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Desenhar na escola: propostas, materiais e estética

Iniciaremos nossas análises pelas recomendações da professora e diálogo entre dois meninos da turma da Pequena Sereia, pois estão relacionadas ao ato de desenhar propriamente dito, em suas dimensões materiais, estéticas e como ato determinante para a presente investigação.

Professora: Pode desenhar o que quiser.

Unidade 1-S1 Com intenção clara em dar um sentido pedagógico à atividade de desenhar, habitualmente as propostas da professora para que as crianças desenhassem eram a partir de temas, pois dessa forma as crianças têm que pensar no que representarão graficamente, uma constatação de que o saber, o interesse e questões por elas abordados não sejam passíveis de atenção e problematização quanto à forma de representar graficamente ou de atingir a construção de seus conhecimentos. Essa ideia pode estar relacionada ao silenciamento histórico pelo qual a criança vive. No que diz respeito à socialização e as dinâmicas das relações que se estabelecem entre o adulto e a criança, a hierarquia que vigora entre eles, permite que, geralmente, quanto menor a criança maior o domínio da professora sobre a sua produção. Em nosso caso, falamos do controle da professora sobre o que as crianças devem ou não desenhar.

Nesse sentido, o desenho livre é compreendido como uma atividade menos valorosa, apesar de ser uma concessão da professora, o conteúdo da imagem produzida é uma escolha da criança, é a sua voz e expressão. Entretanto para Guilherme e Lucas, mesmo recebendo influências do mundo adulto que interferem nesse processo, o desenho livre é uma possibilidade que têm de exercer o protagonismo por meio de suas manifestações singulares, onde estão representadas graficamente suas escolhas simbólicas e estéticas.

Gui: Espera! É, pra gente fazer direitinho que que a gente quiser.

Lucas: Nós vamos terminar de fazer o rato, hein Gui! É só uma coisa pra nós fazê muito bem, né? Gui: É (inaudível)

Lucas: A gente faz direitinho, a gente faz o que quizé.

Unidade 2-S1 O diálogo entre Guilherme e Lucas revela que eles têm apropriado que os seus modos de expressar são diferentes dos modos do adulto, pois há por parte da professora uma expectativa estética em relação ao desenho. Entretanto, que sentido tem para as eles o termo

direitinho, além de uma demonstração clara da reprodução da fala da professora? O que pode

significar fazer direitinho o que quiserem? Em que medida essa recomendação afeta as imagens produzidas? Outra orientação que a professora sempre dava quanto ao uso dos materiais de ponta pode trazer esclarecimentos para esta questão:

Professora: O lápis é para colorir e a caneta é para fazer contornos e formas.

Unidade 3-S1 De uma maneira geral, nas práticas escolares da educação infantil essa recomendação se deve ao fato da maneira como as crianças lidam com tais materiais. A qualidade deles também interfere na produção da criança. Assim como, os materiais ofertados têm uma relação direta com a concepção de desenho que fundamenta a proposta pedagógica.

No uso da caneta hidrocor é comum as crianças não observarem que o excesso de tinta umedece as folhas de papel e isso, com a pressão do movimento de colorir chega a rasgá-

las. Para Aroldo Lacerda (2012, p. 122) “os materiais escolares que a criança usa para

desenhar ou escrever não escapam dos sentidos que os adultos lhe deram”. Em nossos achados, a intenção da professora é que as crianças explorem o contorno das imagens com a caneta para dar nitidez às formas e figurações, produzindo, portanto, o que Lacerda (2012) chamou de desenhos ocos, vazios de cor. Já o lápis de cor oferece a possibilidade do preenchimento destes vazios com uma variedade de matizes, porém esmaecidas em relação à vivacidade das cores das canetas hidrocores.

Mas isso não é o suficiente para justificar o direitinho, pois “é debruçando-nos sobre desenhos de crianças que conheceremos desenhos!” (LEITE, 2004, p. 64). A fala da professora volta-se para o resultado final do mesmo, e a criança está mais ligada ao processo de produzi-lo. Provavelmente a professora preocupa-se com uma imagem padronizada, a partir dos seus referenciais e as crianças se interessam pela produção que envolve o efeito estético das linhas, formas e cores.

Nesse contexto, a valorização da produção infantil pelos adultos, sobretudo professoras em espaços educativos, chama a atenção, pois o reconhecimento dos desenhos infantis só é validado quando são representados graficamente imagens, objetos e figuras que já lhes são conhecidos ou familiares. E quando estas não lhes agradam, ainda são externados

equivocadamente julgamentos como “bonito”, “feio”. Sendo que para avaliar este trabalho a terminologia adequada, segundo Leite (2004) deveria ser “bom” ou “ruim”. Isto é, sair da

Na sequência que se segue, apresentaremos a Unidade 4 do subevento 1, que consiste numa situação onde Lucas descreve sobre um dragão que visitará a avó em um dia de chuva. Seria este desenho enquadrado no padrão direitinho? Para os padrões da professora é provável que sim, pois as canetas só foram usadas para dar contorno à imagem produzida. Essa produção pode agradar à professora, mas qual o sentido dos traçados e das cores para a criança desenhista?

