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4.5 A MEMÓRIA COMO FUNÇÃO PSIQUÍCA SUPERIOR

4.5.1 Desenvolvimento das funções mnemônicas e mnemotécnicas

Nessa linha de investigação sobre as relações entre o natural e o cultural no desenvolvimento das funções psicológicas superiores, Vigotski (1995) analisou no capítulo 10 de História do Desenvolvimento das Funções Psíquicas Superiores o desenvolvimento das funções mnemônicas e mnemotécnicas. Apoiando-se em outros autores definiu:

Em nossa opinião, no entanto, é melhor designar com a palavra ‘mneme’ o conjunto de funções orgânicas da memória que se manifestam em dependência de certas propriedades do tecido cerebral e nervoso. Na atualidade, são muitos os psicólogos que falam de mneme ou das funções mnemônicas nesse sentido, enfatizando, portanto a memória natural (VYGOTSKI, 1995, p. 247, grifo da obra).

Como já mencionamos anteriormente, Vigotski entendia que o desenvolvimento histórico da memória ocorreu por meio do uso de recursos externos, como um nó num pedaço de cipó ou num pedaço de tecido que ajudaria uma pessoa a lembrar-se de algo a ser feito. Ele então esclarece que a psicologia, da mesma forma que reconhecia a existência da capacidade cerebral humana de retenção de informações, também reconhecia aquilo que:

[...] recebeu o nome memória técnica ou mnemotécnica, isto é, a arte de governar os processos de memorização, de orientá-los com ajuda de meios técnicos especiais. A mnemotécnica nasceu a principio como uma habilidade prática para as mais diversas tarefas e aplicações. Todavia, o estudo teórico da mnemotécnica era realizado de maneira acidental e os psicólogos, em sua imensa maioria, não sabiam distinguir na mnemotécnica o verdadeiro e fiel principio que subjaz em todo o desenvolvimento cultural da memória daquela forma casual em que os cientistas escolásticos e os prestidigitadores profissionais operavam com esse princípio deformando-o. Propomos

que por mnemotécnica se compreendam todos os procedimentos de memorização que incluam a utilização de certos meios técnicos externos e estão dirigidos a dominar a própria memória (VYGOTSKI, 1995, p. 247-248).

Como se pode notar e como foi explicitado pelo próprio Vigotski, tanto no caso da mneme como no da mnemotécnica, ele adotou esses dois termos de uso corrente na psicologia, mas conceituando-os de maneira diferente em consequência de estudá-los na perspectiva do desenvolvimento histórico-cultural da mente humana.

Para comprovar os procedimentos de memorização Vigotski realizou diferentes experimentos com crianças: num primeiro momento propunha a elas a memorização de várias palavras e ao mesmo tempo procedia de maneira que elas se davam conta da impossibilidade de memorizar as palavras na ordem que foram apresentadas. Em seguida, o experimento se modificava e Vigotski introduzia, pela primeira vez, os meios auxiliares apresentando à criança uma série de cartões com desenhos de objetos concretos, ou figuras geométricas, ou ainda linhas e listras. Vigotski (1995) afirmava que o uso desses meios auxiliares era feito de diversas maneiras. Por exemplo, por vezes eram dadas, verbalmente às crianças, algumas indicações como a de que os cartões poderiam ajudar a recordar, sem, entretanto, explicar às crianças como isso ocorreria. Em outros momentos eram dadas instruções mais detalhadas e até exemplos.

Tentávamos investigar com esses procedimentos como a criança passava ao novo tipo de memorização, em que medida deveria ser uma invenção da própria criança ou uma imitação, o papel que desempenhava em todo este entendimento etc. Mais adiante falaremos desses problemas; no momento digamos tão somente que a criança passava da memorização natural, à memorização mediada ou mnemotécnica. Ao mesmo tempo, mudava todo o caráter de sua operação: cada palavra pronunciada provocava de imediato sua atenção para o cartão. A criança relacionava a palavra com o desenho, depois passava à palavra seguinte etc (VYGOTSKI 1995, p. 249, grifo nosso).

Essas investigações permitiram que Vigotski comprovasse que a passagem direta que a criança fazia da memorização natural à mnemotécnica ou memória cultural, ocorria pela introdução dos estímulos externos, direcionando um novo caminho para as conexões nervosas, ou seja, substituindo uma conexão nervosa por duas novas conexões. Vigotski afirmava que era evidente que essas novas

conexões não se manifestavam pela simples associação da palavra, do objeto e do estimulo externo, mas pela criação ativa de uma estrutura complexa, como no exemplo em que a criança ao ouvir a palavra “morte” ela escolhia o cartão em que estava a figura do camelo e formava a seguinte estrutura “[...] - O camelo está no deserto, o viajante morre de sede”. (Vygotski, 1995, p. 250). No exemplo dado, a criança não memorizou diretamente a palavra dada, mas comparou, imaginou e por isso criou uma nova estrutura que produzirá mudanças no processo do desenvolvimento cultural da memória.

