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Capítulo I. A invenção da categoria desemprego, as relações sociais de sexo/gênero e o

1.6. Desemprego como experiência subjetiva

Em sua face subjetiva, representada pela experiência concreta e cotidiana dos/as que foram privados de uma ocupação remunerada e têm de lutar por sua sobrevivência, o desemprego mostra diferenças acentuadas, revelando a diversidade das trajetórias laborais que constrói uma variedade de significados para o trabalho e para sua perda. Tal diversidade manifesta-se não apenas entre mulheres e homens, mas também entre as mulheres e entre os homens. O estudo de Silva (2009) ajuda a iluminar a complexidade da experiência subjetiva da perda do emprego. Segundo esta autora o significado do desemprego para o indivíduo depende do sentido que o trabalho adquiriu ao longo de sua vida. Este sentido pode ser apreendido quando atentamos para as trajetórias profissionais dos/as desempregados/as, presentes em suas narrativas de vida. Assim, o significado e a vivência do desemprego mostram-se diferentes para os diversos grupos de entrevistados. Para o homem ou para a mulher responsável pelo sustento da família, o desemprego era vivido com maior nível de angústia com relação ao futuro. Para o homem ou para a mulher em cuja trajetória o trabalho fora vivenciado como labor (trabalho para assegurar meramente a sobrevivência ou adquirir bens de consumo), a falta de emprego representava apenas o agravamento da própria situação de penúria durante o trânsito entre ocupações precárias e mal remuneradas. Para o/a jovem socializado/a dentro da lógica do trabalho flexível e que se via como responsável pela própria qualificação, o desemprego era vivido muitas vezes com otimismo; com esperança de obter logo uma nova ocupação. Para a pessoa que viu erodir sua qualificação e foi descartado/a, o desemprego assinalava uma profunda sensação de fracasso pessoal. Já os indivíduos que militavam politicamente em associações de desempregados enxergavam o desemprego (o próprio e o dos outros) como fruto de fatores externos (ambição dos empresários, ações dos governantes, conjuntura econômica mundial), não culpando a si mesmos pela perda do emprego.

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Além de nuançada pelos marcos regulatórios e pela estrutura do mercado de trabalho, a experiência subjetiva da perda da ocupação é uma experiência de gênero (SEGNINI, 2003; SILVA, 2009; JARDIM, 2009a). As mulheres e os homens apreendem o desemprego e se definem de maneiras diferentes. A pesquisa de Liliana Segnini (2003) com desempregadas na Grande São Paulo constatou que as mulheres vivenciam o desemprego “com muito trabalho”. Ou seja, por arcarem com o peso do – socialmente invisibilizado – trabalho doméstico (cuidado da casa, filhos e netos), quando desempregadas, a busca de uma nova ocupação e a realização de trabalhos intermitentes (manicure, faxineira diarista, artesã, lavadeira, etc.) ocorria em paralelo com a intensificação das tarefas do domicílio. O estudo de Jardim (2009) apresenta uma conclusão análoga. Para as mulheres entrevistadas por esta autora, “cuidar da família” era uma maneira de não se entregar ao desespero e evitar a condenação pelos que as rodeavam.

As entrevistas realizadas por Segnini e Jardim com desempregados/as em desalento (aqueles/as que haviam desistido de procurar trabalho) constataram que, para as mulheres deste grupo, o abandono do trabalho “para cuidar dos filhos” ou “para cuidar da casa” aparecia em suas falas como fruto de uma escolha pessoal. Segnini (2003) e Jardim (2009) ressaltam que, na verdade tratava-se de um discurso que encobria a dura realidade das enormes dificuldades de reinserção ocupacional (que levavam à desistência de procurar uma ocupação formal). Nas falas, sobretudo das mulheres casadas, transparece a visão do trabalho assalariado feminino como complementar ao do homem chefe de família (o homem-provedor). O desemprego acabava, portanto, reforçando os papéis feminino e masculino tradicionais, pois ao perderem seus empregos, a cobrança para que essas mulheres voltassem ao mercado de trabalho era menor do que aquela a que seriam submetidos os homens na mesma situação. Cabe pontuar que a realidade do desemprego de homens e mulheres apresenta outros contornos mais complexos, detectados pelos estudos de Jardim (2009) De acordo com esta autora, embora as condições de trabalho para as mulheres fossem difíceis, as trabalhadoras desejavam voltar ao mercado de trabalho, pois o trabalho extradoméstico era uma dimensão importante de suas vidas. Apesar de não serem condenadas pelos familiares, amigos e vizinhos por não conseguirem voltar ao mercado de

