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Desenvolvimento e constituição do sistema de self em meninas negras

V. RESULTADOS

5- Desenvolvimento e constituição do sistema de self em meninas negras

Vimos no discurso das meninas que o cabelo crespo precisa ser dissimulado, modificado para ser aceito, principalmente no que se refere a seu volume natural. As denominações diversas utilizadas, como cabelo “enroladinho” e “cacheado”, nos remetem ao uso de eufemismos para não reconhecer o cabelo como crespo como diferente do padrão tradicional, e legítimo por afirmar as características de um grupo específico. Todas as meninas trouxeram exemplos mostrando que seus cabelos tinham que ser alisados, escovados, chapados, ou bem presos para serem aceitos, principalmente, quando expostos em público. Isto nos remete a um novo/velho tipo de escravidão aos padrões de beleza onde as características brancas estão no pólo positivo, e as negras no negativo.

Rafaela foi a única que descreveu claramente o movimento pelo qual crenças e valores racistas são internalizados pela criança negra. Ela afirmou que ouvira tantas pessoas xingando sua boca de feia e grande, que terminou acreditando nessa idéia, demonstrando com a linguagem corporal de contrair os braços e baixar do tom de voz, o quanto sofre com a discriminação baseada em suas características de negritude. Bianca também referiu algo muito parecido quando admitiu que gostava de escovar os cabelos para evitar a discriminação racial, como, por exemplo, ser xingada de “cabelo de Bombril”. Paula também assumiu que o alisamento que fez em seu cabelo por meio de uma “escova progressiva” serviria para que as pessoas parassem de criticá-la por usar sempre o mesmo penteado. Isto demonstra os efeitos perversos do racismo e da internalização de uma menos valia pessoal desde a socialização infantil, onde as crianças estão se constituindo subjetivamente a partir das interações sociais, do olhar do outro. O olhar negativo destes outros sociais para as crianças negras parece ter um efeito devastador.

Todas as meninas demonstraram um posicionamento de self quase que automático quando que se referiam ao relacionamento mais amplo com os colegas. Em algum momento de suas narrativas, essas meninas sempre se definiam como solitárias, sem muitos amigos de verdade e/ou com muitos inimigos. Bianca afirmou que tinham meninos e meninas que a tratavam mal em sala de aula; Rafaela disse que existiam muitas pessoas na escola que não gostavam dela; Leila afirmou que, na verdade, não tinha muitos amigos na escola; e Paula destacou apenas duas meninas que eram suas amigas na turma, embora afirmasse que tinha um “grupinho”. Apenas após este movimento de se verem sem amigos, e a partir do momento em que falavam sobre exemplos das interações cotidianas na escola, é que as meninas se referiam a brincadeiras com os colegas, como por exemplo, “menino pega menina”, da qual

todas participavam e que incluía quase todos os alunos das duas turmas de quarta série. Somente depois, na própria entrevista, é que “descobriam” (ver o caso de Rafaela) que sim, tinham alguns amigos! Então se coloca a questão: qual o posicionamento do sistema de self que levou essas meninas a pensar, quase automaticamente, que a maioria dos colegas as tratava mal, ou que já era de se esperar que elas fossem rejeitadas pelos colegas? Talvez este posicionamento reiterativo de self tenha sido construído com base nos momentos em que sofreram discriminação, ou seja, nos momentos em que foram rejeitadas ou maltratadas por conta de suas características de negritude.

A co-construção das interações dialógicas entre pesquisadora negra e as meninas durante as entrevistas parece ter criado uma zona de desenvolvimento proximal em torno da negritude. Rafaela, por exemplo, demonstrou que a qualquer momento durante a entrevista, poderia construir um posicionamento de self em que se identifica como negra, embora não o tenha feito devido à canalização cultural, que caminha no sentido oposto a esta identificação. Foram percebidos movimentos interessantes na configuração de self de Rafaela. O primeiro foi em relação ao seu cabelo, que começou preso e disciplinado no primeiro desenho; passou para solto e muito cacheado que ela não gostava no segundo desenho; em seguida tornou-se um cabelo difícil, que precisava passar por um longo processo de “passar creme, desembaraçar e fazer o penteado”; foi desvalorizado em relação ao cabelo liso desejado por ela; atingiu um certo grau de equidade em comparação ao cabelo liso quando Rafaela percebeu os pontos difíceis do cabelo liso (o penteado desmancha o tempo todo); e, finalmente, na entrevista, Rafaela acabou por construir um novo significado pessoal para seu cabelo como “bonitinho e cacheadinho”.

O segundo momento interessante de configuração de self de Rafaela foi relativo ao significado atribuído por ela mesma às relações de amizade com os colegas de escola. Rafaela começou sua narrativa calcada no déficit, afirmando que quase ninguém brincava com ela e que muita gente não gostava dela na escola. Depois, sua narrativa revelou a descoberta de que ela, para ter um bom relacionamento interpessoal, não dependia da vontade de sua melhor amiga, já que outras pessoas estavam disponíveis para brincar com ela. Finalmente, na entrevista, chegou à conclusão que a maioria dos colegas a tratava bem e que ela era bem vista pelos colegas, como uma menina alegre e engraçada.

