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2 OS ANIMAIS NA LITERATURA: ENTRE A ÉTICA E A

3.1 Rosa Ambrósio: Uma bruxa seduzindo o tempo

3.1.1 A Rosa e o Gato

Quanto à questão relacional com o animal não humano, poucos são os momentos (apenas nove passagens) em que essa narradora se reporta ao seu gato, Rahul. Três delas correspondem a descrições do comportamento do gato, associadas, sutilmente, a um reconhecimento da senciência animal (SINGER, 2010), no que concerne à capacidade dos animais não humanos de possuírem expressões de sentimentos e reações corporais normalmente atribuídas ao animal humano: “― O Rahul estava miando tão triste...” (TELLES, 2010, p. 20, VA); “Ora, a fidelidade! Fidelidade é qualidade de cachorro, ele [Diogo] disse rindo e latindo, au! au! E miou em seguida quando o Rahul se assustou e veio ver o que estava acontecendo, Miau!” (Ibid., p. 189, VA); “[...]a saliva engrossando na boca, acontece a mesma coisa com os bichos, Rahul começa a salivar e lamber o focinho quando está com medo. Na manhã em que Gregório [...] foi embora, [...] olhei para o Rahul que estava na sua posição de esfinge. Lambia o focinho.” (Ibid., p. 200, VA).

Uma descrição referente ao que entende, em sua concepção, ser comportamento e atributo da espécie gato em comparação com as atitudes dissimuladas do seu amante, Diogo:

Ele está voltando. Sem a menor pressa, no estilo que faz lembrar o Rahul quando finge que não quer comer e então disfarça. Mas assim que se pilha sozinho, come vorazmente. E mesmo quando está sozinho é dissimulado, como se na vasilha não estivesse a carne moída mas a presa ainda viva. É o jeito dos felinos, mas se ele telefonou é porque vai voltar e a volta começou no instante em que ligou e pediu notícias. (Ibid, p. 188, VA).

Dois trechos que, igualmente, referenciam o comportamento do gato, bem como prenunciamo que se confirmará na voz narrativa de Rahul; seu esposo, Gregório, tinha consciência da alteridade absoluta que esse outro era, daí a relação estreita que haviam firmado: “Vejo Rahul se lambendo debaixo da mesa, também ele achava o Gregório deslumbrante.” (Ibid, p.156, VA). “Rahul tinha pulado na mesa e se esfregava nele, tinha paixão pelo Gregório, todos tinham paixão pelo Gregório. Com a ponta da espátula acariciou a cabeça do gato para acalmá-lo, só ele sabia acalmar esse gato quando entrava em crise.” (Ibid., p. 186, VA).

Um registro de Rosa Ambrósio bêbada pisando acidentalmente em seu gato ao procurar o seu copo contendo seu vício, o álcool: “Quando Dionísia entrou na cozinha, fui descalça procurar depressa e furtivamente o copo que deixei em algum lugar, onde?... Pisei em Rahul que saiu gritando, achei!” (Ibid., p.114, VA).

E, por fim, duas passagens em que considera a presença do gato e da negra Dionísia como a companhia que restou: “Enfim, não interessa, restamos nós nesta coluna do edifício, uma preta velha. Um gato velho e eu. Rosa, Rosae.” (Ibid., p.53, VA); “A vaidade. A soberba. Só vaidade, montei no meu carro de nuvens e desfechei meus raios. Rua! eu disse. Ele foi. Fiquei sozinha com minha agregada negra. Com meu gato.” (Ibid., p. 24, VA).

Dionísia e o gato Rahul, juntamente com Lili e a analista Ananta, são os espelhos em que Rosa Ambrósio pode se mirare alcançar a alteridade. Noutras palavras, formam a rede das atuais relações da atriz, pois através desses outros pode melhor alcançar a si. Vera Maria Tietzmann Silva (2009, p. 161) afirma que “Praticamente em grau de igualdade no quadro das relações afetivas de Rosa Ambrósio situam-se o gato Rahul e a empregada Dionísia, ambos companheiros e confidentes de longa data da protagonista.”

