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Capítulo I. A invenção da categoria desemprego, as relações sociais de sexo/gênero e o

1.3. Desemprego feminino e desigualdade de gênero no mercado de trabalho

Uma melhor compreensão da relação entre desemprego feminino e precariedade do trabalho pode ser alcançada através das trajetórias biográficas ou trajetórias de vida. A coleta de relatos de vida permite perceber como a intersecção das diferentes dimensões da vida (profissional, social e familiar) influencia suas escolhas e interfere em seus percursos profissionais. Neste sentido, o estudo empírico sobre trajetórias de vida de mulheres desempregadas realizado por Sabine Fortino (2009) nos permite perceber os efeitos da divisão sexual do trabalho e da construção social da imagem da mulher como “cuidadora” (e da mulher como força de trabalho secundária) na subjetividade feminina e na construção das trajetórias profissionais das mulheres. Comparando os itinerários de mulheres que entraram no mercado de trabalho nos anos 70 com os percursos daquelas que deram seus primeiros passos entre 1985-90, a autora identifica a existência de uma “geração precária”, que corresponde às mulheres mais jovens. Para estas mulheres a instabilidade profissional se manifesta em trajetórias intermitentes que alternam períodos de desemprego, períodos de atividade sob contratos de natureza temporária (contratos com duração determinada) ou sob contratos assistidos (o contrat aidé, isto é, emprego em que partes dos custos salariais são pagos pelo Estado), fases de formação profissional e um novo período de desemprego. Este tipo de trajetória tornou-se a norma para esta geração de mulheres pouco ou não qualificadas que entrou no mercado de trabalho entre a metade e o fim dos anos 1980. Para a geração de mulheres que entrou no mercado de trabalho no período anterior este tipo de trajetória constitui uma exceção: a instabilidade é vivenciada como um fenômeno recente. Segundo Fortino, o problema do conjunto das mulheres

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pesquisadas é que seu baixo nível de qualificação inicial, assim como o setor em que majoritariamente elas buscam trabalho (o terciário), aumentam suas dificuldades de reinserção. Além disso, existe o peso de escolhas feitas em prol da família ou da carreira do cônjuge em momentos anteriores. Todo este quadro as prejudica no momento em que elas buscam se reinserir no mercado de trabalho. Ao introjetarem a ideia de que cabe à mulher se sacrificar pela família, estas mulheres foram aprisionadas por “armadilhas da compaixão”, sendo levadas a abrir mão de trabalhar. Este sacrifício impediu que investissem em suas carreiras. É neste aspecto que as trajetórias femininas ainda diferem radicalmente das trajetórias masculinas. Os homens também são afetados pela instabilidade socioeconômica e pelo desemprego. No entanto eles conseguem ficar longe das necessidades e demandas da família e da vida doméstica graças à divisão sexual do trabalho que lhes retira esta carga (confiando-a às mulheres) e os legitima no papel social de provedores.

Nos países centrais, como vimos, houve um movimento que fez confluir as lutas operárias, as transformações no processo de produção e uma mudança dos papéis do Estado, que expandiu suas funções reguladoras sobre o mercado de trabalho. Os percursos históricos, as transformações econômicas e os embates políticos norteiam a construção (ou invenção) dos conceitos de desemprego e de “desempregado/a” nas diferentes sociedades. Por outro lado, estas definições e as instituições públicas que as criaram são profundamente marcadas por um viés de gênero. As representações sobre os papéis de mulheres e homens na família e no universo do trabalho assalariado foram uma influência marcante no processo de implantação das políticas públicas de pleno emprego e seguro-desemprego: a concepção de tais políticas foi guiada pelas ideias de que cabe ao homem ser, por excelência o provedor do lar e que a mulher, em princípio, pode prescindir do trabalho remunerado. Esta concepção data de uma época em que os comportamentos de atividade femininos eram diferentes. No entanto, mesmo no início do século XX e, posteriormente, no pós-guerra, havia mulheres que trabalhavam – e que provavelmente, não apenas precisavam, mas desejavam trabalhar. Além disso, intensas transformações culturais no século XX (a escolarização das mulheres, a difusão do questionamento do papel tradicional

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pelo feminismo, o advento da pílula anticoncepcional, o aumento dos divórcios e do número de mulheres que chefiam famílias, etc.), transformaram os comportamentos e as atividades das mulheres (ou seja, paulatinamente elas firmaram sua presença definitiva no mercado de trabalho), que passaram a se chocar com regimes de bem-estar ainda bastante refratários em reconhecer o direito da mulher ao trabalho (ABRAMO, 2007, FORTINO, 2009). Uma implicação deste fato é que a desigualdade das formas de acesso ao mercado de trabalho é reforçada: os postos de trabalho disponíveis para as mulheres constituem frequentemente, como mencionamos anteriormente, trabalhos em tempo parcial ou em contratos de trabalho com duração determinada. A baixa disponibilidade de creches públicas para crianças com menos de três anos, por sua vez, impele as mulheres a abandonarem temporariamente o mercado de trabalho ou a trabalharem sob os regimes acima. Por outro lado a socialização dentro de sociedades salariais (cujas políticas de pleno emprego reforçaram as imagens do homem provedor e da mulher cuidadora) influenciou a subjetividade e a autopercepção de várias gerações de mulheres e homens que cresceram dentro desse ambiente cultural. Apesar das mudanças que transformaram o comportamento feminino, como demonstrou Fortino (2009), há várias mulheres que, por força destes condicionamentos culturais, acabam se afastando do mercado de trabalho, comprometendo seu futuro profissional. É possível concluir, portanto, que a constituição histórica dos mecanismos de regulação do mercado de trabalho é um elemento determinante na construção, consolidação e constante reiteração dos padrões normativos que norteiam as relações de gênero.

A partir destas ideias podemos refletir sobre como se constituíram historicamente o mercado de trabalho brasileiro e as instituições que o regulam, e sobre as forças sociais que entraram em conflito, de modo a fabricar nossas concepções de desemprego e desempregado. Cabe refletir também sobre o significado que estes termos adquirem no cenário brasileiro, em que o mercado de trabalho está longe de ser estruturado como o dos países avançados, tornando difícil conceituar o desemprego e mensurá-lo. Finalmente, cabe pensar, no contexto nacional, que fatores determinam a construção da identidade/ subjetividade do/a desempregado/a. Estas questões serão analisadas no próximo

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1.4. A formação do mercado de trabalho brasileiro: da cidadania restrita à