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No decorrer da pesquisa, observei que a tendência das crianças é a de, por meio da imaginação, recorrerem repetidamente a temas advindos das influências das mídias, rituais cotidianos, situações familiares e contextos domésticos. O processo criativo não tinha relação com a decisão do que desenhar, mas na maneira de encontrar recursos para representar graficamente, como exemplo, o uso do espaço da folha, as forma e cores.

A pesquisa de Sueli Ferreira (1998) sobre as relações entre imaginação e linguagem no desenho infantil destaca que para o adulto compreender o desenho da criança, é preciso acompanhar o processo de produção do mesmo. Para ela o desenho é o resultado do entrelaçamento do pensamento, da fala e da imaginação. Assim, a criança usa as figurações como uma forma de se comunicar e interagir. Elas não são cópia da realidade, mas são carregadas de indícios dos objetos e elementos que dela fazem parte. Nesse sentido, como dissemos, o desenho é carregado de memória - memória individual que se forma a partir da memória coletiva (LEITE, 1998). No processo de constituição do indivíduo a memória é um processo de reconstrução de acontecimentos registrados e de ordenamento do pensamento, onde o passado ganha sentido no interior de um contexto sociocultural mais amplo.

Nesse sentido, Maurice Halbwachs (1990) entende que a memória individual está enraizada na trama da existência social atual. É no entrelaçamento dessas dimensões que nascem a memória individual, constituída a partir da linguagem, matéria prima da memória coletiva.

Conforme afirma Sarmento (2011) os desenhos são artefatos culturais da geração infantil. E como situa Matthews (2003) o desenho materializa o jogo simbólico, trazendo para a cena fictícia personagens e situações inventadas a que a criança atribui pensamentos, ações e emoções.

Na Unidade 1, extraída do subevento 2, a narrativa oral da criança desenhista cumpre a função de organização de sua ação de desenhar, função da fala analisada por Vigotski (1993). Para o autor a linguagem tem dupla dimensão, ela tanto organiza as ações e os pensamentos, base para o pensamento generalizante, quanto assume função comunicativa, possibilitando o intercâmbio social. Pensamento transforma-se em fala e fala em pensamento

– representados em forma de desenho pelas crianças. O mesmo acontece na próxima

sequência extraída do subevento 2. Ana Luisa construiu uma autobiografia em sua narrativa oral apoiando-se em seu desenho para reconstruir situações da realidade que envolviam a mãe e a si mesma. O desenho como produto não foi primeiro elaborado mentalmente pela criança

para depois ser expresso graficamente, como sugere a perspectiva piagetiana (PIAGET, 1993). Ao contrário, é na ação que a criança, mediada pela linguagem, vai construindo, no fluxo do uso do lápis no papel, uma narrativa visual.

Ana Luisa: É a mamãe junto comigo, a minha casinha de brincar e um monte de flores.

Minha mãe cheia de botão porque ela tava grávida. (FIG. 67)

Ana Luisa: Teve um monte de pontos.

Figura 67: Desenho da Ana Luisa

Ana Luiza: Nú tá chovendo!

Pesquisadora No seu tá chovendo aí Ana Luiza? Ana Luiza: Taaá... E eu (inaudível) corre pra casa... corre pro lado, corre pro outro.

Ana Luiza: Aí começa a tempestade de (inaudível)

Figura 68: Desenho da Ana Luisa

Unidade 1-S2 Em seu desenho pode-se perceber os sinais visuais que estabelecem a diferença entre as personagens de sua narrativa. Sua autoimagem é a de uma menina com o cabelo partido ao meio e um rabinho de cada lado, confirmando sua identidade de criança. Ela está de mãos dadas à sua mãe, rompendo com a sequência temporal, pois ao mesmo tempo em que a mãe está grávida, representa-a com os pontos do parto. Como uma metáfora que auxilia as crianças a comunicarem como apreendem e se aproximam da realidade, talvez os botões, por terem a função de fechar ou juntar aberturas resolvam para Ana Luisa a compreensão e invisibilidade dos pontos que a mãe levou. Ou a tempestade, com traços firmes vão marcando, como pontos, todo o espaço do desenho. Dessa maneira ela vai se apropriando das informações que recebe do mundo adulto, transitando entre realidade e imaginação.