Entretanto, ao mesmo tempo em que são, gato e negra, companheiros e confidentes, a atriz, em outros momentos, nega-lhes essas condições, talvez porque não osconsidera um espelho à sua altura: “Sei que é um puta clichê este mas a solidão é insuportável nesta encrenca dos diabos que é a vida, o mundo. O homem precisa sim do

outro porque mesmo atormentando e atormentado exige se olhar no espelho mais próximo que é a sua medida.” (TELLES, 2010, p. 189, VA).

Essa postura corresponde às características do dualismo, conforme Plumwood (2003), especialmente à “negação”, visto que não há reconhecimento da dependência que existe entre os seres, negando-lhes seu valor. Corresponde, ainda, à “exclusão radical”, pois a partir das características que toma para si e nega ao outro, encara-lhe como inferior, daí o sentimento de solidão da atriz.

A postura da atriz soa paradoxal39, pois, ao mesmo tempo em que a voz narrativa da atriz aparenta não dar muita ênfase e importância à presença do animal não humano em seu escopo de relações e vivências cotidianas, haja vista a quantidade e contexto das referências ao gato na fala de Rosa, a voz de Rahul, conforme veremos, confere maiores detalhes à relação, trazendo, inclusive, as matizes compassivas ao animal não humano da atriz.

Em síntese, Rosona vê o animal não humano (gato), conforme assevera Derrida (2002), mas não se sabe vista por ele, daí a sua subjetividade não vir à tona na voz narrativa da atriz, pois ela se sente superior a Rahul, mas, ainda assim, assume o papel de protetora dos animais.

Daí a condenação do especismo, no que concerne à utilização dos animais não humanos para entretenimento nas touradas, bem como a preocupação com o bem-estar animal, se faz presente na fala da atriz Rosa Ambrósio. Ao rememorar o convite de seu amante, Diogo, para viajar à Espanha, revela sua compaixão aos animais não humanos violentados nas touradas: “Vamos fazer uma viagem? Coisa rápida que a hora é de trabalho, Madri, Barcelona, você compra seus perfumes, eu vou às touradas. — Tenho pena do touro.” (TELLES, 2010, p. 109, VA).

A compaixão de Rosona também é dispensada a Rahul, adotando-o quando o encontrou só na rua, episódio esse que vem à tona na voz narrativa do gato. A própria narrativa do gato, trazendo à tona maiores informações à análise mais precisa do relacionamento entre a Rosa e o felino, já é um índice do não se saber visto pelo animal não humano da atriz.

Essa posição da personagem Rosa Ambrósio, no que concerne ao relacionamento com o gato (animal não humano), pode ser explicada a partir da

39O gosto pelo paradoxo, pelo ambíguo, é confessado nAs horas nuas pela atriz: “Ah! se a gente pudesse se organizar com o equilíbrio das estrelas tão exatas nas suas constelações. Mas parece que a graça está na meia-luz. Na ambigüidade.” (TELLES, 2010, p. 18, VA).

localização complexa da atriz na rede de dualismos, traçadas por Plumwood (2003). A personagem concebe-se branca, racional, humana, inscrita no polo da cultura, visto que é civilizada e burguesa, traços associados ao polo superior do dualismo, ao mesmo tempo que possui traços do polo inferior dos dualismos históricos: é mulher, detém profunda devoção ao corpo, está inscrita no polo da natureza, dada a sua capacidade de gerar vidas, e é atriz, em oposição dualística a outras profissões associadas ao polo superior da relação dualística. Daí também Dionísia, composta de traços considerados como inferiores na relação dualística (PLUMWOOD, 2003), mais facilmente ver e ser vista pelo gato Rahul, conforme melhor discutiremos adiante.