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―A História do globo é, claro, feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros; mas, como tentarei mostrar, é a conquista da América que anuncia e funda nossa identidade presente‖.

Tzvetan Todorov (1996, p. 06).

―Entrelaçada envolvida dentro deles há uma multiplicidade de trajetórias, cada uma das quais com sua própria espacialidade e temporalidade, cada uma das quais foi e ainda é contestada, cada uma das quais poderia ter-se tornada muito diferente (e mais, onde a interseção dessas histórias serviu, muitas vezes, para reforçar as linhas de dominância existentes)‖.

Doreen Massey (2008, p. 207).

O sistema-mundo moderno-colonial13

significa a forma com que a sociedade vem sendo construída em um contínuo vir-a-ser pós-1492. A partir desta data, o mundo conhecido passou a ser maior e mais diverso do que imaginava a Europa. Uma multiplicidade de histórias-trajetórias começou a se fazer e se desfazer sobre os ―olhares‖ do ―ocidente‖, tendo como centralidade o pensamento eurocêntrico 14. Consideramos que a Europa, neste processo, foi se descobrindo e se reconfigurando pelo encontro e/ou desencontro de outros espaços e outras gentes. Criando assim,

13 A constituição do sistema-mundo moderno-colonial será discutido no tópico 1.3.

14 Podemos entender como pensamento eurocêntrico, um conjunto de ideias dominantes na modernidade que tem a Europa como sendo o centro, ou seja, como um modelo de padrão civilizatório em todas as suas dimensões: econômica, política, cultural, natural, científico etc. de onde poderemos analisar a partir desse referencial as outras sociedades. Dessa forma, existe um modelo verdadeiro, o europeu, o restante, passa a ser o ―outro‖. E como ―outro‖, tende a ser, necessariamente, não só diferente, mas, também, incorreto e inferior. Cabendo ao restante se adequar aos moldes estabelecidos pelo modelo padrão de desenvolvimento europeu em todas as suas dimensões.

seu ―ocidente‖, seu ―oriente‖, os ―bárbaros‖, os ―irracionais‖, ao mesmo tempo em que criava e afirmava a sua cultura, racionalidade, civilidade...

Buscamos, dessa maneira, trazer para o debate as territorialidades em disputa na constituição do sistema-mundo moderno-colonial. Disputas estas que se dão a partir do ―descobrimento‖ e desencontro com a América. Consideramos nesta disputa, também, as identidades em construção, invenção e recriação, juntamente aos modos em que construímos nosso imaginário sobre os outros e sobre os espaços em que ocupamos.

Na complexidade do que entendemos ser o sistema-mundo e a moderna-colonialidade, propomos compreender a multiplicidade de gentes que a mesma compõe, logo, a multiplicidade de sociedades, assim como a multiplicidade de territorialidades e de histórias-trajetórias que ela envolve. Nesta perspectiva, ―Cada gente tem o jeito dele‖, salienta a Kaiowa Alzira da RID ao demonstrar que cada um tem um modo específico de fazer-se humanamente, de ser gente, possibilitando compreender que cada gente, carrega um pouco de si e dos outros, fazendo-se gente e gentes.

Entretanto, essa multiplicidade de territorialidades foi ignorada pelo pensamento hegemônico eurocêntrico que foi imposto a todos as sociedades após o período colonial. Apesar disso, enxergamos ainda nitidamente, por meio da re-existência das gentes, que a disputa pelos territórios/territorialidades com a hegemonia15

moderna-colonial continua sendo uma realidade mesmo após mais de meio milênio do ―descobrimento‖. É essa diversidade existente e os conflitos territoriais engendrados pela imposição do sistema-mundo moderno-colonial que buscaremos demonstrar ao longo de nossa discussão.

Essa diversidade de relações e conflitos que envolvem as gentes e a natureza possibilitou a construção de diferentes territorialidades e modos de vida. E, neste contexto, diferentes formas de fazer-se humanamente. Por isso, podemos considerar, a partir de Carlos Walter Porto- Gonçalves (2004, p.241), que ―diferentes habitats e diferentes hábitos se constituíram, conformando diferentes territorialidades por meio de muitas guerras, alianças e acordos que constituem a história de cada povo e da humanidade na sua diversidade‖.

