo, a identidade do mestre está aqui associada à identidade sobrenatural, à vida perfeita vinculada à

morte, como vimos, à separação do corpo e aos seus correlatos (mulher, escravo e animal não humano).

Por fim, Plumwood (2003) complementa que o sentido da morte, para a filosofia platônica e cristã, está atrelado ao sentido da vida humana em outro lugar além da terra e da natureza, e está acessível a alguns humanos que ascenderam ao mundo das formas e do céu. Essa salvação está além da natureza e destinada apenas à espécie humana. A morte, início da verdadeira vida, então, está associada à ordem espiritual e em oposição à ordem da natureza.

Plumwood (2003) afirma que essa associação da morte enquanto descontinuidade com a natureza não é mais possível na modernidade, sobretudo após Friedrich Nietzsche, o qual dimensionou a ausência de significados fora do homem. Ainda conforme a autora, a identidade humana associada à ordem divina, na modernidade, foi desfeita; todavia, ela não reorganizou a identidade humana enquanto continuidade da natureza, parte do todo. Uma identidade ecológica, conforme defende a autora, deveria resolver essa pendência e rearticular a não separatividade ou continuidade do humano com a natureza. É esta identidade que buscamos e defendemos neste trabalho.