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A descoberta do princípio formal-normativo complementar C: mediação de moralidade e eticidade

O PROJETO FILOSÓFICO E SUA RELEVÂNCIA PARA A ARQUITETÔNICA DA ÉTICA DO DISCURSO

3.4 A compreensão filosófica da ética do discurso

3.4.3 A descoberta do princípio formal-normativo complementar C: mediação de moralidade e eticidade

Para o tratamento da aplicação da ética do discurso quando ainda não estão dadas as condições históricas de aplicabilidade do princípio (U), Apel busca fundamentar um princípio formal normativo que seja possível mediar moralidade e eticidade, assim como, o possível progresso na história da cultura.

Apel se orienta, ainda, pela reflexão sobre o princípio ético que em sua formulação o considera abstrato e que pode ser superada mediante reflexão pragmático- transcendental sobre as pressuposições existenciais de nossa argumentação. Dessa forma tem-se, então, que superar a abstração que ainda subjaz na formulação do princípio (U), em que se prescindiu da pré-estrutura existencial da situação real em que atua aquele que argumenta.

Como vimos, já no O a priori da comunidade de comunicação e os fundamentos

da ética, Apel parte de uma constelação dialética no a priori das condições de

comunicação que revela três momentos. Todo aquele que argumenta antecipa: 1) o pressuposto da comunidade ideal de comunicação, antecipado contrafaticamente; 2) o pressuposto da comunidade real de comunicação, em que trata das condições históricas e contingentes de uma situação real de fala, na qual somos socializados e, como terceiro ítem,

o reconhecimento da diferença de princípio entre a comunidade ideal e a real, bem como, a obrigação moral de ajudar a superar esta diferença.

Portanto, todo aquele que argumenta em sério antecipa contrafaticamente as condições de uma situação ideal de fala e, assim, descobre, necessariamente, um princípio

normativo de universalização (U) da ética do discurso, não só que este princípio deveria ser

aplicado na solução dos conflitos de interesses no mundo da vida, não só que os interlocutores têm a mesma co-responsabilidade na identificação e solução dos problemas do mundo da vida abertos ao discurso, mas, também, um princípio moral-estratégico

complementar (C) para fundamentação de uma ética da responsabilidade em que se

assegura a passagem da aplicação histórica da ética do discurso.

De modo esquemático, considera-se que todo argumentante em sério antecipa: 1) contrafaticamente condições de uma situação ideal de fala ou de uma comunidade ideal de comunicação. Portanto, reconhece necessariamente o princípio procedimental de fundamentação de normas (U); 2) pressupõe, também, as condições históricas e contingentes da situação real de fala ou comunidade real de comunicação (a priori da facticidade). Visto que os pressupostos reais e contingentes nunca coincidem com os pressupostos ideais, então, aquele que argumenta tem que pressupor também a diferença radical entre condições reais e as ideais; 3) Se aceitamos, já sempre, as condições ideais antecipadas da fundamentação procedimental de normas como eticamente obrigatórias para regular conflitos no mundo real e a diferença entre as condições ideais e reais, todo aquele que argumenta tem que aceitar, também, necessariamente, a obrigação moral de ajudar a superar a diferença mediante a transformação das relações reais.

Para Apel, o argumentante se obriga, assim, a reconhecer a diferença entre as condições reais e contingentes e as condições ideais da comunidade de comunicação. Descobre-se, desta forma, uma diferença no princípio (U): “por um lado, ele prescreve incondicionalmente, no discurso liberado da ação, resolver consensualmente todos os conflitos do mundo da vida, mas por outro, na interação concreta no mundo da vida, exige uma aplicação responsável na história”.349 A conclusão que Apel retira é:

Na medida em que aceitou as condições ideais antecipadas da fundamentação procedimental de normas como eticamente obrigatórias para regular os conflitos no mundo real, e levando em conta a diferença que também tem que aceitar entre as condições ideais e as reais, o argumentante precisa aceitar necessariamente a obrigação moral de ajudar a superar a diferença – a longo prazo e aproximativamente – mediante a transformação da relações reais

”.

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Portanto, a reflexão sobre a diferença nos leva à intelecção de que faz parte de nossa obrigação moral co-laborar na supressão paulatina dessa diferença. Assim, através de uma reflexão pragmático-transcendental sobre os pressupostos da argumentação conseguimos descobrir, além do princípio (U), da ética pura, um princípio formal

normativo, ético-responsável e complementar (C), enquanto idéia regulativa na forma de

um compromisso de buscar atenuar as diferenças entre a esfera ideal e real. Trata-se, neste último caso de reconhecer por quem argumenta em sério, um postulado da razão prática “ou uma idéia regulativa, como exige o trânsito da moral (intra-grupal) convencional e suas condições convencionais de aplicação à moral racional pós-convencional e suas condições ideais de aplicação postuladas pela ética discursiva”.351 Assim, este postulado enquanto princípio de ação revela-se como um princípio de complementação (C) – sendo formal e deôntico – do princípio ideal de fundamentação de normas (U).

