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Capítulo I. A invenção da categoria desemprego, as relações sociais de sexo/gênero e o

1.2. O cenário a partir da década de 70: neoliberalismo, flexibilização do trabalho,

O período entre o pós-Segunda Guerra Mundial e a década de 70 caracterizou- se pela consolidação do modelo de organização da produção, caracterizado pela combinação entre a produção em massa, a aplicação dos princípios da organização racional do trabalho e a mecanização das unidades produtivas. Por outro lado, segundo Belluzo (2004), a ordem econômica instituída com o acordo de Bretton Woods permitiu aos Estados

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nacionais adquirir um alto grau de autonomia em relação ao sistema financeiro internacional. Essa autonomia se manifestou positivamente para o avanço econômico e social, o que era sustentado pelas coalizões políticas de cada país. Tal modelo de organização da economia começou a dar sinais de esgotamento a partir da década de 60, devido à limitação da capacidade de expansão dos mercados consumidores (e a consequente queda da taxa de lucros); à hipertrofia da esfera financeira, e ao aumento da concentração de capitais. Com as economias ocidentais em crise, deterioraram-se também as relações entre os Estados nacionais. A Nova Ordem Mundial reafirmou a supremacia norte-americana, a globalização do sistema financeiro e a internacionalização da produção. A autonomia dos países frente ao sistema financeiro internacional diminuiu, facilitando os deslocamentos de capital e a flexibilidade da produção. A crise motivou uma reorganização do sistema de acumulação a partir dos anos 70 (BELUZZO, 2013; BALTAR; KREIN, 2013; POCHMANN, 2001, 2005; HARVEY, 1992). Iniciou-se um conjunto de processos de reestruturação econômica e de reajustamento político que apontou na direção de um novo padrão de acumulação capitalista, caracterizado pelo surgimento de novos setores de produção, alto nível de inovação tecnológica e organizacional (HARVEY, 1992). Paralelamente, os governos de vários países adotaram medidas no sentido de diminuir barreiras comerciais, o que permitiu a aceleração do fluxo de mercadorias e serviços (o aperfeiçoamento dos sistemas de transportes e de circulação de informações também contribuiu neste sentido). Sob pretexto de diminuir o crescente desemprego, em vários países as leis trabalhistas foram modificadas para permitir a flexibilização das relações de trabalho. Esta reorganização do mercado de trabalho em escala mundial aumentou a mobilidade geográfica das empresas, fazendo crescer as redes de subcontratação (FREYSSINET, 1997; APPAY 1997; POCHMANN, 2001, 2005; HARVEY, 1992). Além disso, generalizaram-se na Europa e nos EUA formas de trabalho consideradas atípicas (em relação ao trabalho em tempo integral e à contratação por tempo indeterminado), destacando-se o trabalho em tempo parcial e os contratos por tempo determinado (SALAIS, BAVEREZ, REYNAUD, 1986; FREYSSINET, 1997). Em várias partes do mundo, resgataram-se a utilização de sistemas de trabalho informal, doméstico, familiar, artesanal, etc., caracterizados pelo uso predatório da mão de obra - sobretudo feminina- por meio de

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baixos salários, longas jornadas, precariedade de vínculos empregatícios e péssimas condições de trabalho (FREYSSINET, 1997; APPAY 1997; POCHMANN, 2001, 2005; HARVEY, 1992; HIRATA, 2003; 2009). A reestruturação trouxe também consigo o crescimento do desemprego estrutural - sobretudo o desemprego de longa duração (TOPALOV, 1994; DEMAZIÈRE, 1995).

Segundo Gaffikin e Morrissey (1992), no cenário dos anos 70 e 80, a alta inflação e a queda do crescimento abalaram o consenso em torno das políticas keynesianas, o que motivou a adoção de medidas para a contenção do ciclo inflacionário baseadas na austeridade nos gastos públicos (e, no caso da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, no controle dos salários).

Segundo Foucault (2008), a partir dos anos 70, a crise econômica que se abateu sobre as economias dos países centrais fez com que os mecanismos de segurança (criados para produzir liberdade) sofressem processos de saturação, a ponto de não mais cumprirem os objetivos para os quais haviam sido criados (por exemplo, as políticas de pleno emprego e seguridade social não se mostraram, no contexto da crise, capazes de conter totalmente a escalada do crescimento do desemprego). Desse modo, a expansão das atribuições do Estado passou a ser contestada, dando margem para que a ideia de que “sempre se governa demais” – que até então tivera menor influência nos rumos da política pública nos países centrais - voltasse ao centro do debate político. Entretanto, o liberalismo que emergiu e ganhou destaque a partir dos anos 70 – o neoliberalismo - tinha características distintas do liberalismo do século XIX. Em primeiro lugar por que, segundo Foucault (2008), o neoliberalismo surgiu na qualidade de oposição a uma governamentalidade baseada na intervenção estatal, tendo a crise econômica dos anos 70 como moldura histórica. A crítica neoliberal, feita em nome da liberdade econômica, tinha como alvo os programas de intervenção sobre a pobreza e os programas sociais. O intervencionismo, segundo os neoliberais, resultaria no enrijecimento dos mecanismos de poder e em distorções econômicas. Em segundo lugar, por que para a ciência de governo neoliberal, não se trata de abolir a atuação do Estado na sociedade, mas de utilizar técnicas de governo que fomentem a ampliação da racionalidade do mercado para todos os campos da vida social. O

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postulado da necessidade de redução da atuação estatal no fornecimento de serviços públicos, que caracteriza a ciência de governo neoliberal, norteou uma prática de governo no qual a retração das políticas sociais é uma forma de dirigir o comportamento das pessoas – a redução dos investimentos em saúde e educação e a conseqüente queda da oferta e da qualidade desses serviços, por exemplo, é uma forma de induzir os indivíduos a buscar tais serviços no mercado.