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trabalho, o desemprego era um fator de desconforto e, muitas vezes a afirmação do não retorno ao mercado de trabalho como opção constituía uma forma de minimizar a frustração e a depressão.

Enfocar o mercado de trabalho e o desemprego atentando para as relações sociais de sexo/gênero implica necessariamente no desenvolvimento de olhar multifocal, de modo a levar em conta uma ampla gama de processos, institucionalidades e, sobretudo, relações de dominação em que se mesclam a dominação capitalista e as relações sociais de sexo/gênero.

Ao longo deste texto, observamos que o desemprego varia segundo o contexto sócio-institucional, o qual compreende o tipo de mercado de trabalho, o reconhecimento institucional da privação do trabalho, os instrumentos para sua mensuração, os mecanismos institucionais de proteção social e o próprio autorreconhecimento - daqueles/as que se encontram fora do mercado de trabalho formal - como desempregados/as. No Brasil, mesmo em condições de retomada do crescimento econômico, o contingente de pessoas privadas de uma ocupação representa uma fatia importante do mercado de trabalho. Neste mercado de trabalho marcado pela precariedade (que o caracterizou desde o início de sua formação), as chances de acesso aos empregos estáveis e que garantam o acesso a direitos mostram-se diferenciadas para mulheres e para homens (assim como para negros/as e para brancos/as, para trabalhadores/as jovens para trabalhadores/as mais velhos/as, para os/as mais e para os/as menos escolarizados, etc.). As dificuldades de reinserção para certos grupos de trabalhadores/as (aqueles e aquelas com menor escolaridade, baixa qualificação ou idade mais avançada) podem levar a situações de desalento. Além disso, nesse mercado de trabalho os/as trabalhadores/as convivem com um sistema de proteção ao desemprego pouco efetivo, sendo bastante comum que desempregados/as continuem trabalhando na economia informal, enquanto buscam uma nova ocupação regular. Como resultado, o conjunto das experiências subjetivas do desemprego mostra-se multifacetado e a perda do emprego, seu significado e os sentimentos dela decorrentes (vergonha, frustração, desespero, etc.) adquirem variadas nuances, relacionadas com o papel que o trabalho remunerado adquire na trajetória de cada pessoa e com a formação das suas percepções de

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gênero. Por exemplo, para um homem casado de quarenta anos, socializado numa família monogâmica de tipo tradicional e ensinado desde pequeno que cabe ao homem sustentar a casa, assim como para uma mulher chefe de família, a perda do emprego trará consigo uma enorme carga de pressões sociais e desespero. Este exemplo nos mostra o grau de complexidade do fenômeno do desemprego e nos coloca como desafio a necessidade de refletir os vários aspectos que o envolvem.

No próximo capítulo, discutiremos, através de dados do IBGE e da RAIS, o movimento da força de trabalho no Brasil. Analisaremos também as características da população empregada e a mobilidade ocupacional dos/as trabalhadores/as na indústria de transformação e no setor metalúrgico no Estado de São Paulo e na cidade de Campinas. Essas análises fornecem importantes subsídios para a discussão posterior das percepções subjetivas dos/as metalúrgicos e metalúrgicas sobre a perda do emprego, que será o foco dos capítulos 3 e 4.

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Capítulo II – A economia e o setor metalúrgico: análise do emprego e do desemprego