Portanto, este princípio enquanto idéia regulativa pretende a eliminação progressiva dos impedimentos ou, dito positivamente, a criação das condições para aplicação de (U). Aí, está presente o caráter normativo do princípio que introduz o telos da supressão progressiva dos impedimentos que surgem no caminho da aplicação do princípio puro do discurso. Para Apel, este telos terá o caráter de uma estratégia moral com relação à realidade histórica. O princípio complementar em seu caráter de estratégia moral orienta a responsabilidade dos indivíduos na criação das condições históricas que possibilitem a projeção de fins éticos, naquelas situações em que não pode, ou não deve, orientar-se pelo princípio ético, para não pôr em risco a sobrevivência do sistema de autoconservação que lhe foi confiado. Dessa forma, “o telos assume um caráter estratégico que visa à transformação da irracionalidade existente através de estratégias contra a ação estratégica

350 Cf. APEL, K.-O. LED, p. 264. 351 Cf. APEL, K.-O. LED,P pp. 254-55.

dos homens reais, mas que é uma estratégia moral, porque seu fim é moral, a supressão dos impedimentos, e visa, portanto, tornar paulatinamente supérfluas essas mesmas estratégias, à medida em que vão sendo criadas as condições para a aplicação do princípio moral”.352

Com isso, não se abandona uma conquista essencial da ética do discurso que é a distinção entre racionalidade comunicativo-consensual e racionalidade estratégica? Realmente, o que consiste no plano da ética da responsabilidade, especificamente com a descoberta do princípio de complementação (C), é a superação da separação existente entre racionalidade ético-discursiva e racionalidade estratégica e, também, a separação entre uma ética deontológica e uma ética teleológica.353 Trata-se de mediar a racionalidade procedimental ético-discursiva com a racionalidade estratégica da ação, e tornando-a possível em virtude de se tratar de um telos que mediatiza o princípio moral e a responsabilidade pela situação histórica.

No entanto, a estratégia de longo prazo não pode ser confundida com a estratégia teleológica dos antigos no sentido do bem viver. Pois, trata-se, aqui, do problema de uma ética de princípios para a qual não estão dadas as condições ideais de aplicação do princípio do discurso. O princípio (C) é orientado pelo telos da eliminação dos impedimentos que surgem no caminho da aplicação do princípio do discurso, portanto, não se identifica com o telos aristotélico vinculado a uma concepção determinada de felicidade ou do bem viver. O conteúdo teleológico do princípio de complementação (C) responde à máxima formal de colaborar na realização das condições históricas de aplicação do princípio (U) no sentido da sua “superfluidade”.

Com a descoberta do princípio complementar (C), a ética do discurso não projeta qualquer utopia social concreta, pois, ao contrário, do que se trata no princípio complementar é “criar as condições da comunicação que possibilitam fundamentar, de modo pós-convencional, as normas que fixem as condições restritivas, obrigatórias para todos, para a realização do bem numa vida feliz”.354

352 Cf. HERRERO, F. H. O problema da Fundamentação da Ética, Op. cit., p. 74.

353 A consideração crítica de Hösle é que a ética do discurso só consegue essa mediação entre uma ética

deontológica e uma ética teleológica no plano da aplicação. Portanto, no seu “núcleo duro” ela permaneceria formal. Superando esta perspectiva, Hösle irá constituir seu projeto de ética sintética. Para o tratamento da ética sintética, conferir HÖSLE,V. Moral und Politik. Grundlagen einer politischenethik für das 21.

jahrhundert., München: 1997, bem como, OLIVEIRA, M. A. de. Ética intencionalista-teleológica em Vittorio

Hösle. In: Correntes fundamentais da Ética Contemporânea. Petrópolis: 2000.

Refletindo mais detidamente sobre a função complementadora do princípio (C), Apel descobre, ainda, um critério formal universal. Para isso pergunta: diante de uma estratégia moral, quais meios e caminhos, dos que poderiam ser exigidos para a eliminação dos impedimentos para a aplicação do princípio moral, podem ser admitidos como lícitos?

