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CAPITULO 2. TEORIA PÓS-POSITIVISTA E

2.1. NEOCONSTITUCIONALISMO E PÓS-POSITIVISMO

2.1.1. Algumas definições sobre o pós-positivismo e o neoconstitucionalismo

2.1.1.2. Relação entre direito, moral e política

O confronto do neoconstitucionalismo com a tese positivista da

83 Muitas vezes não se reconhece essa divisão entre plano da validade e plano da interpretação do direito, de modo que muitos dos pós-positivistas simplesmente compreendem que direito é direito justo, sem maiores considerações sobre os planos da validade e da interpretação.

autonomia entre o direito, a moral e a política constitui o cerne da teoria, que, nesse ponto, é objeto de uma defesa, muitas vezes apaixonada, por parte de alguns pós-positivistas. Calsamiglia afirma que na “agenda postpositivista ésta es una de las tesis más discutidas pues autores como Fuller y Dworkin sostienen que la evaluación moral es necesaria tanto para entender como para describir el derecho” (CALSAMIGLIA, 1998, p. 210). O motivo pelo qual o debate se acentua se deve a algumas circunstâncias históricas e sociais.

Os regimes totalitários – nazismo e fascismo – que marcaram a Europa no século XX não se instauraram à revelia da ordem jurídica, as Constituições estavam vigentes e assim permaneceram mesmo durante a solução final. No fim do segundo pós-guerra, com a repercussão mundial dos crimes cometidos durante o nazismo e o Julgamento de Nuremberg dos principais criminosos de guerra – os quais costumavam alegar em sua defesa que estavam apenas cumprindo ordens – formou-se um entendimento de que o positivismo, com o seu postulado da separação entre o direito e a moral, teria permitido os horrores do nazismo.

A neutralidade valorativa do teórico do direito, assim como a possibilidade de que qualquer conteúdo, mesmo que injusto ou imoral, pudesse ser considerado direito teria desarmado os juristas de resistirem às leis injustas e de se posicionarem contra elas. Gustav Radbruch, com a distribuição de um panfleto a seus alunos intitulado Cinco Minutos de Filosofia do Direito, foi um dos principais expoentes na defesa da ideia de que o direito injusto não é direito:

Direito quer dizer o mesmo que vontade e desejo de Justiça [...]. Quando as leis conscientemente desmentem essa vontade e desejo de justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os direitos naturais da pessoa humana84, então carecerão tais leis de qualquer validade, o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os primeiros a recusar-lhes o caráter de jurídicas (RADBRUCH, 1997, p. 416). Para além desse precedente histórico invocado pelos antipositivistas, outro fator importante decorre do advento de um contexto social cada vez mais plural, que passa a abranger referências como:

84 A Declaração Universal dos Direitos Humanos impulsionou o movimento de constitucionalização de direitos fundamentais, tornando desnecessário o recurso a direitos naturais suprapositivos.

“sociedade informacional”, globalização, “sociedade de risco”, revolução biotecnológica, “sociedade hipercomplexa”, etc. As várias transformações sociais são cada vez mais urgentes, transindividuais e transnacionais. A isso se acresce a velocidade das informações, das transações comerciais, das descobertas científicas, colocando o direito frente a um novo contexto, de um mundo que se move com mais rapidez do que o mundo jurídico.

O pós-positivismo se propõe pensar e aplicar o direito dentro dessa nova realidade, reagindo contra a “pureza do direito” e inserindo em seu conceito uma justificação ético-moral, além da eficácia social e validade formal das normas (DUARTE, 2010), de modo a aproximar a dimensão da legalidade da dimensão da legitimidade.

Nesse sentido, é possível vislumbrar no movimento antipositivista dois enfoques de fundamentação externa do direito – destinadas a sua legitimação – que fazem coro em desfavor à tese da não conexão necessária entre o direito, a moral e a política, proposta pelo positivismo: uma de cunho idealista, que exige a adaptação do direito a imperativos de justiça, bem-comum e moralidade; outra de vértice sociológico, aponta a necessidade de que o direito acompanhe a evolução da sociedade por meio de uma maior flexibilidade dos imperativos normativos (DIMOULIS, 2006). Nesse sentido, o pós-positivismo encarna um discurso de emancipação social pela flexibilização das normas e da abertura introduzida no direito pelos princípios. O peso e a dimensão dos princípios são fixados no caso concreto, pois “uma axiologia pluralista (de cunho construtivista) requer uma deontologia flexível (de cunho principialista)” (FIGUEIROA apud FIGUEIRA; BICALHO, 2011, p. 123).

Margarida Maria Lacombe Camargo afirma, nesse sentido, que O pós positivismo, como movimento de reação ao legalismo, abre-se, na realidade, a duas vertentes. Uma delas é desenvolvida por autores que buscam na moral uma ordem valorativa capaz de romper os limites impostos pelo ordenamento jurídico positivo, honrando o compromisso maior que o Direito tem com a Justiça [...]. Poderíamos indicar aqui os nomes de Chaïm Perelman, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas e Robert Alexy [...]. Em outra banda encontram-se autores que abraçam o pragmatismo, como é o caso de Friedrich Müller, Peter Häberle e Castanheira Neves (CAMARGO, 2003, p. 137-138).

