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V. RESULTADOS

3- A questão do Preconceito

Outro ponto que destacamos nas narrativas das meninas é que as situações de discriminação mencionadas só foram definidas como racismo, especificamente, quando estavam relacionadas ao outro que é negro. Nesse sentido, dentro do contexto escolar, todas as meninas narraram situações de preconceito étnico-racial que envolvia Tiago e/ou Kaio, que são os meninos com a tonalidade de pele mais escura em cada turma pesquisada. Ou seja, Tiago e Kaio são os “outros” que são negros, e por isso sofrem as desvantagens dessa classificação. Nas situações mencionadas em que a discriminação foi direcionada a elas, mesmo que fossem claramente fruto do racismo, como o xingamento de “boca grande” recebido por Rafaela e o de “cabelo de Bombril” recebido por Bianca, as meninas evitaram definir a natureza da discriminação, isto é, evitaram classificar a experiência como exemplo de racismo. Isto também nos parece causa e conseqüência da falta de elementos para a construção de uma identidade negra positiva.

Essas meninas parecem ter caído em duas armadilhas criadas pela ideologia do branqueamento. A primeira que separa a população afro-brasileira em negros e morenos, fazendo-os se digladiar para ver quem se aproxima mais do pólo claro do espectro de cor; e a segunda, mais perversa, que culpabiliza o próprio negro pela discriminação étnico-racial que sofre. Esta última fortalece a idéia de que o racismo brasileiro existe por culpa do próprio negro que não se valoriza e tem inveja dos brancos, evitando focalizar todos os privilégios subjetivos e materiais que a escravidão viabilizou, no Brasil, para a população branca (Bento, 2002). Negando esta realidade histórica, que serviu para perpetuar os privilégios dos brancos durante tantos anos, a exigência de que o negro se valorize, mesmo nascendo e se constituindo numa sociedade racista, é certamente cruel e irracional.

Com base na opinião das meninas sobre o papel da escola no combate ao preconceito, vimos que a ação fica localizada no âmbito informativo sobre a questão. O assunto, porém, não parece sensibilizar de fato as crianças e, muito menos seus pais, para a gravidade do problema. Sem atingir, ou se trabalhar o nível afetivo-emocional que se encontra na raiz do preconceito racial, presente no cotidiano das interações sociais destas meninas em vários contextos, o combate ao racismo continuará sendo muito restrito e impotente para construir uma verdadeira equidade entre todos os brasileiros. Isto porque a origem histórico- cultural da questão gera valores e crenças afetivas extremamente profundas e enraizadas nas concepções de si de pessoas e grupos, ou seja, desde o nascimento as pessoas são percebidas pelos outros (e se percebem), são avaliadas (e se avaliam) em contextos de significações que

promovem uma hierarquia social baseada na classificação racial. Desde cedo, crianças negras e não-negras vão internalizando e desenvolvendo posicionamentos de self (self-positioning; Hermans, 2001) impregnados de valores positivos (branquitude) e negativos (negritude), aos quais se associam, respectivamente, adjetivos como “bom” e “belo”, ou como “mau” e “feio”.

Foi notável no discurso de todas as meninas o quanto o aspecto metacomunicativo, como por exemplo, o tom de voz e as expressões faciais da pessoa preconceituosa, são marcantes para definir uma manifestação de preconceito racial. Bianca, por exemplo, descreveu uma situação em que foi discriminada por uma garota na igreja, com ênfase em aspectos da ação metacomunicativa: “Sempre tinha um lugar que eu gostava de sentar! Aí toda vez que era pra me encher o saco, ela ia e sentava nesse lugar... Também quando eu ia falar com a pro... Com a tia, ela vai lá e falava... É... Falava de... É, outra coisa! Já... Já me implicando! (...) A maioria das coisas as pessoas ficam implicando, é... Com preconceito e também quando não gosta!”. Rafaela descreveu uma situação em foi discriminada pela mãe de uma colega de bairro de forma basicamente metacomunicativa. Disse Rafaela: “Eu sempre passava por aque... por aquela mulher, e eu falava: Ah, oi! Tudo bem?! Ela nunca falava comigo! (...) Não queria mais que ela brincasse comigo; ô (corrige-se), não deixou mais ela brincar comigo! Não falava mais comigo! E nada mais! A mãe dela olhava pra mim, e ia embora! (faz expressão de virar o rosto) Acho que isso é preconceito porque... É... Eu não fazia nada com a filha dela! Eu só brincava com ela... Aí quando a filha dela perdeu um negócio, eu fui lá na casa dela, ela só falou: Ah... hum... Brigada, tchau! Bateu a porta na minha cara, e aí eu fui embora!”.

