• Nenhum resultado encontrado

Descontinuidades e aproximações entre Kelsen e Schmitt e o

CAPITULO 2. TEORIA PÓS-POSITIVISTA E

2.3. DECISÃO SOBERANA E NORMA NO DEBATE KELSEN –SCHMITT

2.3.2. Descontinuidades e aproximações entre Kelsen e Schmitt e o

Brasil

116 A visão de democracia para esses juristas aponta preocupações diversas. Em Kelsen a democracia preserva o intento de proteção da minoria contra os abusos da maioria. Schmitt compreende a democracia como destinada a defender o Estado da fragmentação. O problema da unidade do Estado é resolvido, por Schmitt, ao eleger o presidente do Reich como o guardião da Constituição e por advogar pelo fim do Estado de Direito enquanto modelo propriamente liberal. Kelsen se mantém voltado à lógica do Estado de direito e, portanto, do controle do poder por meio de instituições e órgãos do Estado.

Postos os elementos fundamentais do debate, importa pontuar três aspectos que devem ser ressaltados e que deverão servir como pontos a serem melhor desenvolvidos no capítulo final:

1) O primeiro aspecto expõe a continuidade entre os autores na medida em que no âmbito da interpretação os dois convergem em afirmar, explicitamente ou não, que “a autoridade e não a verdade que faz as leis”. Matos e Milão partilham desse entendimento em função da hermenêutica negativa a que as teorias de Kelsen e Schmitt conduzem. Se Kelsen acaba por mostrar que o direito é uma força organizada, tanto em função da norma fundamental, quanto pelo fato de reconhecer que qualquer decisão possa ser considerada válida se decidida pela autoridade competente para fazê-lo, tem-se um decisionismo que aponta para o Judiciário em Kelsen e um que aponta para o Executivo em Schmitt (MATOS, MILÃO, 2013). Enquanto o decisionismo de Kelsen situa-se no plano da interpretação, o de Schmitt constitui-se como plano de validade do direito.

Assim, tanto Kelsen quanto Schmitt inscrevem o direito num registro da violência, pois em última instância o direito ou o direito correto será o que a autoridade competente definir. Para Kelsen essa força se manifesta tanto no âmbito da aplicação do direito, quanto no plano da norma fundamental117. Em outros termos, no limite, o direito é força. A

proximidade entre os autores se apresenta no que concerne à teoria de interpretação e à discricionariedade e mesmo arbitrariedade daquele que decide sobre o direito. A tese kelseniana não é isolada no positivismo jurídico, pois haveria, segundo Dimoulis, a “ausência de uma teoria juspositivista no âmbito da interpretação” (DIMOULIS, 2006, p. 218). Deste modo, quando os ministros do STF afirmam que o a constituição é aquilo que o supremo diz que ela é, eles não se equivocam.

Os outros dois aspectos relevantes dizem respeito às descontinuidades entre Kelsen e Schmitt quanto 2) ao conceito do político e ao 3) conceito de Constituição. Abordaremos esses dois aspectos em conjunto, pois muitas vezes os autores parecem divergir em alguns aspectos que poderia ser resolvidos pela definição prévia de conceitos básicos. Eles falam em “político” e “Constituição” como se com os termos estivessem se referindo aos mesmos conceitos. A distância entre

117 Comentando sobre a teoria kelseniana da norma fundamental, Bobbio afirma que a “norma fundamental que manda obedecer aos detentores do poder originário é aquela que legitima o poder originário a exercer a força; e nesse sentido, sendo que o exercício da força para fazer respeitar as normas é uma característica do ordenamento jurídico” (BOBBIO, 1995, p. 67).

os pontos de partida leva alguns autores a afirmar que a querela Kelsen- Schmitt é mais fictícia que real118.

A Constituição kelseniana é a norma que ocupa o ápice da ordem jurídica, o documento jurídico-político fundamental – distinto da norma fundamental. Refere-se, portanto “a norma positiva ou as normas positivas através das quais é regulada a produção das normas jurídicas gerais” (KELSEN, 2009, p. 247). Dentro de uma perspectiva de uma disposição escalonada do sistema jurídico, a defesa da Constituição, sob a forma do controle de constitucionalidade, refere-se ao juízo sobre a correspondência hierárquica das normas com a Constituição.

