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CAPÍTULO 1: A IDEIA DA HISTÓRIA NATURAL E A TEORIA CRÍTICA

3. O desencantamento do mundo

Weber descreveu o ápice do progresso científico e suas consequências na contemporaneidade em um discurso proferido na Universidade de Munique em 1918, intitulado A ciência como vocação (1982). A partir dos problemas encontrados quanto às condições de pesquisa acadêmica na Europa e nos EUA e a mediocridade da educação, além de uma série de observações quanto aos docentes e discentes em seu exercício, apresenta uma ciência que “entrou numa fase de especialização antes desconhecida” e enfatiza que tal processo terá continuidade uma vez que “não só externamente, mas também interiormente, a questão está num ponto em que o indivíduo só pode adquirir a consciência certa de realizar algo verdadeiramente perfeito no caso de ser um especialista rigoroso” (CV 160). O mundo de convenção, portanto, tem se tornado cada vez mais elaborado, mais sutil e mais autônomo.

Estas considerações problematizam, no seu entendimento, o que seria a ciência como vocação, em outros termos, até que ponto a dedicação íntima e a perícia dependem

mutuamente e até que ponto a ciência tem se enveredado demasiadamente pela técnica. Para além das condições internas do pesquisador e destes problemas levantados, reconhece-se que a ciência, ainda que fixada como segunda natureza, sofre da mesma transitoriedade histórica.

Entende-se que

toda ‘realização’ científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser

‘ultrapassada’ e superada. Quem desejar servir à ciência tem de se resignar a tal fato. As obras científicas podem durar, sem dúvida, como ‘satisfações’, devido à sua qualidade artística, ou podem continuar importantes como meio de preparo. Não obstante, serão ultrapassadas cientificamente — repetimos

—, pois é esse o seu destino comum e, mais ainda, nosso objetivo comum.

Não podemos trabalhar sem a esperança de que outros avançarão mais do que nós. Em princípio, esse progresso se faz ad infinitum. (CV 164)

É interessante notar a semelhança existente entre a afirmação de Weber quanto à ciência, relegada a ser sempre superada, e a advertência feita por Adorno quanto ao profissional que pretende enveredar pelos caminhos da filosofia no ensaio A atualidade da filosofia3: a transitoriedade do que está sob o mundo de convenções é, simultaneamente, desafiador e desesperador. Desafiador, pois há todo um devir que, tal como em Hegel, coloca a verdade em marcha; desesperador, pois acentua a ausência de totalidades prévias, plenas de sentido imanente, como argumenta Lukács.

A própria ciência é um projeto que se reconfigura, que perde postos para outros mais adequados à realidade histórica sempre em movimento. A ideia de que a ciência encontre verdades absolutas é superada por sua contingência, à qual ninguém pode fechar os olhos e erigir técnicas e teorias como verdades definitivas. Embora a especialização da ciência tenha interesses em alcançar conhecimentos absolutos de determinadas áreas, “a crescente intelectualização e racionalização não indicam (...) um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos” (CV 165), ademais, o progresso científico do século XX é uma fração deste processo de intelectualização que a sociedade vive há milhares de anos.

Tal processo é entendido como todo o esforço humano empregado em vencer o medo da natureza primeira, do desconhecido. Sob este esforço a humanidade aprendeu que não há nada que não possa ser conhecido e dominado. A intelectualização da qual o progresso científico é o maior representante desencadeou um processo de desencantamento do mundo.

Garantiu-se e continua-se a garantir a lucidez da razão e o domínio sobre todas as coisas tornando-as conhecidas, dominando-as através do pensamento, eliminando o temor e alcançando, supostamente, maiores seguranças, afinal “já não precisamos recorrer aos meios

3 ADORNO, T.W. “A atualidade da filosofia”. In: Primeiros escritos filosóficos. São Paulo: Editora UNESP, 2018, p. 431-55.

mágicos para dominar ou implorar aos espíritos, como fazia o selvagem, para quem esses poderes misteriosos existiam. Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço” (CV 165).

O sentido da vida proporcionado pela totalidade perdida e que Lukács reivindica é relegado ao esquecimento. As grandes perguntas e respostas que dão significado à vida humana não são problemas da ciência, uma vez que se as ciências naturais se propuserem a investigar o sentido da vida, eliminarão todos os sentidos possíveis, pois o que importa é o efeito de tudo o que é produzido no campo da vida biológica e do conhecimento. Em última instância, este caráter de significado da vida, esta pressuposição “não pode ser provada por meios científicos — só pode ser interpretada com referência ao seu significado último, que devemos rejeitar ou aceitar, segundo nossa posição última em relação à vida” (CV 170). Fica cada vez mais evidente que a racionalidade vigente, edificada sobre a dominação da natureza, constituinte da civilização, não tem como objetivo a felicidade humana, seus fins intrínsecos, mas tão somente uma forma de manutenção de suas formas de vida, de suas convenções. Este estado de instrumentalidade da ciência para com a sociedade estimula a problematização quanto a sua real contribuição na vida prática. Para responder a este incômodo, Weber enumera as contribuições mais essenciais da ciência à vida: a) a tecnologia no controle da vida, b), o treinamento, a metodologia, para o pensamento, e c) a clareza, oriunda do exercício metódico do pensamento.