Toda estratégia concreta que pretende uma emancipação político-moral da comunidade terá que ser enquadrada no marco aberto pelo telos de uma estratégia maior de ação no longo prazo que visa à realização das condições que permitam a aplicação do princípio moral na sociedade (princípio complementar (C)). Neste sentido, o telos regulador exige, antes de tudo: “deveria evitar-se tudo o que colocar em perigo as condições naturais e culturais já realizadas da aplicação de U”.355 Trata-se, neste caso, de um “princípio de conservação”, o qual restringe complementariamente o conteúdo emancipatório, ou até utópico, do princípio (C). Esclareçamos melhor esta questão:

O princípio regulador estipula: trata-se de realizar, na comunidade real de comunicação, a comunidade ideal. No marco deste princípio, descobre-se o telos regulador que exige a co-responsabilidade pela sobrevivência da comunidade real, portanto, a preservação das condições da existência de todos os seres humanos, inclusive a conservação das condições naturais, por exemplo, diante da crise ecológica. Exige-se, também, a preservação da “realidade racional” de nossa tradição cultural, das instituições que podem valer como conquistas no caminho de realização das condições da comunicação consensual. Trata-se, portanto, da conservação das condições culturais do já conseguido

racionalmente. Isto significa que essas condições se constituem como necessárias para a

criação das condições sociais e políticas do princípio moral.

Diante da pergunta se seriam moralmente aceitáveis todos os meios para a realização progressiva das condições de aplicação de (U), Apel responde que são moralmente rejeitáveis todos os meios que possam pôr em perigo as condições naturais e culturais já conseguidas. A estratégia moral é assim limitada pelo princípio de auto- conservação das conquistas consideradas como insubstituíveis.

Com isso, podemos caracterizar o princípio teleológico para a adoção de estratégias morais que deve mediar moralidade e eticidade (ou moralidade e política):

Que se tenha tanto entendimento discursivo-consensual quanto possível (em tudo o que conserva e preserva o racionalmente já conseguido) e tantas reservas estratégicas quanto necessárias (em tudo o que ainda é irracional, em virtude da avaliação responsável do risco de destruir o já racional).356

Portanto, trata-se na parte B teleológica da ética do discurso, não de uma utopia social concreta: quem pretende preservar a existência e a dignidade do homem tem de estar, ao mesmo tempo, disposto a colaborar sempre na realização progressiva, embora nunca completa, das condições comunicativas para a auto-realização substancial, tanto no plano da política social como no da política externa. Aqui no princípio complementar ético- responsável, unem-se o princípio de conservação e o princípio de transformação.

Com a tematização do princípio complementar (C), descoberto no a priori dialético, esclarece-se o motivo da distinção entre uma parte A de fundamentação e a parte B em que a ética do discurso se torna uma ética da responsabilidade. Este princípio (C) não complementa a ética do discurso como um todo, mas somente o princípio de universalização fundamentado na sua parte A ideal. No entanto, com relação ao desenvolvimento da consciência moral, no supremo degrau de competência do juízo moral, ambos os princípios (U) e (C) unem-se num único e supremo princípio da ética da responsabilidade referida à história.

Apel mantém a diferença e complementaridade da ética do discurso universal normativa e as formas de aplicação de uma ética da vida boa e, segundo Kant, continua persistindo na prioridade da forma universal em relação à forma substancial da ética. A primeira delas precisa impor condições (ao menos) restritivas à segunda, por exemplo, quanto à relação de diferença entre moralidade de princípios no sentido mais estrito e responsabilidade política.

No nível da racionalidade filosófica de fundamentação última a racionalidade auto-reflexiva do discurso prova a validade de complementação de (U) por (C). Isto nos leva a compreender que o complemento teleológico do princípio procedimental da ética do discurso é, ele também, consensual: não é a racionalidade estratégica que ordena complementar o princípio deontológico procedimental (U) com o princípio de

356 Cf. APEL, K.-O. PRP, pp. 113-4. Cf. HERRERO, F. H. O problema da Fundamentação da Ética, Op. cit.,

complementação (C), mas o contrário. Isto se deve ao fato da racionalidade estratégica não poder mostrar como normativamente válido o fim último da ação.357 Na antiguidade, sua fundamentação ocorreu a partir de uma especulação dogmática (onto-teológica). Todavia, na ética pós-kantiana, ambos os princípios - princípio de complementação teleológico (C) e a norma procedimental deontológica - derivam do princípio de racionalidade da consistência pragmática da argumentação.358

Após esses esclarecimentos da estrutura da ética do discurso, a sua arquitetônica em geral pode ser explicada pelo esquema gráfico seguinte:

357 Cf. APEL, K.-O. LED, p. 261. 358 Cf. Ibid.

Arquitetônica da ética do discurso:

A priori da argumentação: “intercruzamento dialético” da pressuposição da comunidade real e da comunidade ideal de comunicação.

PARTE A PARTE B

Explicitação do a priori da comuni- Explicitação do a priori da facticida- dade ideal de comunicação, abstra- de da responsabilidade ligado à histó- indo da história. ria.

A1 A2 B1 B2