O conceito de Constituição para Kelsen e, consequentemente, de defesa da Constituição estão muito próximos do sentido atual do controle de constitucionalidade brasileiro e nesse aspecto não é preciso grande argumentação, já que esse fato é amplamente reconhecido119. A influência

kelseniana no controle concentrado de constitucionalidade é inegável. Outra consideração, menos usual, porém, é a de que o Judiciário também assume um papel de defensor da Constituição num sentido schmittiano e é esse ponto que ressaltaremos.

A Constituição schmittiana não se confunde com as leis constitucionais. Ela diz respeito à organização política fundamental. Virgílio Afonso da Silva argumenta que “a disputa entre Kelsen e Schmitt é o embate entre o controle de constitucionalidade do dia-a-dia contra a guarda da constituição contra ameaças ao regime político” (SILVA, 2009, p. 206). Para Schmitt, o defensor da constituição só seria chamado a atuar em caso de emergência. Na normalidade, o guardião não se move. Mas a consideração sobre a situação de emergência conduz a inevitável pergunta sobre quando se fala em normalidade de que normalidade se fala? A normalidade é uma qualidade que se encontra no mundo real, nas coisas em si, ou é uma interpretação? Isto é, é algo imanente ou é uma abstração que as transcende? Para construir percepções sobre o mundo são

118 Virgílio Afonso da Silva defende que “o embate entre Kelsen e Schmitt é mais simbólico do que real. Eles não apenas falavam de conceitos distintos de constituição, mas também de ameaças completamente diferentes” (SILVA, 2009, p. 205).

119 O controle de constitucionalidade brasileiro não adota o modelo puro kelseniano, por óbvio. A admissão do controle difuso, por exemplo, é uma importante distinção em relação ao modelo austríaco e revela a proximidade com o modelo norte-americano. A referência a Kelsen e a Schmitt, é claro, não significa uma adoção pormenorizada e literal de seus modelos, mas apresenta importantes considerações para se pensar, em termos de filosofia do direito, a função da jurisdição constitucional.

necessárias decisões e a definição da emergência pode se mostrar como especialmente desejada. Além disso, num contexto de economia globalizada, no qual a crise é o modo normal de funcionamento do capitalismo, a exceção afigura-se como banal. Agamben afirma, nesse passo, que:

Se a exceção é a estrutura da soberania, a soberania não é, então, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema do ordenamento jurídico (Kelsen): ela é a estrutura originária na qual o direito se refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão (AGAMBEN, 2010a, p. 35).

O guardião, para Schmitt, é aquele que está acima dos conflitos partidários e que representa a homogeneidade do povo. Trata-se de um poder neutro, capaz de defender a unidade política, funcionando, ainda, como instância de legitimidade, apto a atuar como “juiz supremo” na defesa do “bom direito” (SCHMITT, 2011a).

No Brasil, o Poder Judiciário surge como o terceiro neutro, infenso às disputas partidárias e que pode traduzir a vontade do povo e de conhecer a moral e a justiça ou mesmo de construí-la de forma imparcial e mais adequada. Trata-se da instância chamada a salvar o Estado da crise de governabilidade e de legitimidade do Executivo e Legislativo, já que os juízes são tomados como baluartes da Justiça e moralidade. Analisando situação semelhante no contexto alemão, Ingeborg Maus destaca esse papel conferido ao Judiciário:

Embora os interesses materiais da administração judiciária continuem a se fazer valer, o Parlamento aparece agora como simples representante do entrechoque de impulsos e energias sociais, cujo excesso tem como censor a Justiça. O suposto déficit de conhecimento jurídico do Parlamento; a estrutura consensual de suas leis, nas quais se reproduz o antagonismo dos interesses sociais; o confronto entre as particularidades das diversas matérias jurídicas, que põe em questão a unidade e coerência do sistema jurídico — tudo isso exige da Justiça um senso de clareza que lhe possibilite organizar a síntese social, distante de disputas

partidárias, e garantir a unidade do direito (MAUS, 2000, p. 195).

