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Transformação semiótica de Kant por Peirce

OS PRESSUPOSTOS PEIRCEANOS DA ÉTICA DO DISCURSO

2.2 Transformação semiótica de Kant por Peirce

Para Apel, o programa anteriormente esboçado de uma transformação semiótica da filosofia transcendental foi desenvolvido minuciosamente por Ch. S. Peirce. Segundo ele, foi Ch. S. Peirce – o Kant da filosofia norte-americana - quem inaugurou a semiótica tridimensional como fundamento triádico de uma lógica da pesquisa científica, a partir de uma reconstrução crítica da Crítica da Razão Pura. Esta inauguração se tornou possível a partir da introdução da semiótica realizada por Ch. Morris na lógica da ciência moderna.

Segundo Apel, encontra-se em Peirce, por uma parte, as principais características da moderna lógica lingüístico-analítica da ciência: por exemplo, a diferenciação do problema da justificação (validade) na pergunta acerca dos critérios de sentido e a pergunta pelos critérios de confirmação das proposições científicas; por exemplo, a substituição da crítica à metafísica, enquanto crítica do conhecimento, pela crítica à metafísica como crítica de sentido.

A moderna lógica da ciência pressupunha que a formalização sintática de teorias e a análise semântica da relação diádica entre teorias e fatos seriam suficientes para discernir as condições de possibilidade e de validade do conhecimento científico. Peirce, por meio de sua lógica tridimensional, mostrou, por outra parte, que tal discernimento só encontra uma resposta satisfatória com a introdução de um substituto da unidade transcendental da consciência como havia em Kant. Este termo, análogo à “unidade transcendental da consciência” intersubjetivamente válido, se encontra presente na dimensão pragmática trivalente da interpretação de signos. Desta forma, afirma Apel, Peirce elabora a fundação de uma lógica triádica da interpretação dos signos através de sua transformação da filosofia transcendental kantiana e isto muito antes que se comprovasse a insuficiência da base bivalente própria à moderna lógica da ciência sintático-semântica. Por fim, para Apel, o importante é que se esclareça a tese de que não se trata, em Peirce, de uma reconstrução histórico-filológica do pensamento de Kant, mas sim, antes de tudo, de uma transformação semiótica da lógica transcendental kantiana.181

181 Não vamos desenvolver in extenso a reconstrução peirceana por Apel. Este considera que a exposição

Peirce teria encontrado uma espécie de sucedâneo à síntese transcendental da apercepção através da categoria terceiridade enquanto representação de algo mediado por signos e que, portanto, poderia funcionar, em tal medida, como ponto mais alto para uma dedução transcendental. A rejeição de Peirce ao occult transcendentalism não se refere à concepção de um “ponto supremo” da dedução transcendental, mas, sim, ao tipo de procedimento kantiano, que é, segundo Peirce, psicológico e circular. Embora ele rejeite o procedimento kantiano, não obstante, aceita a concepção de um ponto supremo da dedução transcendental. Segundo Apel, aquilo que ele indica como “unity of consistency” representa exatamente a busca por esse ponto. A referência à unidade da consistência aponta na direção daquilo que cabia no pensamento kantiano à unidade objetiva de representações e de uma ego-consciência, mas que cabe agora à consistência semântica de uma “representação” intersubjetivamente válida dos objetos por meio de signos, que segundo Peirce, se decide na dimensão da interpretação dos signos, que Ch. Morris chamará de dimensão “pragmática”.182

O resultado é que o ponto mais alto da dedução transcendental de Kant, que residia na unidade pessoal da autoconsciência, na dedução transcendental de Peirce, corresponde à unidade semiótica da interpretação consistente. Desta forma, Peirce chega a sua definitiva e peculiar concepção do ponto supremo de uma unidade da consistência “princípios constitutivos” kantianos pelos “princípios regulativos” nos métodos da inferência sintética e da formação interpretativa de consenso in the long run. Este direcionamento da transformação, cujas conseqüências são o falibilismo de princípio e o melhorismo ilimitado na formação de teorias, é tão característico de Peirce, que este iniciou também uma transformação pragmático-transcendental das condições

constitutivas de possibilidade da experiência experimental em geral, não sujeitas a “falibilismo” algum, dado