Cabe destacar que uma postura antiestatista também emergiu no campo da esquerda nos países centrais. Nas décadas de 80 e 90, os movimentos sociais (o femininsmo, o movimento gay, o movimento negro, os grupos de imigrantes, etc.) nos países europeus e, principalmente nos Estados Unidos, se insurgiram contra a burocratização do Estado e contra os vieses de sua atuação, pois apesar das conquistas dos anos 60 e 70 (políticas de ação afirmativa, por exemplo) os problemas relacionados às especificidades de cada um desses grupos não eram reconhecidos pelo poder público. Segundo Fraser (2007), os movimentos sociais mobilizaram-se ao redor de eixos de diferença, ou seja, as reivindicações de reconhecimento de suas particularidades culturais tornaram-se sua principal bandeira nos anos noventa. Entretanto, segundo a autora as lutas pelo reconhecimento fizeram com que a luta pela redistribuição (isto é, por políticas que diminuíssem as desigualdades econômicas e favorecessem a equalização de oportunidades para os grupos desfavorecidos) fosse relegada ao segundo plano. Esse fato, além de contribuir para a fragmentação política dos movimentos, deixou o cenário livre para a política neoliberal de redução de gastos públicos. Os intensos cortes de gastos realizados nas economias ocidentais incidiram sobre as políticas voltadas para os grupos mais vulneráveis (como as mães solteiras, que perderam o auxílio econômico que recebiam para ajudar na criação dos filhos), o que acentuou as desigualdades.

As políticas de pleno emprego e de seguridade social também foram duramente atingidas, agravando o problema do desemprego em massa nas economias centrais. De acordo com Gaffikin e Morrissey (1992), houve também uma mudança na forma de se enxergar o desemprego. O desemprego passou a ser considerado um efeito perverso de algo visto como urgente e necessário: o controle inflacionário. Para Castel (1998) o crescimento

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do desemprego em larga escala nos países centrais tornou-se problemático, pois essas sociedades construíram suas sociabilidades com base no trabalho assalariado e no pleno emprego. Nessas sociedades em que o desemprego era residual e temporário o crescimento do desemprego de longa duração representa a nova face da questão social, o novo foco de disputas políticas. Atualmente há a articulação de grupos de desempregados/as (a exemplo do movimento Agir ensemble contre le chômage! – AC!, na França) cuja mobilização política se dirige ao Estado, reivindicando soluções públicas (políticas de geração de emprego) para a situação de precariedade em que se encontram (AMORIM, 2007). Um desses temas em disputa é a proposta de redução da jornada de trabalho. enquanto os movimentos de desempregados defendem que ela deve ocorrer sem prejuízo dos salários dos/as trabalhadores/as, alguns governos – a exemplo do governo francês, na gestão de Lionel Jospin, que em 1998 pôs em curso uma serie de ações visando permitir a redução da jornada de trabalho semanal dos/as trabalhadores/as dos setores público e privado. A “Lei das 35 horas” implicava, no entanto, em redução salarial, proporcional à redução do tempo de trabalho (DE GRAZIA, 2007) e, por isso, suscitou uma série de protestos.

É preciso lembrar que mulheres e homens não vivenciam o desemprego da mesma forma, porque são diferentes as formas de acesso ao mercado de trabalho para cada sexo. Segundo Rogerat (2009), o desemprego feminino é frequentemente um desemprego de mulheres pouco qualificadas, que obtêm unicamente salários baixos e, quando encontram trabalho, isso ocorre em condições tão precárias que elas permanecem regularmente à margem do assalariamento. Para esta autora, este tipo de desemprego indica o incremento das desigualdades de gênero paralelo ao forte aumento do contingente feminino no mercado de trabalho.

Os indicadores sociais referentes ao desemprego e ao emprego femininos são também indicadores dessa discriminação de gênero, demandando atenção redobrada sobre os critérios que lhes servem de base. Deste modo é possível evitar que situações de desemprego sejam mascaradas pela caracterização da privação de trabalho como inatividade, ou que a constatação da forte presença feminina no mercado de trabalho esconda a inserção de grande parte das mulheres em trabalhos em tempo parcial e trabalhos

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temporários. Num cenário de flexibilização do trabalho e do emprego, as estatísticas gerais, quando tratam tais formas de trabalho da mesma maneira que o emprego em tempo integral, podem ocultar a precariedade. O que aparece como redução do desemprego (sobretudo feminino) pode significar aumento do trabalho mal pago, muitas vezes realizado de forma irregular ou intermitente, e que torna extremamente duras as condições de vida das mulheres que têm este tipo de emprego como única opção de inserção no mercado de trabalho (MARUANI; REYNAUD, 1993; MARUANI, 2002).