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2 OS ANIMAIS NA LITERATURA: ENTRE A ÉTICA E A

3.2 Rahul: O gato narrador

3.2.3 O gato e os humanos: os matizes da relação

No que concerne à relação entre o animal humano e não humano, percebe-se, através da voz narrativa de Rahul, que essa relação varia conforme a personagem humana com que o gato convive. Gregório, a personagem mais amada por Rahul, prefigura um relacionamento interespécies fora da lógica antropocêntrica, especista e dualista. Gregório vivencia o princípio de igualdade de consideração de interesses, proposto por Singer (2010), e se sabe visto pelo animal não humano, conforme assinalou Derrida (2002). Essa personagem concebe Rahul não como uma presença esvaziada, mas dotada de subjetividade. Gregório se vê em contiguidade com o animal não humano e reconhece sua diferença em relação a essa alteridade de maneira não hierárquica (PLUMWOOD, 2003), daí o felino lhe devotar amor. Gregório integra o segundo tipo de discurso, conforme classificação de Derrida (2002), e em situação de poesia, reconhece o animal não humano que lhe olha.

Isso se expressa em todas as cenas amorosas já descritas e analisadas e ainda nessa, quando Rahul relembra a atitude respeitosa de Gregório: “[...] tomando todo o cuidado para que eu não respirasse a fumaça do seu cachimbo. E aquela fumaça eu ama- va. Quando morreu, muitas vezes entrei no seu escritório para reencontrar entre os

livros e objetos um resquício ao menos do cheiro de fumo.” (TELLES, 2010, p. 129, VR). Ou, ainda, quando discursivamente Rahul se coloca ao lado de Gregório e entende essa relação como contígua, a ponto de poder utilizar a expressão a gente, conforme vimos em citação anterior.

O suicídio de Gregório, como vimos, é motivo de sofrimento para o gato Rahul. Na falta de seu humano amado, é com Dionísia que mais se afeiçoa. Essa personagem não só é responsável pelos cuidados materiais do gato, já que Rosa Ambrósio, depressiva, se exime de tal tarefa, como também segue atenta ao comportamento do animal, expressão do seu cuidado por ele: “— Coitado do meu gato! É dor de ouvido?, perguntou Dionísia que veio ver por que eu miava assim. Começou a fazer uma massagem enérgica nas minhas orelhas. Entreguei-me às suas mãos com cheiro de polidor de metais.” (Ibid., p. 122, VR).

Sabedor da ameaça de Diogo, que dizia que, se piorasse, daria ao gato umas pílulas para gato em crise, Rahul muda o comportamento, para o contentamento de Dionísia: “Comendo com apetite as papas leitosas que Dionísia despejava na minha vasilha, cheguei até a brincar com o novelo do seu tricô, como fazia quando jovem. Ela animou-se. — Ele sarou, graças a Deus.” (Ibid., p. 121, VR). Cabe lembrar que Dionísia ― mulher, negra e de pouca escolarização ― partilha com Rahul, enquanto animal não humano, a posição inferior no polo da relação dualística, daí a identificação de Rahul com Dionísia: “A Dionísia que me oferecia leite teve outra vida antes? E que vida foi essa para retornar com a pele negra. E ainda por cima, mulher. [...] não sei o que significa neste mundo uma preta pobre. Feia. E um gato sem raça.” (Ibid., p. 122, VR).

Quanto a Rosa Ambrósio, a voz narrativa de Rahul confirma-lhe o aspecto paradoxal da personagem: “É falsa e é verdadeira. Café com leite, impossível separar o leite.” (Ibid., p. 141, VR). O relacionamento do gato com a atriz, na voz de Rahul, ganha mais detalhes. É pela sua voz que ficamos sabendo de seu aspecto protetor e compassivo, a exemplo da cena de adoção. Sabemos também do quanto o gato partilha de sua intimidade e vemos Rosa Ambrósio, antes da depressão, preocupada com a higiene e alimentação do animal não humano. Assistimos, por fim, Rahul acompanhando os porres, destinando, inclusive, sua presença e preocupação ante a situação.

Por outro lado, a presença tanto de Rahul como de Dionísia, as que restaram, apesar de necessárias, não recebem a devida valoração: “Na hierarquia dos valores Ambrosianos entrei em primeiro lugar na condição de um bicho no meu degrau ínfimo.

Agora chegara a vez da escrava.” (Ibid., p. 135, VR). Rosona vê o animal não humano, mas não se sabevista por ele, não alcança sua subjetividade, considera-o muito mais uma companhia confidente que um presença dotada de um ponto de vista. Conforme Silva (2009, p. 166), é um ser mudo, que escuta a atriz com atenção e sem interrupção; um público considerado passivo.

Num outro extremo, temos a personagem Diogo, que estampa o especismo (SINGER, 2010), o antropocentrismo, a violência contra o animal não humano, o dualismo (PLUMWOOD, 2003). Diogo representa, ainda, a primeira situação de saber acerca dos animais não humanos postulada por Derrida, aquela em que não leva em consideração os animais não humanos nem temática, nem teórica e nem filosoficamente, não encara a alteridade radical do animal não humano (DERRIDA, 2002).

O amante da atriz violenta, verbal e fisicamente, o gato Rahul: “Ele me pegou pelo rabo, me sacudiu e me atirou longe, Seu filho-da-mãe!” (TELLES, 2010, p. 63, VR) e tem atitudes desrespeitosas para com o gato: “― Com crise outra vez, gato? ― ele perguntou assim que me viu. Foi buscar gelo. Na volta espargiu no meu focinho um pouco da água gelada do balde.” (Ibid., p. 125, VR). Tais ações resultam na antipatia de Rahul por Diogo, chegando a mijar-lhes os sapatos engraxados por Dionísia: “Tinha engraxado esses sapatos mas onde, onde os deixara? Eu sabia. Cheguei antes e mijei em cima deles.” (Ibid., p. 126, VR). A postura de Diogo, em síntese, prefigura tudo que buscamos, através deste trabalho, questionar.

À Cordélia, Rahul destina a indiferença, talvez porque não mantenha, com essa personagem, relação estreita, daí ele se esquivar, nas tentativas de afago da filha da atriz:

Na despedida, Cordélia me viu, tentou me acariciar. Fugi para debaixo do canapé. Ficou correndo com os dedos pelo tapete, imitando um camundongo, Ô, gatão! você não me ama mais?

— Acho que ele só amava o seu pai.

O camundongo parou de me atazanar. Os dedinhos finos, de unhas com verniz incolor, foram se fechando. Afastou-se mas logo voltou eufórica. (Ibid., p. 92, VR).

Por fim, há a personagem Ananta, que Rahul não tem relação íntima e cotidiana, mas que toma cena na voz de Rahul sempre que a atriz se refere à sua analista, ou quando assiste às consultas. É, ainda, na voz narrativa de Rahul que a

identidade de médica, outro traço significativo da misteriosa terapeuta, na ocasião da morte de Gregório, é revelada.