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CAPÍTULO 1: A IDEIA DA HISTÓRIA NATURAL E A TEORIA CRÍTICA

5. História natural

Neste conjunto de ideias acerca do progresso, da civilização e da cultura, os conceitos de história e natureza são articulados a fim de vislumbrar alguma solução ao problema do historicismo. De antemão, Adorno deixa claro que ambos os conceitos têm origem estética (DIN 355), tanto que são recolhidos da Teoria do romance e da Origem do drama barroco. Entretanto, tais conceitos não incorrem em mera abstração uma vez que ao serem “uma ferramenta teórica para desmistificar os fenômenos sócio-históricos e extrair

deles seu poder sobre a consciência e a ação” (BUCK-MORSS, 1981, p. 129), deixam de ser conceitos abstratos para agir em constelação na história concreta.

Ao comentar o conceito de segunda natureza de Luckács como sendo um mundo de convenções, mundo alienado, vazio de sentido, mundo da mercadoria, mundo das coisas criadas pelo ser humano e, no entanto, danificado por eles mesmos, Adorno assevera que se trata de uma realidade produzida historicamente que se torna estranha, cujo problema consiste na possibilidade de esclarecer tal mundo alienado, coisificado, morto (DIN 356). O ensaio apresenta claramente seu objetivo: decifrar o mundo cifrado sob o signo da morte que expressa tanto o que fora suprimido, violentado, quanto o que suprime, violenta como absoluto, signo petrificado.

Esta tarefa causa incômodo em sua expressão e interesse, pois a segunda natureza é concebida como um calvário de interioridades. Algo de frio, gélido, enrijecido, esquecido e assustador encontra-se presente na vida humana e atua com a força de uma indiferença ao que dinamiza o humano: a vida. Este calvário de interioridades representa toda a dinâmica cultural que não porta mais os sentidos da vida, não proporciona nem tange a vida lírica: trata-se de uma realidade impessoal. A mudez desta realidade sem sentido é diferente da mudez inerente à primeira natureza. A primeira natureza é esta realidade sensível a ser transformada pelas capacidades humanas, originalmente alheia a seus valores e suscetibilidades. A segunda natureza é, deveras, formada pelos próprios indivíduos que sofrem, paradoxalmente, com seu próprio desprezo. Para despertar estes significados petrificados, reanimar a história que fora tornada calvário, se faz necessário conhecer esta parcela da história que foi paralisada, que foi transformada em natureza, em fixidez. Resgatar o que foi cristalizado significa trazer novas luzes ao que compromete o próprio presente: a história, morta, precisa ser ressuscitada (DIN 357).

Benjamin é evocado quando de sua concepção acerca desta mesma natureza que Lukács entende petrificada. Sua concepção é que a alegoria tem a capacidade de devolver o fluxo do que se tornou imóvel no avanço da cultura: põe a segunda natureza em movimento, recupera a transitoriedade inerente à vida — primeira natureza — e, por conseguinte, reaviva a cultura. Deste modo, a palavra-chave que Adorno entende representar a convergência entre Lukács e Benjamin é a transitoriedade. Se para o primeiro há uma vida paralisada, retirada do fluxo, sepultada e que só pode ser resgatada através de uma ressurreição, para o segundo, a alegoria tem a pretensão de reavivar a natureza mortificada, trazendo-a da distância infinita para a proximidade infinita e interpretá-la filosoficamente.

Após uma justificativa acerca da alegoria como modo de expressão e que permite representar não uma abstração, mas uma relação histórica, pois se trata de uma expressão dentro de um processo de interpretação histórica concreta, Adorno argumenta que não se pode tratar o tema da transitoriedade, da natureza e da história em separado, mas em constelação.

Isso significa que, no fato histórico há, igualmente, a natureza que se apresenta como história e a história marcada pela natureza. Para ser mais exato, neste trabalho conceitual crítico, na história concreta, “todo ser ou todo ente deve ser compreendido apenas como cruzamento do ser histórico e do ser natural. Enquanto transitoriedade, a proto-história está absolutamente presente” (DIN 360).