já estarem sempre pressupostas para a falsificação de teorias. A possibilidade da experiência experimental não está apoiada, como em Kant, sobre o reconhecimento de “proposições sintéticas a priori” - já que proposições, para Peirce, precisam submeter-se ao falibilismo, como exige a formação semiótica de consenso

in the long run - mas sim sobre a referência básica do sentido da realidade ao contexto das experiências

experimentais, comprováveis mediante a práxis instrumental. - J. Habermas destacou, de maneira tão enérgica quanto unilateralmente, esta vertente da transformação peirceana de Kant, introduzindo heuristicamente o marco quase-transcendental, constitutivo de objetos, do “interesse técnico do conhecimento”. A meu ver, a tese da compatibilidade dos dois direcionamentos da transformação kantiana de Peirce é, hoje em dia, urgentíssima, tanto mais à medida que o primeiro direcionamento legitima a relativização da física clássica por meio de construções de teorias não-clássicas, e à medida que o segundo direcionamento torna compreensível a renovação da fundamentação kantiana da física clássica (incluindo a geometria euclidiana) no sentido de uma “protofísica” (P. Lorensen)”. APEL, K.-O. TPH II, p. 165. TF II, p. 188. nota 12.

182 Cf. APEL, K.-O. TPH II, p.169. TF II, p. 192. Portanto, a base da transformação da lógica transcendental

reside na compreensão de que Peirce deduz, a partir da semiose, os tipos de conclusão de sua lógica da pesquisa, os tipos de signos, como ilustração de suas três categorias fundamentais. Esta semiose ou representação pode ser explicada, por exemplo, por meio da seguinte definição: um signo é algo que representa, para um interpretante, algo diferente, em um certo aspecto ou qualidade. Para uma análise mais detalhada desta questão conferir: APEL, K.-O. TPH II, pp. 170-77. TF II, pp. 194-202.

possível do conhecimento. Tal ponto é a “ultimate opinion” da “indefinite Comunity of

investigators” e o sujeito semi-transcendental desta unidade postulada é a comunidade

ilimitada de experimentação , que é ao mesmo tempo, uma comunidade de interpretação ilimitada.183

Apel considera que tomando por base este pressuposto, Peirce não conseguiu levar a cabo nenhuma dedução transcendental dos princípios da ciência entendida em linguagem kantiana como juízos sintéticos a priori. Segundo Apel, isso torna plausível “que princípios a priori não relativos sejam desnecessários, e que a afirmação deles conduza a um resto de dogmatismo metafísico: pois Peirce, a partir de sua pressuposição do ponto supremo, logra deduzir a validação geral das conclusões sintéticas – ou seja, do procedimento metódico de abdução e de indução “in the long run” – como transcendentalmente necessárias”.184 Com isso, segundo Apel, Peirce elabora uma transposição de modo que o lugar dos princípios constitutivos da experiência kantiana sejam ocupado, de certo modo, pelos princípios regulativos, o que faz com que a necessidade e a universalidade das proposições científicas sejam deslocadas para a meta do processo de investigação. Então, para Apel, se em Kant, tratava-se de demonstrar como é possível a universalidade e a necessidade das sentenças fundamentais das ciências - a ser alcançada no presente momento - agora em Peirce esta pretensão é encarada como uma meta a ser alcançada no processo de investigação - isto o possibilita eximir-se de uma postura cética.

Sob estes pressupostos transcendentais, as proposições da ciência são compreendidas como falíveis e corrigíveis, em princípio, e o conhecimento científico é visto no sentido de uma aproximação gradual e infinita em direção à verdade. Assim é que Apel vai afirmar que a maioria dos epistemólogos modernos irá preferir esta concepção de verdade da ciência e neste ponto a posição de K. R. Popper é bastante semelhante a Peirce. A partir dessa apresentação, tratemos de esclarecer, em seguida, a origem e o significado do postulado de um consenso de verdade na comunidade ilimitada dos cientistas enquanto sujeito do conhecimento.

183 Cf. APEL, K.-O. TPH II, p. 173. TF II, pp. 197-8. 184 Cf. APEL, K.-O. TPH II, p. 173. TF II, p. 198.

2.3 O objetivo transcendental-filosófico postulado de um consenso de