Neste panorama vazio de sentido, Weber concebe a filosofia como aquela ciência especializada que, no entanto, busca as respostas fundamentais da vida. Quando não a filosofia, são a teologia e as expressões de fé que têm incorrido em irracionalismos. No entanto, como a filosofia, as ciências que compõem o quadro de intelectualização devem ser vividas por vocação no sentido de estar “a serviço do auto-esclarecimento e conhecimento de fatos inter-relacionados”. Toda forma mística de justificação da vida é contestada. Weber acusa a tentativa de incursão religiosa no pensamento científico ao afirmar pairar mais alto que a “profecia acadêmica que não compreende, claramente, que nas salas de aula da universidade nenhuma outra virtude é válida a não ser a simples integridade intelectual” (CV 180). Deste modo, diagnostica-se a carência de humanidade na relação pautada pela sociedade intelectualizada:

O destino de nossos tempos é caracterizado pela racionalização e intelectualização e, acima de tudo, pelo ‘desencantamento do mundo’.

Precisamente os valores últimos e mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino transcendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações humanas diretas e pessoais. (CV 182)

O controle da vida efetivado pela ciência, há pouco enumerado como uma das contribuições da ciência para a vida prática, culminou na burocratização dos processos da civilização, do enredo social. A burocratização do trabalho e sua divisão dão forma a todo o sistema de vida social de modo que a cultura tem sido radicalmente administrada. Weber (CV 238.) elucida que a economia monetária é a principal causa desta crescente e ampla administração: toda a dinâmica social, as estratificações sociais e profissionais etc., são estruturadas conforme a economia monetária moderna. Para tal organização social há a exigência de uma vigilância enérgica de modo que nada saia do controle, mesmo que haja mecanismos de corrupção dentro da própria gestão. Como expressão da íntima relação com a economia, esclarece-se que

o grau de burocratização das comunidades urbanas com economias monetárias plenamente desenvolvidas foi, em geral, relativamente maior que o dos Estados contemporâneos, muito mais extensos. Não obstante, tão logo esses Estados foram capazes de desenvolver sistemas ordenados de tributo, a burocracia desenvolveu-se de forma mais global do que nos Estados-cidades.

Sempre que o tamanho destes permaneceu confinado a limites moderados, a tendência de uma administração plutocrática e colegial, pelos notáveis, correspondeu mais adequadamente à sua estrutura. (CV 243)

Numa sociedade regida pela economia, cujas relações interpessoais são orientadas pelas relações de trabalho e de mercado, relações cada vez mais especializadas e esvaziadas de pessoalidade, a “objetividade” torna-se critério de sucesso e manutenção da vida no status quo. Para esta mecânica social, “o cumprimento ‘objetivo’ das tarefas significa, primordialmente, um cumprimento de tarefas segundo regras calculáveis e sem relações com pessoas” (CV 250). Tal modelo de organização da vida corresponde a uma demasiada atenção aos meios, aos processos, e não aos fins, aos objetivos. A razão tornara-se um instrumento de calculabilidade e não mais de descoberta e consolidação de sentidos de vida: tornara-se instrumento de dominação, exercício de controle. Se outrora os esforços humanos eram empreendidos para fins objetivos, doravante, encontram na racionalidade, amparada pelos avanços tecnológicos, a cumplicidade necessária para servir apenas ao imediato. Acresce a este investimento a centralidade de uma subjetividade dissociada da totalidade que, em sua busca lírica desta totalidade perdida essencialmente fragmentada, proporciona a atividade totalitária no exercício subjetivo de sua construção. Resulta disso que a natureza da burocracia é aprimorada cada vez que se torna mais desumanizada, eliminando os sentimentos que constituem as relações humanas e que não cabem no âmbito da calculabilidade (CV 251).

O que agora, portanto, fica consolidado, enrijecido, absolutizado nas formas de vida corrente, impõe-se com violência. A resistência ao progresso que impele para um horizonte cada vez mais dominador, eliminador do medo e do sofrimento, encontra dificuldades de proteger o humano dos paradoxos da ciência. Afinal, esta superação do passado, do desconhecido, da natureza, embora evidencie a alegria e a esperança de novas conquistas, guarda, também, a memória do sofrimento, da morte e da ruína: do desprezo pelo que fora superado e que talvez seja o mais vital — o sentido da vida.