A autora argumenta que a unidade – unidade do direito ou da Constituição como sistema de valores – poderia ser alcançada pela ciência e prática jurídicas por meio de seu método, aumentando a possibilidade do campo judicial de lidar com os conflitos sociais que estão na dimensão real do direito. Para ela, nessa “função controladora da Justiça reconhece- se um simbolismo que remete à integração de mecanismos sublimadores” (MAUS, 2000, p. 196).

As considerações de Ingeborg Maus sobre o tribunal alemão apontam, ainda, a substituição da figura do presidente pela dos tribunais.

Se na República de Weimar o presidente atuava como visível imperador substituto, na atual república esse papel parece ter sido assumido pelo TFC. A ascensão da Justiça desde a metade dos anos 1920 viria encerrar-se assim provisoriamente. A libido da sociedade ter-se-ia deslocado da chefia do aparato do Executivo para a cúpula do Poder Judiciário (MAUS, 2000, p. 199).

O realismo político de Carl Schmitt é uma das suas importantes contribuições. Algumas de suas críticas ao sistema liberal nos permitem avançar na visão do direito. No reconhecimento da situação “real” do direito por Schmitt não há uma proposta de adequação a um dever-ser, mas uma espécie de administração dessa realidade. Em outros termos, Schmitt funde o reconhecimento da realidade do direito com aquilo que o define. Isto é, se o direito é decisão, a tentativa de liberal de dar a decisão a forma de uma deliberação pública seria cínica. Se o direito é reconhecido como ele é, decisão, a melhor forma da teoria do direito lidar com isso seria dar condições para que a decisão fosse tomada da forma mais eficiente. Ele não apenas desnuda a realidade política, mas defende que ela se mostre por sua face real. É como se se dissesse que o direito é decisão e que, portanto, melhor seria que essa decisão fique a cargo do Poder Executivo, que a toma sem protelações.

Muito embora Schmitt nomeie o seu soberano, é importante observar que os termos do seu realismo político expõem a visão do direito como decisão. Desse modo, as discussões sobre o direito passam a corresponder a disputa sobre quem diz o direito. Nesse ponto, a teoria do direito não pode prescindir de avaliar as disputas em torno do poder de decidir sobre o direito, pois, no limite é sobre esse poder que estamos

lidando. Em outros termos, a pergunta sobre o que é o direito no Brasil converge com a discussão acerca dos atores na luta da decisão sobre o direito.

Nesse sentido, retomando o significado de guardião da constituição para Schmitt, deve-se considerar o papel de garantidor da estatibilidade das instituições e de preservação da democracia que o Judiciário é chamado a exercer na realidade brasileira. A crise que é atribuída ao Legislativo e ao Executivo, os problemas de governabilidade, os escândalos de corrupção, a crise econômica, tudo isso tem levado o Judiciário a se tornar depositário das esperanças institucionais e democráticas, ele é chamado a salvar o país e o governo. Não se trata simplesmente de uma tarefa de averiguação de compatibilidade vertical das normas coma Constituição. Seu papel vai desde “dizer o que é a Constituição” até resgatar o Estado brasileiro das crises políticas que tem colocado em questão o Estado democrático.

Além disso, quanto ao conceito do político, pode observar que a “politização da justiça” só é possível se se toma o político em sentido schmittiano, já que a perspectiva de um poder neutro e livre das pressões partidárias não compreenderia o sentido de política como pluralidade democrática do conceito kelseniano. O político surge como possibilidade de defesa do Estado contra a fragmentação. Que diante das crises o Judiciário seja chamado a atuar e atue na defesa da Constituição, mesmo que em sentido contrário a ela, revela que o soberano é aquele que decide sobre o Estado de exceção.

CAPÍTULO 3. O ESTADO DE EXCEÇÃO NA REALIDADE