15 A partir do pensamento de Gramsci, Edward W. Said (2007, p.34) entende que a hegemonia é como um consenso, que em uma sociedade democrática ―[...] certas formas culturais predominam sobre outras, assim como certas idéias são mais influentes que outras; a forma dessa liderança cultural é o que Gramsci identificou como hegemonia [...]‖.

Corroborando neste sentido da compreensão da diversidade, nos diferentes tempos- espaços, para Jones Dari Goettert (2008, p.267), ―[...] os lugares, suas diferenças e semelhanças, a partida e a chegada, o trabalho, o estranhamento e o pertencimento, a saudade e a amizade, os familiares que ficaram e os familiares que permanecem próximos, as comparações entre aqui e lá, entre o antes e o depois, as lembranças e a memória‖, possibilitam a construção do fazer-se gente em uma sociedade. Neste contexto, ser gente é fazer-se pelos caminhos percorridos que levam ao encontro e desencontro com o outro, pelas dificuldades vividas, pelas mais diversas formas de ser e estar no mundo, pelo silenciamento, pela narrativa...

Assim, ser gente é fazer-se nos lugares16 vividos, nos lugares chegados e deixados, nas apropriações simbólicas e materiais das ―coisas do mundo‖. Ser gente é ser gentes!

1.1 – “Conceituando” gentes e sociedades

A palavra gente e/ou gentes dá sentido de pessoa, provavelmente porque não faz distinção entre homens e mulheres, isto é, entre masculino e feminino, sem distinção de sexo ou gênero. Pessoas e gentes remetem-se à unicidade destas. Nem eles, elas, você, eu... Mas sim, todos juntos, gentes-pessoas (humanos). Ao pensarmos as geografias, partimos então do pressuposto de que o saber geográfico é dinamizado pelo movimento das gentes nas diversas possibilidades de fazer-se humanamente, entendendo que a geografia se dá com e a partir da(s) sociedade(s), não estando fora dela, mas sendo reflexo e, combinadamente, refletindo-a.

A palavra gente está associada à palavra gentios, embora esta não represente a relação de reconhecimento humano do outro. Utilizado também no período colonial, denominando algumas gentes, gentios é utilizado como sinônimo de pagão, idólatra, infiel, selvagem e não civilizado, atendo-se aos discursos religiosos, entre eles, na Bíblia Sagrada. Explicitava que estes eram gentes diferentes do povo Judeu (de Israel), fazendo menção ao não israelita, derivado do

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A categoria geográfica de lugar, a partir de Doreen Massey (2008), se aproxima das discussões de Rogério Haesbaert (2005; 2007; 2007 b; 2007c; 2008) em torno do território, principalmente da concepção de multiterritorialidade, ao dizer que ―[...] na própria concepção de ―multiterritorialidade‖ que propusemos, e que em determinado momento se viu reforçada pela concepção de ―lugar‖ de Doreen Massey. ―Lugar‖ na geografia anglo- saxônica, ―território‖ na geografia latino-americana, as palavras podem mudar, mas muitos de seus conteúdos conceituais são compartilhados‖ (HAESBAERT, 2008, p. 13). Rogério Haesbaert (2002) salienta que a categoria lugar está inter-relacionada as relações de pertencimento, marcada pela subjetividade.

termo latim gens17, que expressa tanto na linguagem da época, como na organização social, exemplificava sentido de coletividade, de grupo de ―iguais‖.

No contexto do mundo grego, a palavra genós derivava de gens. Fustel de Coulanges (1998, p.199) assinala que os gregos designavam esta denominação aos membros do génos, a palavra homogálaktes, correspondendo às gentes alimentadas do mesmo leite. Para o autor, gens (e/ou genós) representava:

[...] membros da gens (grupo formado de famílias que descendem de um antepassado comum de origem pura) tinham um culto comum. Estavam ligados, uns aos outros, por deveres de solidariedade. As próprias terras, primitivamente, eram propriedade coletiva da gens. Esta comunidade de interesses e de ações entre os membros da gens obrigava-os a ter um conselho comum, cujas deliberações obrigavam a todos. Na época histórica, a gens, não tendo já chefe único, caíra em decadência. No II século d.c. já não existiam senão famílias independentes.