No diálogo entre o real e o imaginário Ana Luisa extrai elementos de suas histórias e vivências ao mesmo tempo em que ultrapassa a realidade circundante criando outro universo: o da fantasia. O trânsito entre tais universos dá-se pela ação da imaginação. Por outro, o desenho e a história que representa constitui a expressão do que Bruner (1997) define como pensamento narrativo. Para o autor, haveria duas modalidades de pensamento: o lógico científico e o narrativo. Ambos buscam organizar a experiência humana e construir a realidade, porém diferem nos procedimentos cognitivo-textuais utilizados.

A modalidade lógico-científica tem como fim descrever, explicar e justificar, utiliza- se de sistemas e modelos explicativos voltados para a generalização, tendo como objetivo a produção de um discurso que almeja a verdade. Já a modalidade narrativa ocupa-se das ações e intenções humanas, concretizando-se no relato e caracterizando-se pela criação de uma outra realidade. Seu compromisso não é com a verdade, mas a verossimilhança, voltando-se não para o geral, mas o particular da experiência humana.

A narrativa produzida acima tem esta característica, volta-se para relatar uma realidade construída no fluxo do discurso. Podemos dizer o mesmo para a história do dragão contata por Lucas. Elas não almejam a verdade, posto que Lucas e Ana Luisa sabiam que estavam fabulando. Porém, buscam partilhar tal realidade com o ouvinte, na narração da produção gráfica.

Vigotski (2009) desenvolve uma concepção para o conceito de criatividade por meio de um estudo sobre as relações entre imaginação e criação na infância. O autor apresenta reflexões teóricas sobre o tema, desconstruindo a ideia comum de que a imaginação, ou fantasia estão distantes da realidade. Pelo contrário, a manifestação da imaginação se dá em todos os campos da vida humana e tem como função ser o motor de avanço para a criação artística, a científica e a técnica. Portanto, a imaginação e a atividade criadora são processos presentes na vida das pessoas.

Nesses termos, a atividade criadora humana está apoiada na experiência e tem como base duas funções. A função reprodutora que faz uso da memória para recuperar impressões e experiências passadas. Já a função criadora diz respeito à capacidade cerebral de relacionar ou combinar elementos da experiência anterior produzindo situações ou comportamentos singulares.

Nas interações as crianças fazem uso da memória coletiva, evocando seu próprio passado que não está isolado, constituindo assim, os desenhos, revelando e escondendo significações culturais e pessoais. A memória coletiva é construída nas interações sociais com os grupos culturais que os indivíduos estão imersos (HALBWACHS, 1990; WERTSCH,

1988). As lembranças evocam os planos cognitivos e afetivos. Assim, quando a criança desenha provoca o funcionamento da sua atividade mental, transformando a atividade de desenhar em função mental como memorizar, conceituar, e afetiva, modificando a si mesma. Ela desenha o que lembra e o que sabe, não o que vê. Nessa dinâmica, lembrar é pensar (VIGOTSKI, 1993) e isso gera outros mediadores semióticos, que atuam no contínuo e inacabado processo de constituição dos indivíduos.

Nesse sentido, é pertinente destacar que para Vigotski, o indivíduo é constituído nas relações com os outros e produz significados sociais e sentidos pessoais para o mundo em que vive e para si mesmo. Cabe observar que o desenho não constitui apenas representação da memória, mas também expressão da dinâmica das interações no momento de sua execução, como alerta Matthews (2003). É entre esta dupla dimensão que o desenho adquire sentido, na recuperação do vivido conjugado com os mediadores que estão atuando no momento. É o que veremos a seguir.