Esta ideia do entrecruzamento do que se apresenta como história e do que se apresenta como natureza no concreto da história se contrapõe à ideia de que elementos históricos sejam tomados como essenciais e estes, por sua vez, sejam demasiadamente relativizados. Nem a natureza nem a história devem ser tomados como princípios primeiros, senão como em relação dialética constituinte do presente. Deste modo, segundo Buck-Morss (1981, p. 122), “os conceitos de natureza e história não eram excludentes senão mutuamente determinantes: cada um era a chave para a desmistificação do outro”. Trata-se de uma ferramenta de interpretação filosófica da história e do presente.

Adorno se preocupa em tensionar a realidade através destes conceitos para extrair seu núcleo de verdade. Ao entender o caráter não-intencional da verdade, cabe lançar-se ao fato e romper a falsa totalidade que a tudo pretende reconciliar tal como um sistema que não permite outras visadas, outras descobertas, outros modos de ser. Por isso é necessário expor como segunda natureza, como historicamente produzido, o que aparece como natural. Do mesmo modo é coerente expor como natureza o que estritamente é apresentado como histórico. A aparência é a marca desta falsa totalidade que se deseja vencer. É ela o que mais imediatamente os indivíduos percebem e sob a qual se orientam também como mortos-vivos para o calvário da civilização. Ressuscitar o passado que jaz sob a força do mundo de convenções através da aproximação do presente a este resquício amortalhado significa rearranjar o modelo de vida vigente e trazer vida aos quase mortos. Thomson (2010, p. 178) elucida o que Adorno pretende, com muita clareza:

o que Adorno quer argumentar é que tudo o que nos parece natural, tudo o que temos como certo ou que parece ser, ou parece ser feito, porque é exatamente assim que as coisas são, precisa ser desencantado, ser demonstrado como o produto de um processo de devir. Isto desfaz a autoridade do que existe, daquilo que não afirma ser mais nada que a maneira do mundo: nada disto precisa ser. Mas ao mesmo tempo a natureza

não pode ser simplesmente dissolvida na história, que se tornaria uma lei igualmente “natural”, mas uma lei de mudança e transitoriedade ao invés de uma lei de estabilidade e permanência: estaríamos simplesmente substituindo a autoridade de um tipo de lei por outra, o devir histórico superaria todos os momentos específicos da história.

Ao atentar para o exercício de desmistificação, Thomson não deixa de advertir que não se trata de destruir os significados históricos, as normas, os costumes. Dirimi-los não levaria a outra dinâmica senão à formação de novos ideais e modos de vida que seriam, por sua vez, igualmente naturalizados. O processo racional de dominação e de supremacia da organização humana sobre a natureza continuará a naturalizar elementos históricos e, em algum momento, relativizar elementos mais essenciais. Sob a aparência desta segunda natureza, desta ordenação da vida, os indivíduos sempre estarão em busca de algo que não lhes será dado: sentido de vida. Por isso a tarefa da filosofia como exercício de exposição e interpretação da história concreta se faz sempre necessária e urgente. Deve-se expor a segunda natureza como o que ela é para revelar o que a ela sucumbiu, bem como apresentar a primeira natureza para revelar o que ela sustenta e é negligenciada.

Este movimento interpretativo evidencia algo mais, que “o presente [...] produz o passado, e mais especificamente, esse passado imediato de seu próprio presente que é hoje estigmatizado como arcaico, antiquado, mítico, supersticioso, obsoleto ou simplesmente

‘natural’” (JAMESON, 1997. p. 134). É este processo que significa mediação dialética para Adorno: exercer a tensão entre opostos a partir dos momentos e objetos que, nesta perspectiva histórico-natural, são tidos como escombro, fragmento, no calvário da história linear. O presente, o instante, é este lugar de desmistificação. Entretanto, é sensato concordar com a consideração que segue se não se deseja entender Adorno como pessimista, como parte de seus comentadores aludem:

(...) ao indicar o traço daquilo que ainda não foi finalmente obliterado pela dominação da natureza pelo homem, a filosofia atesta uma esperança de transformação futura. Esta é uma figura complexa, porém, já que essa transformação terá de ocorrer por meio da própria filosofia crítica cuja tarefa está sendo demonstrada. (THOMSOM, 2010, p 181)