Assim, tanto na Grécia Antiga, como em Roma, gens era utilizado para denotar as gentes que participavam de uma mesma família, de uma mesma origem - gene, pelo nascimento. A sociedade romana dividia-se entre patrícios e plebeus, sendo os primeiros pertencentes à camada superior da sociedade, e os segundos representavam a camada subalterna. Assim, distinguindo as gens, ou seja, entre patrícios e plebeus, dividia-se a relação entre quem ―manda‖ e quem ―obedece‖. Considerando que as gens era uma instituição análoga a de genós, em grego, pode-se dizer, segundo Fustel de Coulanges (1998), que os plebeus, buscavam ter gens ― iguais‖ e/ou ―aproximadas‖ aos dos patrìcios.

Embora seja necessário remetermos a origem da palavra gente e/ou gentes, seu uso tem a finalidade de considerar as diversas formas ou possibilidades de fazer-se humanamente. Sendo a expressão unìvoca do estar junto, da sociedade e do indivìduo, do todo e das partes, do ―nós‖ e do ―eu‖. Ao considerar a posição de Clifford Geertz (1989, p. 38) de que ―[...] ser humano certamente não é ser Qualquer homem; é ser uma espécie particular de homem‖ (grifo nosso). A

17 A gens, como veremos mais adiante, formava um corpo de constituição inteiramente aristocrática e, graças a esta organização interior, os patrícios de Roma e os eupátridas de Atenas conseguiram tornar os seus privilégios muito duradouros. Quando o partido popular alcançou a primazia, logo combateu, com todas as suas forças, esta velha instituição. Se lhe tivesse sido possível aniquilá-la completamente, muito provavelmente não nos restaria dela a mínima recordação. Mas era singularmente prenhe de vida e enraizada nos costumes, pelo que não se pôde fazê-la desaparecer inteiramente. Contentaram-se então em modificá-la, para o que lhe tiraram o que formava o seu caráter essencial e assim deixando-a apenas subsistir nas suas formas exteriores, com o que em nada se prejudicava o novo regime. E assim, em Roma, os plebeus imaginaram formar gentes à imitação dos patrícios e em Atenas experimentou-se alterar os géne, incorporando-os e substituindo-os pelos dêmos, estabelecidos à semelhança daqueles (COULANGES, 1998, p.38).

escolha em utilizar o termo gentes em vez de indivíduos, sujeitos, atores, agentes entre outros termos, se dá principalmente pelo caráter de reconhecimento do outro e de si como particularidades do fazer-se humanamente, independente das diferenças.

A palavra gentes tem representatividade nas narrativas de Brandão (1986), Freire (1999), Porto-Gonçalves (2002; 2006a; 2006b), Goettert (2008) entre outros, expressando a pluralidade e singularidade das diferenças de viver e representar o mundo. Ao utilizarmos gente e/ou gentes, o fazemos a fim de demonstrar as individualidades dos homens e mulheres, nas especificidades de fazer-se humanamente. Não tem como finalidade desconsiderar outras formas de organização social (de fazer-se homem e mulher), mas sim, de fazer uma abordagem que propicia outras formas de pensar a sociedade, onde as gentes são ―demasiadamente humanas18‖.

Paulo Freire (1999, p. 59-60) sobre as trajetórias das gentes e pensando em si mesmo, percebe as possibilidades de emancipação social para além da sociedade hegemônica posta e sendo imposta. Ainda para o autor, o estar no mundo, é sinalizado nos gostos em viver. Em suas palavras:

Gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável que sou ou serei decente, que testemunharei sempre gestos puros, que sou e que serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o seu valor porque a inveja de sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, preestabelecida. Que o meu ―destino‖ não é um dado, mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros e de cuja feitura tomo parte é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto naproblematizaçãodo futuro e recuse sua inexorabilidade. Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado, mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele. Esta é a diferença profunda entre o ser condicionado e o ser determinado. A diferença entre o inacabado que não se sabe como tal e o inacabado que histórica e socialmente alcançou a possibilidade de saber-se inacabado. Gosto de ser gente porque, como tal, percebo afinal que a construção de minha presença no mundo, que não se faz no isolamento, isenta-o à influência das forças sociais, que não se compreende fora da tensão entre o que herdo geneticamente e o que herdo social, cultural e historicamente, tem muito a ver comigo mesmo. Seria irônico se a consciência de minha presença no mundo não implicasse já o reconhecimento da impossibilidade de minha ausência na construção da própria presença. Não posso me perceber como uma presença no mundo, mas, ao mesmo tempo, explicá-la como resultado de operações absolutamente alheias a

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Complexidade, diversidade, contradições, conflitualidades, etc. são elementos que fundamentam a nossa concepção de humanidade para além do bem e do mal. Não necessariamente como o caráter nietzschiniano do ―Humano, demasiadamente humano‖.

mim. Neste caso o que faço é renunciar à responsabilidade ética, histórica, política e social que a promoção dosuporteaomundo nos coloca. Renuncio a participar, a cumprir a vocação ontológica de intervir no mundo. O fato de me perceber no mundo, com o mundo e com os outros me põe numa posição em face do mundo que não é de quem nada tem a ver com ele. Afinal, minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenasobjeto,mas sujeito também da História.

Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais, econômicas, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento de nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não se eternizam.

Não é o ―eu‖, individual, quem comanda, mas é o ―nós‖, coletivo. Com diversas intencionalidades, tanto para fazer do outro parte integrante do ―nós‖, como para distanciá-los, a palavra gente faz e cria no outro a sua interdependência. Não existe sociedade sem indivíduos, não existe indivíduos sem sociedades, não existindo, assim, gente sem gentes.

A compreensão da realidade da sociedade e das gentes que nela participam, não torna possível dissociar espaço19-tempo, não os compreendendo de maneira independente e estanque. Para maior compreensão das gentes e os lugares em que estas ocupam em/na sociedade, Milton Santos (1998, p. 58-59) adverte que ―[...] há necessidade, por parte do intelectual, de ler não apenas uma, mas as várias versões sobre um fato, para que possa ter uma outra visão do mundo, uma visão real dos fatos concretos, já que o mundo pode ser visto com muitas lentes distintas.‖

19 O entendimento do que seria o espaço e o território parte da necessidade de compreendermos a complexidade dos modos de vida Guarani e Kaiowa no passado e no presente, discutidos no segundo capítulo. Contudo, estas discussões perpassam o primeiro capítulo, já que buscamos entender os territórios e territorialidades em disputas na constituição do sistema-mundo moderno-colonial, a partir de Carlos Walter Porto Gonçalves (2002; 2006; 2006a; 2006b). Neste contexto, as multiterritorialidades e multitemporalidades Guarani e Kaiowa, seja na organização socioterritorial no Tekoyma (modo de vida dos antigos) ou no Tekopyahu (novo modo de viver), é compreendida a partir do contato com o não ìndio, tendo como marco histórico, o ―descobrimento‖ / desencontro da América. O espaço é uma categoria geográfica que nos permite entender a relação espaço-tempo entre os Guarani e Kaiowa, assim como a complexidade dos territórios, territorialidades e temporalidades múltiplas em sua organização socioterritorial, principalmente em torno das contribuições teóricas de Doreen Massey (2008) e Rogério Haesbaert (2007). No tocante as diferenciações entre espaço e território, Marcos Aurélio Saquet (2009) contribui para esta definição ao dizer que ambos não são sinônimos, havendo―[...] pelo menos três processos que, antologicamente estão nas bases desta diferenciação: a) as relações de poder numa compreensão multidimensional, constituindo campos de força econômicos, políticos e culturais ([i-] materiais) com uma miríade de combinações; b) a construção histórica e relacional de identidades; c) o movimento de territorialização, desterritorialização e reterritorialização (TDR) [...]‖.Assim, no que concerne a diferenciação entre espaço e território, ―[...] é fundamental reconhecer que espaço e território não estão separados: um está no outro. O espaço é indispensável para apropriação e produção do território [...]. Além disso, a diferenciação entre território e espaço, no real, é muito tênue e dificulta nossas leituras e

conceituações no nível do pensamento‖ (SAQUET, 2009, p. 82-83 – grifo nosso). Em suma, podemos dizer que o

território, diferente do espaço, ―é uma construção coletiva e multidimensional, com múltiplas territorialidades‖ (SAQUET, 2009, p. 81), permitindo compreender a organização socioterritorial Guarani e Kaiowa, assim como, as multiterritorialidades e multitemporalidades que os envolvem.

Enfim, salientamos que a diversidade do fazer-se humanamente de homens e mulheres, é que estes não passam pela história com suas trajetórias de vida pré-definidas. E dialogando com a poética de João Guimarães Rosa (2006, p.23), é notório na ciência geográfica, como no clássico de Grandes Sertões Veredas, o entendimento que as gentes e as sociedades, ―não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas‖, denotando que as diversas sociedades, gentes e geografias, estão fazendo-se no espaço-tempo.