Conforme argumenta Calsamiglia, o raciocínio moral tem um relevante papel no raciocínio jurídico, havendo, portanto, uma relação intrínseca entre direito e moral, que adentra no ordenamento por meio de princípios morais positivados, pois “en muchas constituciones modernas se introducen conceptos muy abstractos que requieren decisiones para atribuirles significado y el tipo de justificación es una justificación moral” (CALSAMIGLIA, 1998, p. 215).

Outro ponto, identificado por Calsamiglia é que a teoria parte do reconhecimento das exigências sociais que demandam mais que um papel passivo dos juristas. As teorias pós-positivistas não apenas reconhecem os problemas reais e as dificuldades que se apresentam ao intérprete, como se destinam a formular instrumentos que, de fato, o habilitem a lidar da melhor forma possível os problemas sociais. Para Calsamiglia, as “teorias del derecho tienen corno función la mejor comprensión del derecho y deben oferecer instrumentos adecuados para construir una tecnología para resolver mejor los problemas sociales” (CALSAMIGLIA, 1998, p. 218).

Segundo Susanna Pozzolo, a “positivação dos princípios, efetivamente, é aquilo que permite ao neoconstitucionalismo negar a distinção entre justiça e validade, reconhecendo ao direito um a tendência intrínseca à satisfação do ideal moral” (POZZOLO, 2010, p. 82), assim o discurso jurídico e o discurso moral se aproximam e a justiça passa a representar um critério de validade.

A leitura moral da Constituição, resultante de uma interpretação construtiva dos valores constantes do regime democrático, termina por realizar, concomitantemente, a redução do discurso jurídico (raciocínio jurídico) ao discurso moral (raciocínio moral) (DUARTE, 2010, p. 68).

Embora alguns pós-positivistas defendam a moralidade como critério de validade do direito, é certo que em sua grande parte, os pós- positivistas centram os seus esforços no âmbito da interpretação, procurando oferecer parâmetros e critérios para a aplicação concreta do direito.

Assim, produz-se uma abertura valorativa que perpassa não apenas o momento de criação da norma, como de sua aplicação. Essa abertura é especialmente possibilitada pelos princípios que inserem uma “pretensão de correção” no direito orientado por valores e objetivos políticos – como

a redução das desigualdades sociais. Écio Oto Ramos Duarte argumenta que o neoconstitucionalismo postula uma “ampliação [sic] do conteúdo da grundnorm”85, de modo que o direito só é obrigatório porque inclui

conteúdos morais na norma fundamental.

A partir do “argumento da injustiça”, “segundo o qual normas extremamente injustas não podem ter o caráter de normas jurídicas”, é introduzida na formulação da norma fundamental uma cláusula que leva em conta o argumento da injustiça refletindo implícita ou explicitamente uma pretensão de correção de todo o sistema de normas (DUARTE, 2010, p. 71-72).

Assim, a proximidade entre direito e moral incorpora a filosofia aos debates jurídicos, na medida em que além do nível formal de validez congrega ainda uma densidade material, o que “levará o conceito de direito a uma dimensão ou âmbito de fundamentação que qualifica a validez das normas jurídicas desde um grau mínimo de justificação ética” (DUARTE, 2010, p. 72).

Além disso, o direito também passa a corresponder a uma lógica pragmática. De um lado, os efeitos práticos das decisões são o principal fundamento da tomada de decisão, de outro, o conceito de direito adotado será aquele mais adequado à prática, não havendo, portanto, um único conceito, o que “impulsiona o paradigma neoconstitucionalista à inclusão, também, da dimensão política do direito” (DUARTE, 2010, p. 65).

Isso decorre da pluralidade social, que amplia os casos em que não é possível chegar a uma resposta definitiva sem conflito, os hard cases. Daí a necessidade da “efetivação de um quadro de valores externos, que interpreta o tecido social” (DUARTE, 2010, p. 20). A relevância dos princípios jurídicos insere-se nesse propósito, na medida em que “se propõem a uma abertura da Constituição (e do direito) aos valores sociais, permitindo a oxigenação do sistema” (FIGUEIRA; BICALHO, 2011, p. 123). O reconhecimento da elevada carga axiológica de princípios como “dignidade da pessoa humana”, “Estado democrático de direito”,

85 Seria mais adequado falar de introdução de conteúdo, do que de ampliação. Afinal, na concepção kelseniana, a grundnorm é pressuposta e não possui um conteúdo definido. A norma fundamental não-expressa é o pressuposto de obediência às leis, é “o fundamento subentendido da legitimidade de todo o sistema” (BOBBIO, 1995, p. 60).

“solidariedade social” permite que a moral seja debatida e que a constituição possa ser atualizada e adaptada.

O pós-positivismo afirma uma conexão não apenas contingente, mas necessária entre o direito e a moral, uma vez que a constituição elenca princípios como verdadeiros standard morais. Especial destaque se deve ao princípio da dignidade da pessoa humana, que se ergue como centro gravitacional de todo o ordenamento jurídico.