Outro aspecto importante foi o fato de que as meninas tendem a atribuir ao “outro” a condição de negro, nunca a si mesmas. Leila, por exemplo, é a menina que se mostrou mais distante de se reconhecer como negra, e, portanto, pode continuar discriminando a população

negra na qual não se inclui. Negro é sempre o outro, e para ser negro o sujeito não pode ter qualquer característica que lhe permita reivindicar a condição de „moreno‟. Afinal, é aceitável ser moreno, enquanto negro, este é um termo perigoso, pois pode ser interpretado de forma pejorativa.

Na situação em que Tiago xingou Leila de “gorda”, e Leila xingou Tiago de “preto”, ambos foram vítimas de discriminação e foram, simultaneamente, perpetradores do preconceito (“L: Porque ele ficou triste! Eu também.”). Este exemplo deixou claro que é necessário construir, principalmente no contexto escolar, alternativas saudáveis de combate ao preconceito. Este sentimento de baixa estima pessoal não pode ser interpretado como “inveja” inerente aos negros ou aos gordinhos, pois é gerado pelo reconhecimento de que algumas pessoas têm privilégios em detrimento de outras, apenas por serem brancas e magras.

Percebemos, pelo discurso das meninas, que o pólo claro das características físicas é supervalorizado em um processo de idealização de algo que elas nunca poderão ser. Um exemplo disto seria a descrição de Paula sobre sua avó materna, em que ela disse entusiasmada: “Os olhos... Verdes! Bem, aquele clarinho, aaaaaaai! Os olhos bonitos! É branquinha!” (em tom de admiração) “É boniti... Aaaai! É tão bonitinho!” Outro exemplo foi o de Leila, que mostrou toda a sua admiração pelo cabelo loiro, durante uma das sessões lúdicas em grupo, que apesar de não terem sido transcritas e analisadas neste estudo, permitiram corroborar as conclusões deste trabalho. Nesta sessão, a pesquisadora lhe perguntou “Por que você queria essa boneca que você ficou?”, e Leila respondeu, “Porque ela tem cabelo loiro. (...) É porque eu vou pintar o meu cabelo de loiro!”. Isto nos mostra que o desejo pela brancura, ou seja, pela valorização social da branquitude desempenha um forte papel na configuração de self de crianças negras desde cedo. A lente que faz com que as pessoas sempre vejam infinitas vantagens em ter características caucasóides, é a lente racista que resulta de intensa e consistente canalização cultural, e que ocasiona um contexto de desenvolvimento desfavorável para as crianças negras, onde não é permitido que as mesmas percebam sua negritude de forma positiva. Para serem valorizadas, precisam contradizer, negar suas próprias características físicas, e o dano psicológico desta negação acaba por gerar posicionamentos de frustração, revolta, ou conformismo no sistema de self.

Estas crianças podem ser acusadas de racistas, por expressar, sem pudores, que desejam “ser” brancas? Como poderiam ser diferentes, se desde a infância são levadas a internalizar este desejo, que vem com a promessa de valorização social?

A questão do poder também mereceu especial destaque, no que diz respeito tanto a questões de ordem política como de ordem subjetiva, do âmbito do desenvolvimento do sistema de self das crianças. Nas narrativas das meninas, Paula foi a que mais chamou nossa atenção para a centralidade do poder nas questões que envolvem a negritude. Afirmou, por exemplo, que gostaria de ser juíza no futuro, “Porque ela determina, culpado, falso! Tic, tic! (...) O martelinho, tic, tic!”, disse ela, sorrindo. Ela salientou ainda o poder da profissão de professora, em sua percepção a partir do posicionamento de estudante, para definir o destino de seus alunos, na maioria das vezes no sentido de punição às travessuras cometidas, “Não, professora porque... Eu queria... Eu queria brigar muito com o povo!”. Paula demonstrou com essas escolhas a necessidade de se ver em uma posição social de poder, talvez como uma compensação pela desvalorização que vivencia no momento atual. Outro exemplo do valor atribuído pelas meninas às posições de poder, socialmente reconhecidas, foi a admiração mostrada por Leila de forma não-verbal, ao descrever como os policiais usam as armas na cintura, “Eu gosto quando eles põem aqui, assim né?!”, mostrando com as mãos uma “arma” em cada lado da cintura, sorrindo. Leila indicou que gostaria de ser policial por conta da sensação de poder. Perceber-se em uma posição de poder parece importante para estas meninas porque, tudo indica, elas não o experimentam em seu cotidiano por conta dos mecanismos de exclusão. Isto passa a ser visto, então, como uma forma de se sentirem valorizadas socialmente, pelo menos em uma projeção para o futuro.

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