Paula, por sua vez, afirmou com clareza que o aspecto metacomunicativo é fundamental para definir quando uma pessoa está discriminando outra com base na cor da pele, dizendo: “Não, se fosse de um jeito carinhoso, até que... Até que ia, né?! Mas é um jeito, assim... De um jeito rancoroso, rancoroso! Um jeito que não dá! (...) Assim: Ôôô, bonitinha! Ô, moreninha! Vem cá, minha lindinha! (com sorriso) De um jeito... A gente percebe o jeito. (...) Assim: Ô... Não sei o quê, pretinha! Com aquela cara, assim: Pretinha! (faz careta de raiva)”.

Outro aspecto fundamental da expressão do racismo no Brasil, que teve ressonância no discurso das meninas foi o preconceito racial disfarçado. Esta idéia é um dos pilares do sistema de racismo velado, onde as expressões de discriminação são escorregadias, e facilmente negadas ocasionando a fuga por parte dos discriminadores das devidas punições legais e morais. No discurso de Paula, por exemplo, ela afirmou sobre o preconceito: “Aí fica

melhor! Porque você não tá falando, você não tá falando assim, a coisa. Você tá disfarçando, entendeu?”. Em seu discurso, Paula parece até admitir a existência do preconceito, desde que este não fique explícito. Isto transparece a idéia, muito comum entre a população brasileira, que o problema não está no fato da pessoa ser racista, mas sim no fato de deixar aparente seu preconceito. Como se as pessoas pudessem ter o direito ou a liberdade de discriminar o outro, como se isto não contrariasse os direitos humanos e o fundamento da justiça no contexto de uma sociedade democrática. Esta “liberdade” de discriminar, desde que de forma velada, parece ser a pedra angular do racismo brasileiro, onde a sociedade desvaloriza e discrimina a população negra, mas nenhum indivíduo reconhece o próprio racismo que carrega e que expressa de forma sutil.

Todas as meninas forneceram indicadores de que o assunto das relações étnico- raciais é algo muito difícil e sofrido para ser falado abertamente, pois as crenças e valores racistas reprimem as expressões de negritude e propiciam expressões de discriminação. Paula, por exemplo, descreveu de maneira interessante o preconceito como um “rancor” quando, no entendimento geral, uma pessoa só guarda rancor de outra que lhe fez mal. Entretanto, vale perguntar que mal os negros fizeram à população brasileira? Por que, ao invés de um reconhecimento pelo seu trabalho e contribuição cultural, os negros devem ser objeto de rancor? Aqui parece que estamos diante do que na psicologia social se denomina como dissonância cognitiva, e na psicologia clínica se chama de projeção: se eu odeio alguém, este alguém de alguma forma deve merecer este ódio pelo fato de haver cometido algum erro ou crime que justifique este ódio socialmente cultivado. No caso dos negros nas Américas, este “ódio” racial, apesar de ser alimentado afetivamente desde a infância, tem seguramente sido, em última instância, uma forma eficaz da manutenção dos antigos privilégios da classe dominante. O preconceito, na prática, dificulta o acesso democrático e a inclusão social efetiva dos negros, pois transforma as diferenças em desigualdades. Esta justa inclusão, apesar de garantida na constituição federal, que assegura a todos os cidadãos iguais direitos e deveres, somente poderá se tornar realidade concreta quando no contexto das interações humanas houver aceitação da diversidade, justiça, e o sentimento efetivo de que todos são iguais enquanto seres humanos, e merecedores de consideração e respeito a despeito de qualquer tipo de diversidade de gênero, étnica, cultural ou religiosa.

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