Início do desenho

Lucas: Aqui é o dagão, aqui é a chuva, é o sol, o sol, e também as coisas do dagão (FIG. 48).

Figura 48: Dragão 2

O guarda-chuva do dagão. (FIG. 49)

Figura 49: Detalhe do guarda-chuva e chuva no chão

Unidade 4-S1 Utilizando três cores, com predominância para o verde e amarelo, Lucas faz a distinção dos elementos de seu desenho, dando sentido diferenciado ao seu traçado e uso das cores. Podemos dizer que ele categoriza as cores, indicada pela presença do sol azul. Para o amarelo ele agrupa um sol, o guarda-chuva e a chuva que molha o chão – traçada horizontalmente no pé da página do seu caderno. No senso comum do colorido dos desenhos e também pelas percepções de imagens voltadas para as crianças, as cores do sol variam em tonalidades como amarelo, alaranjado e vermelho. E a maioria dos elementos gráficos relativos à abóboda celeste a tendência é o uso da cor azul, como céu, lua, estrelas, nuvens, pássaros. Pode ser que os sois no desenho de Lucas tenham essa dupla significação. A cor amarela ligada à luz e transparência da água e a azul, pela noção de localização espacial no firmamento.

O início dessa representação gráfica foi a partir da linha verde traçada no sentido vertical de cima para baixo, seguindo um movimento descontínuo, por vezes ficando torta, longa, reta, ziguezagueada, curva ou se fechando irregularmente, representando o corpo do dragão. Essa linha termina numa forma arredondada detalhada por dois olhos, nariz e boca que definem a cabeça do dragão. Na medida em que vai narrando, a palavra ordena o pensamento e ação, e dessa maneira, Lucas, que vai acrescentando elementos à sua imagem. Ele vai elencando oralmente um a um os elementos conhecidos e sabidos, conservados pela memória, porém representados graficamente de uma nova maneira. De sua fala surge uma trama de um dragão envolvido em fenômenos da natureza, relações familiares, objetos culturais.

A ordem sequencial da produção da imagem do dragão e inserção dos outros elementos gráficos na cor amarela podem ser entendidas pela explicação de Arnheim (1980) ao destacar que ao contrário de uma fotografia que capta a imagem completa, na feitura do desenho a ordem em que é executado pode esclarecer o sentido da imagem. Por exemplo, percebe-se que foi acrescentada à imagem do dragão, logo abaixo da sua cabeça, uma linha verde que segue em direção à parte superior da folha. Essa é o braço do dragão que dá a

impressão de estar amparando as “coisas do dragão”. Para proteger o dragão da chuva, Lucas

fez um guarda-chuva localizado no meio do desenho, dando a ideia de que os espaços em branco são o ar. O guarda-chuva interfere no vazio, é feito com um traçado denso, unindo duas pequenas linhas perpendiculares amarelas, em forma de um T. Os elementos que se relacionam a água são amarelos. A chuva chega ao chão, fato que permite perceber a organização espacial da folha, pois em sua parte inferior, de fora a fora há tem um traço amarelo feito no sentido horizontal.

O movimento da linha verde, que forma o corpo do dragão dá espaço, no lado superior direito da folha, sobre a cabeça a uma série de pequenos traçados descontínuos, bem

diferenciados das outras linhas do desenho que são longas, representam as “coisas do dragão”,

Vou fazer uma coisa aqui, vou fazer uma mala de viagem pro dagão (FIG. 50).

Figura 50: Dragão do Lucas

Pesquisadora: Uma mala de viagem? O que ele está levando nessa mala de viagem?

Lucas: É porque ele vai ir visitar a avó dele (inaudível).

Figura 51: Detalhe Dragão1

Unidade 5-S1 Continuando na narrativa oral, Lucas delimitou em seu desenho uma forma mais ou

menos ovalada que se encaixa acima da cabeça do dragão. É a mala que guarda “as coisas”

que o dragão levará na visita à avó. A mala é amarela, isso pode significar que esteja molhada

pela chuva. E as “coisas” guardadas ali devem ser preciosas, já que mereciam ser protegidas

da chuva.

A narrativa oral de Lucas que orientou a composição do desenho tem uma semelhança com o conto clássico da Chapeuzinho Vermelho. Se nele a menina leva guloseimas para a avó, a partir das elaborações de Lucas, o dragão leva coisas para a avó. Apenas coisas, indizíveis, talvez por não saber o que podem ser coisas de dragão. Por certo, nessa narrativa visual, são transmitidas novas ideias, cria-se outra realidade que constituem

“pensamentos visuais”, uma metáfora que faz despertar a surpresa em quem cria e em quem

vê como definiu Staccioli (2011). Entretanto, podemos considerar a forte presença do poder do adulto, no caso a professora, pois Lucas atendeu às suas expectativas quanto ao uso do material.