Estes experimentos proporcionam uma informação muito importante sobre as mudanças que se produzem no processo do desenvolvimento cultural da memória: determinadas operações psíquicas são substituídas por outras, as funções se substituem, fato característico para todo o desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Toda a segunda operação da memorização conserva externamente o mesmo aspecto e conduz ao mesmo resultado, isto é, a reprodução da palavra dada. Porém os caminhos que a criança segue para alcançar esse resultado são completamente distintos. Se no primeiro caso se tratava da operação de memorização no sentido orgânico da palavra, no segundo caso, ao invés de memorizar diretamente, a criança recorre a operações tais como destacar o geral, comparar, imaginar etc., com as quais cria a necessária estrutura. A criança, ao olhar o desenho, inventa pequenas histórias ou imagina algo novo. Todas essas novas funções se põem a serviço da memorização, substituindo com elas suas formas simples; ademais cabe diferenciar claramente a operação da memorização direta e outras que a substituem, como as auxiliares (VYGOTSKI, 1995, p. 251).

Essa passagem esclarece que no caso de uma simples memorização natural a operação ocorre sem que a criança saiba formar a estrutura, já que ela opera por repetição. Mas no caso da memorização com estímulos externos ela domina a operação e passa à memorização baseada em funções intelectuais.

Vigotski (1995, p. 255-257), apoiava-se numa pesquisa sobre o desenvolvimento da memória realizada por Leontiev e levanta hipóteses interpretativas sobre os resultados observados nessa pesquisa, especialmente sobre os distintos ritmos de crescimento que a memória natural e a memória mediada apresentavam à medida que avançava a idade da criança. Antes do ingresso da criança na escola seriam bem próximos os índices de desenvolvimento da memória natural e da memória mediada. No período que os psicólogos soviéticos chamavam idade escolar, correspondente aos cinco primeiros anos do Ensino Fundamental no

Brasil, haveria, ao contrário do período anterior, um distanciamento entre os índices de desenvolvimento dos dois tipos de memória, sendo bem maior o da memória mediada. Na adolescência os dois índices novamente se aproximariam pelo fato da memória espontânea acelerar-se em seu desenvolvimento. Vigotski interpretou que na “idade escolar” o maior desenvolvimento da memória mediada devia-se à aprendizagem da linguagem escrita e que a aceleração da memória espontânea, na adolescência, seria decorrente da internalização dos expedientes externos de memorização aprendidos no período anterior. Nesse caso a memória espontânea já não é mais a memória puramente natural, mas sim a memória em que atuam espontaneamente os recursos que num primeiro momento eram externos e depois tornaram-se internos.

Segundo Vigotski é na idade escolar que a duas formas de memorização alcançam sua maior diferença, mas a divergência entre as duas curvas inicia a partir do momento em que a criança aprende a dominar e governar sua memorização e isto se deve ao crescimento da memória cultural. Esse crescimento da memória cultural leva ao desenvolvimento ulterior da memória, sendo que no primeiro momento desenvolve-se a memória voluntária que consiste na passagem do processo externo à memorização interna e, em seguida, como observou Vigotski, a criança iniciava procedimentos sistemáticos de anotações.

A possibilidade de memorizar com ajuda da escrita, tão banal à primeira vista e que pareceria ser conhecida por todos, revela-se no experimento como um fato genético. Tivemos oportunidade de precisar, em primeiro lugar, o próprio momento da passagem, o momento da escrita e, em segundo, esclarecer em seguida as mudanças profundas que se produzem quando a criança passa da memorização imediata à mediada. Podemos considerar, por conseguinte, que existem duas linhas fundamentais no desenvolvimento ulterior da memória cultural. Uma nos leva à memorização lógica e a outra à escrita. O lugar intermédio entre uma e outra linha no desenvolvimento da memória é ocupado pela chamada memória verbal, isto é, a memorização mediante a palavra (VYGOTSKI, 1995, p. 260).

Num desses experimentos, conforme aqui já mencionamos, as crianças eram solicitadas a darem respostas, fazendo escolhas que exigiam a memorização de uma quantidade de relações que excedia em muito suas forças psíquicas. Entretanto, crianças de seis anos num primeiro momento não tomavam consciência desse fato e se punham a tentar realizar as tarefas que lhes eram propostas sem

terem noção do grau de dificuldade que encontrariam pela frente. A essa etapa do desenvolvimento psicológico Vigotski chama de natural ou primitiva:

Para nós é evidente porque é primitiva ou natural: é comum a todas as crianças, que em sua imensa maioria assim se comportam nas reações simples, é primitiva porque a conduta da criança no caso dado se determina por suas possibilidades de recordar de forma direta, pelo estado natural de seu aparato cerebral. Com efeito, se a criança se compromete a regular a complexa reação eletiva com os 10 estímulos, sua decisão se explica pelo desconhecimento de suas próprias possibilidades, opera com o complexo como o faz com o simples. Dito de outra maneira, [a criança] reage perante a estrutura complexa com os meios primitivos (VYGOTSKI, 1995, p. 160).

