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CAPÍTULO 1: A IDEIA DA HISTÓRIA NATURAL E A TEORIA CRÍTICA

4. A história como ruína

A segunda natureza — convenção social, resultado da racionalização da vida, do desencantamento do mundo — é instauradora da história. Ela tem sua permanência consolidada através da sedimentação dos caracteres culturais dentro do aspecto fluido dos acontecimentos. No ensaio de 1932, “Ideia da história natural”, Adorno evoca a concepção benjaminiana acerca da história. Ao apregoar a necessidade de interpretar a história rompendo a hegemonia do sujeito sobre a realidade, hegemonia causadora da perda de sentido de vida, cabe resgatar o passado, o decurso da história, no interior dos acontecimentos.

Neste sentido, para Benjamin (AH 11), a história é entendida como memória do passado, porém, conforme a transitoriedade dos próprios acontecimentos, “a verdadeira imagem do passado passa por nós de forma fugidia. O passado só pode ser apreendido como uma imagem irrecuperável e subitamente iluminada no momento do seu reconhecimento”. A história e os acontecimentos não podem ser tomados como princípio fundamental conforme as pretensões do historicismo, uma vez que não é possível que algo que se perde o tempo todo, o instante, seja erigido como permanente — petrificado. Entretanto, Benjamin também alega que o próprio sujeito não tem condições de ser o fundamento da verdade sobre a vida e o viver, uma vez que, embora a experiência histórica perpasse e seja construída pelos indivíduos, paradoxalmente,

a verdade nunca se manifesta em relação e muito menos numa relação intencional. O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional, formado por ideias. O procedimento que lhe é adequado não será, assim, de ordem intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento nela. (ODTA 24)

Esta experiência de imersão na história evidencia a necessidade de uma crítica imanente e não de uma crítica transcendental como as novas ontologias e o próprio positivismo têm almejado realizar. A experiência na imanência, a ideia de uma imagem do passado que escapa ao domínio do sujeito, reafirma a ideia da transitoriedade, sobretudo da impotência humana do controle da própria história. História e natureza não são dominadas tal como pretende o projeto científico moderno de experimentação e controle, mas são realidades que se revelam fugidias e evidenciam a vulnerabilidade humana ante a sua própria condição natural e, simultaneamente, histórica. A iminente tarefa da filosofia consiste em reconhecer esta imagem fugidia da história, o agora, carregada de natureza e a imagem permanente da natureza imbuída de história.

A fixidez dos conceitos e da experiência nas ciências modernas, nesta experiência interpretativa da história, é demasiada agressiva porque determina o indeterminável e pereniza o que é contingente. O que é transitório não é passível de limitações rígidas como nos sistemas que harmonizam as partes no todo e conserva, numa segunda natureza, uma ordenação do mundo. Ao contrário, “a palavra ‘história’ está gravada no rosto da natureza com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural [...] está realmente presente sob a forma da ruína” (ODTA 189). A história, construída a partir da natureza, se revela como queda no seu decorrer; é como perda que permite o presente e o futuro, é como descontinuidade que permite a continuidade. Entretanto, justamente por ser transitória, a história não é tomada, por Benjamin, como fato duro, rígido, fixo tal qual um objeto de experimentação empírica. Ao contrário, “articular historicamente o passado [...]

significa apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung) quando ela surge como um clarão num momento de perigo” (AH 11). Trata-se de uma iluminação efetivada por diversos elementos da memória que, se avivados, rearticulam os significados dos acontecimentos.

Rearticular os significados dos acontecimentos, incessantemente, através dos lampejos de memória, das lembranças dos eventos que são suplantados pelo presente, caracteriza um trabalho iconoclasta para o qual a alegoria muito contribui. De modo diverso ao símbolo, a alegoria barroca concebe a imagem como fragmento que dilui a beleza simbólica e elimina a falsa aparência de totalidade; apresenta-se com ambiguidade, transgride gêneros, viola fronteiras, perturba a paz e a ordem que representam a ruína na realidade efetiva. O caráter fechado e total do símbolo, representante desta construção cultural tornada segunda natureza, encontra uma oposição lancinante na função negativa da alegoria. Na exposição imanente da história, a alegoria revela a história não como um “processo de vida

eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio” (ODTA 189). Segundo Buck-Morss (1981, p. 126), esta interpretação da história evidencia que

a alegoria não era uma representação arbitrária da ideia que retratava. Ao contrário, era a expressão concreta do fundamento material dessa ideia.