Assim, gente e/ou gentes a partir das narrativas dos indígenas da RID, para o Kaiowa Ñanderu Jorge (2009), rezador e liderança, ser gente, pode ser entendido ―[...] como a gente é... Aqui é tudo Kaiowa, é Guarani, vive tudo junto. Tem os Terena também, tem negro aqui, um lugar que só vive eles aqui na reserva. A gente aqui, aqui vive assim [...] vem gente de todo lugar aqui, até da ONU [Organização das Nações Unidas]‖.

A partir de sua narrativa, é possível perceber que ser, referente à existência humana, se faz a partir de si e dos outros, e com/no outro. Gente e/ou gentes é fator de diferenciação, de individualidade, mas, também, de coletividade. Não existe o ―eu‖ sem o ―nós‖. Assim, ser gente é ser humano, é estar junto, aprendendo, convivendo, conflitando... No caso da RID, ser gente(s) é exemplificado no estar em permanente contato com não indígenas e indígenas.

Assim, pode-se dizer que a palavra gente ou gentes é a representatividade da multiplicidade, caracterizando a humanidade de homens e mulheres no reconhecimento de sua igualdade, e ao mesmo tempo a singularidade e pluralidade das possibilidades de fazer-se humanamente na diversidade e na diferença do Outros-nós. No singular ou no plural, gente e/ou gentes é elucidativo no reconhecimento do outro na diferença, é pensar o ―eu‖ sem dissociá-lo do ―nós‖. Gente sinaliza a potencialidade do reconhecimento humano, a correlação de união referente ao que o Kaiowa Ñanderu Jorge assinala por seu grupo, ―como a gente é‖, ―como nós somos‖. Pode-se dizer que a palavra é muito utilizada nas correlações de forças do ―eu‖ e ―nós‖, expressando a unicidade de ambos, abrangendo as múltiplas possibilidades de sê-lo.

As complexidades do ser gente se fazem na possibilidade de compreensão da sociedade, que por sua vez é uma invenção de homens e mulheres. Para Cornelius Castoriadis (1982) a sociedade se faz como parte integrante da imaginação de homens e mulheres que conjuntamente instituem valores, normas, regras, modos de perceber a si e os outros. Para o autor, há necessidade de considerar todo campo simbólico das instituições, partindo da premissa de que o imaginário é uma criação indeterminada de figuras, formas, imagens, demonstrando que só é

possível falar da sociedade, desde que se considere que a realidade e a racionalidade são produtos da imaginação. Partindo da premissa de que o mundo social-histórico está indissociavelmente entrelaçado com o simbólico, sendo que o social-histórico é fruto do imaginário social instituído e do imaginário social instituinte, Cornelius Castoriadis (1987, p. 399) assinala que:

[...] A sociedade existe pela instauração de um espaço de representações compartilhadas por todos os seus membros, que traduzem o magma de significações imaginárias sociais instituídas em cada caso. Imaginárias no sentido forte e estrito. Nenhum sistema de determinações instrumentais funcionais, que se esgote na referência à ―realidade‖ e à ‗racionalidade, pode bastar-se a si mesmo. [...] O fato é que essa ―existência real‖, sem a postulação de fins da vida individual e social, de normas e valores que regulem e orientam essa vida, da identidade da sociedade considerada, do por quê e do para quê de sua existência, de seu lugar no mundo, da natureza desses mundos – e que nada disso pode ser deduzido da ―realidade‖ou da ―racionalidade‖, nem ―determinado‖ pelas operações da lógica conjuntivista-identitária.

A sociedade, para autor, assim como todas as coisas, tendo como exemplo a religião, são impossíveis de serem pensadas fora do campo simbólico, da imaginação, esta possibilita a criação, recriação e/ou sua invenção de tudo que há no mundo, inclusive as formas de criar. O autor se remete a imaginação (imagem e ação), à capacidade dos homens e mulheres de criarem a si mesmos, os objetos, os mitos necessários a sua sobrevivência (o próprio Deus ou deuses) entre outros. Critica as bases da razão do pensamento ocidental que oculta a criação. Em suas palavras:

[...] o imaginário não é a partir da imagem do espelho ou no olhar do outro. O próprio ―espelho‖, e sua possibilidade, e o outro como espelho são antes obras do imaginário que é criação [...]. Aqueles que falam de ―imaginário‖ compreendendo por isso o ―especular‖, o reflexo ou o ―fictìcio‖, apenas repetem,

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