Essa psicologia ingênua estaria presente, segundo Vigotski, no processo de uso que a criança faz, a princípio, dos instrumentos psicológicos, ou seja, dos signos. Vigotski (1995) compara essa psicologia ingênua à física ingênua da criança, fazendo um paralelo entre o uso espontâneo dos signos e o uso espontâneo dos objetos.

[...] o emprego de ferramentas por uma criança pequena explica-se também por seus ingênuos conhecimentos físicos, isto é, depende de como uma criança que possui alguma experiência é capaz de utilizar certas propriedades dos objetos que maneja e estabelecer com eles uma relação determinada. Graças ao emprego prático dos signos, a criança conhece por experiência como utilizá-los, não obstante, porém, continua a ser uma experiência psicológica ingênua. Para compreender-se que é mais fácil recordar depois da repetição, há que se possuir certa experiência de memorização. Nos experimentos pode-se observar o transcorrer desse processo. Como é lógico, a memorização reforça-se na criança depois da repetição. A criança que não compreende o nexo entre a repetição e a memorização carece de suficiente experiência psicológica das condições reais no meio das quais se produz a própria reação e utiliza ingenuamente tal experiência (VYGOTSKI, 1995, p. 163).

Essa fase da utilização ingênua dos signos mostrou-se breve nos experimentos realizados por Vigotski e colaboradores. Logo as crianças passaram à fase seguinte que foi a da utilização deliberada dos signos em auxílio ao processo de memorização. Nessa fase as crianças passaram a organizar os cartões com desenhos de maneira a facilitar a recordação. Por fim, numa terceira fase, as crianças interiorizavam os signos e já não prestavam atenção aos cartões, ou seja, dispensavam o auxílio do recurso externo.

A diferença consiste em que a reação externa se converte em interna; a reação que antes resultava impossível pela presença de

um grande número de estímulos torna-se agora possível. Imaginemos o que ocorreu: toda operação externa tem, segundo dizem, sua representação interna. O que isso significa? Fazemos um movimento determinado, mudamos de lugar certos estímulos, um aqui, outro ali. Porém a esse fato corresponde um processo cerebral interno e como resultado de diversos experimentos similares, ao passar de uma operação externa a outra interna, todos os estímulos intermédios deixam de ser necessários e a operação se efetua na ausência dos estímulos mediadores. Dito de outro modo, produz-se um processo que chamamos convencionalmente de arraigamento. Se a operação externa converteu-se em interna, então realizou-se seu arraigamento no interior ou a passagem da operação externa à interna (VYGOTSKI, 1995, p. 164).

Essa operação mnemônica que se constitui de fora para dentro, ou como diz Vigotski, essa passagem da operação externa para o interior, surgiria por meio de três tipos de arraigamento. O primeiro tipo ocorreria tal como uma sutura que é feita para unirem-se duas partes do tecido epitelial que, após um tempo, cicatriza-se, deixando a sutura de ser necessária. Similarmente, a criança de início emprega um recurso externo intermediário que faz a ligação entre o estímulo externo original e sua reação. Aos poucos o estímulo intermediário deixa de ser necessário.

O segundo tipo de arraigamento é denominado por Vigotski como completo e ocorreria quando a criança é submetida ao mesmo experimento por diversas vezes e, nesse caso, ao ser solicitada a responder sempre a mesma coisa acaba por memorizá-la, levando ao interior os estímulos externos. Essa relação direta ao interior acaba por excluir “[...] a diferença entre os estímulos externos e os internos”. (VYGOTSKI, 1995, p. 165). Chegamos, assim, ao terceiro tipo de arraigamento considerado por Vigotski como o mais importante:

Finalmente, o terceiro e mais importante passo consiste em que a criança assimila as regras de utilização dos signos externos e como tem mais estímulos internos e opera com eles mais facilmente que com os externos, a criança, graças a seu conhecimento da própria estrutura rapidamente passa a utilizá-la como operação interna. A criança diz: “Não necessito dos desenhos, farei eu mesma”. E começa deste modo a utilizar os estímulos verbais (VYGOTSKI, 1995, p. 165).

Ao utilizar os estímulos verbais, o processo de desenvolvimento da memória se efetua mais rapidamente, de maneira abundante, produzindo operações internas que mudam sensivelmente a atitude da criança diante da tarefa que lhe foi atribuída. Desse ponto de vista, “[...] a linguagem é uma arma mnemotécnica que introduz

mudanças essenciais no processo de memorização, já que a memória verbal é, de fato, uma memória mediada com a ajuda dos signos” (VYGOTSKI, 1995, p. 260)