Especificamente, Benjamin havia demonstrado que ‘o tema do alegórico é, decisivamente, a história’ expressada em forma de ruínas, concretamente, como a decadência e o sofrimento da ‘primeira natureza’.

Se a história como produto humano, manifestação de sua cultura, é tomada como ruína, a noção de natureza na qual a história se apoia e, portanto, o fundamento de todo acontecer, também é alterada por esta ideia que a alegoria barroca articula. Benjamin reconhece que a natureza é a mestra dos grandes artistas barrocos, entretanto “a eles não se mostra no botão da flor, mas na extrema maturidade e na decadência das suas criações”

(ODTA 191). O artista barroco percebe a natureza, primeira natureza, submissa ao processo histórico, como “eterna caducidade”. Tal caducidade representa a figura daquilo que foi renegado, rejeitado, superado e constantemente é combatido pelo progresso do pensamento, da cultura, da ânsia por soberania humana sobre suas próprias bases vitais. O artista barroco, portanto, em sua expressão alegórica, evidencia a “marca do terreno, demasiado terreno”

(ODTA 191), no sentido de alertar não apenas para a natureza esvaziada pela história, mas, sobretudo, para a igual caducidade da cultura. Ambas, natureza e história, estão condenadas ao desaparecimento. Entretanto, a ausência da natureza ante os interesses da civilização é apenas uma ilusão reiteradamente afirmada no mundo de convenções, pois tal ruína resiste ao presente justamente com seu caráter amedrontador, desesperançado, porém sempre reivindicador de sua condição de fundamento de todo devir. Tanto a história quanto os indivíduos são amedrontados e permanecem em observação vigilante ante esta força não mais tão desconhecida, entretanto, terrivelmente temida.

Esta natureza, presumivelmente arruinada, que porta também a história em ruínas, pois submissa à sua própria transitoriedade, cujo passado é absorvido e rememorado como superado, destruído, rejeitado pela ideia do progresso, evidencia a condição de permanente declínio do presente. Enfatizar a fugacidade da história, que arrogantemente se presume superior à natureza, traz a lume o fato de que “ao privilegiar a coisa face à pessoa, o fragmentário frente à totalidade, a alegoria é o contraponto do símbolo, mas por isso mesmo igual a ele em força [...]. Sua função não é a de personificar o mundo das coisas, mas a de dar forma mais imponente às coisas, vestindo-as de personagens” (ODTA 199).

O símbolo harmoniza a totalidade dos significados, fecha os sentidos como se fossem plenos dentro do seu sistema: como todo sistema, determina previamente tudo o que nele se encerra sob o ponto de vista dos sujeitos que edificam tais símbolos. Neste sentido, através da alegoria, a história e a natureza são libertadas dos limites simbólicos de modo a constranger a harmonia clássica do entendimento sobre sua essência e constituição. Este procedimento crítico é efetivado na expressão alegórica da obra Angelus Novus de Klee, analisada por Benjamin:

Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas no paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as coisas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos progresso é esse vendaval. (AH 14)

Esta percepção alegórica da realidade, da história em sua transitoriedade, corrobora a perspectiva lukacsiana de um mundo de convenções fragmentado, sem sentido, no qual os sujeitos se encontram isolados e tentam reconstruir uma totalidade perdida. Tal totalidade, entretanto, como toda segunda natureza, continua não sendo a expressão das almas humanas, nem um lugar para se compreender pessoas, senão trabalhadores que cumprem a dinâmica automatizada deste mundo administrado. Benjamin reconhece, alegoricamente, que a indiferença da racionalidade moderna quanto ao sentido da vida, sua felicidade, portanto, tem efetivado o sofrimento.