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2.1 PROPOSTAS CURRICULARES DESENVOLVIDAS A PARTIR DOS

2.1.1 Proposta Curricular do Estado do Paraná

A proposta curricular desenvolvida no Estado do Paraná na década de 1990 foi denominada de “Currículo básico para a escola pública do Estado do Paraná” (1990). O documento foi editado em 1990 com uma tiragem de 90.000 exemplares e distribuído nas escolas públicas do Estado. Apresentado como uma proposta curricular para o ensino fundamental que, na época, denominava-se ensino de 1º. Grau: elementar e fundamental, o documento foi sistematizado, coletivamente, pelos profissionais da educação pública paranaense. A implantação do ciclo básico de alfabetização em 1988 foi o ponto de partida para a reestruturação do currículo, pois desencadeou “[...] a reorganização dos demais conteúdos curriculares das outras séries desse grau de ensino”(PARANÁ, 1990, p. 13).

A elaboração desse documento tomou como referência a pedagogia histórico- crítica e a psicologia histórico-cultural para organizar os pressupostos teóricos das disciplinas, o encaminhamento metodológico, os conteúdos e a avaliação. Para atender o interesse desta pesquisa nossa análise voltar-se-á somente para a alfabetização, cuja proposta teve, em sua elaboração, a consultoria de Ligia Regina Klein e Rosiclér Schafaschek.

Procurando desenvolver uma proposta mais crítica para a educação as autoras buscaram as bases da teoria do materialismo histórico dialético para explicar que o desenvolvimento do processo pedagógico ocorre pela transmissão do conhecimento acumulado historicamente pela humanidade e que no caso especifico

da produção da linguagem oral e escrita o ponto de partida é a atividade especificamente humana, ou seja, o trabalho. O texto apresenta sinteticamente o desenvolvimento histórico do trabalho e a necessidade da produção da linguagem oral como meio de organização do processo de troca e transmissão das informações às gerações futuras: “Pela linguagem, porém, o homem não só consolida seus laços societários e acumula conhecimento – transmitindo informações – como também produz a possibilidade da consciência propriamente humana” (KLEIN; SCHAFASCHEK, 1990, p. 35).

As autoras fundamentaram sua proposta nos pressupostos teóricos da psicologia histórico-cultural e se posicionaram esclarecendo que a linguagem escrita ampliou o grau de abstração humana em razão do nível de complexidade que foi sendo desencadeado nas relações sociais do trabalho. A partir dessas considerações, assim foi definido o papel da alfabetização:

[...] ao instrumentalizar o aluno para a inserção na cultura letrada, cria as condições de possibilidades de operação mental capaz da apreensão dos conceitos mais elaborados e complexos que vem resultando do desenvolvimento das formas sociais de produção. Assim, apreender a língua escrita, é mais do que apreender um instrumento de comunicação: é, sobretudo, construir estruturas de pensamento capaz de abstrações mais elaboradas (KLEIN; SCHAFASCHEK, 1990, p. 36, grifo nosso).

De acordo com essa definição, Klein e Schafaschek, estabeleceram que para vencer esse desafio da alfabetização seria preciso analisar os elementos que conduziam esse processo, ou seja, o professor, o aluno e o objeto do conhecimento: a língua escrita. Para as autoras a percepção desses elementos é que determinaria os procedimentos metodológicos utilizados no processo da alfabetização. Para elas os métodos “tradicionais” de alfabetização somente enfatizavam o ensino da linguagem escrita em seu aspecto externo - grafema, fonema, letras e silabas, eliminando a dimensão da significação das palavras. Numa perspectiva defendida por Klein e Schafaschek a linguagem escrita é revestida de sentido e seu ensino demanda um trabalho com textos significativos. “Nessa perspectiva, desloca-se a ênfase do aspecto material da língua (gráfico-sonoro), para a constituição de sentido, para a dimensão argumentativa da linguagem, para o processo de interação [...]” (KLEIN; SCHAFASCHEK, 1990, p. 37).

Vista sob esta perspectiva, as autoras consideraram que a relação entre professor e aluno pressupõe a compreensão sobre os aspectos psicológicos da aquisição do conhecimento pela criança e o papel do professor frente a esse processo. Quando se referiram a este aspecto, elas buscaram a contribuição teórica vigotskiana para explicar que a criança se apropria das atividades sociais e das categorias conceituais pela mediação do adulto que a cerca. No entanto, quando se referiram ao conhecimento escolar, as autoras se apoiaram na obra “A formação social da mente” (VYGOTSKY, 1984). O caráter problemático dessa coletânea de textos organizada por pesquisadores norte-americanos foi analisado por Duarte:

[...] assim como no caso da edição resumida de Pensamento e Linguagem, também no caso de A Formação Social da Mente, não estamos perante um texto de autoria do próprio Vigotski mas sim de um texto que reflete muito mais o pensamento de alguns intérpretes (DUARTE, 2006, p. 172).

Um dos problemas apontados por Duarte (2001, p. 75-106) em relação à coletânea Formação Social da Mente diz respeito exatamente a um dos principais conceitos vigotskianos, ou seja, o conceito de zona de desenvolvimento próximo15. Duarte levanta a hipótese de que um parágrafo desse livro seria a fonte de um equívoco de interpretação amplamente divulgado, o de que a zona de desenvolvimento próximo (ou proximal) seria a distância entre o nível de desenvolvimento atual e o nível de desenvolvimento potencial. Ocorre que, como esclarece Duarte, na teoria de Vigotski acerca do desenvolvimento psicológico infantil não existem esses três níveis de desenvolvimento, mas apenas dois. Esse equívoco na compreensão desse importante tópico da teoria vigotskiana é indicador da existência de outros problemas nas tentativas de incorporação dessa teoria ao campo educacional.

Nesse aspecto em particular, o da análise da concepção vigotskiana acerca das relações entre desenvolvimento e educação escolar, a proposta curricular aqui analisada incorre no mesmo equívoco de interpretação (PARANÁ, 1990, p. 38), o que reforça a hipótese de que a origem desse problema estaria no mencionado parágrafo de A Formação Social da Mente. Mesmo assim, esta proposta curricular

15

Há variações da tradução para o português da denominação desse conceito: zona de desenvolvimento proximal, área de desenvolvimento potencial, zona de desenvolvimento imediato e zona de desenvolvimento iminente.

valoriza e enfatiza o trabalho do professor como portador do conhecimento, como o elemento capaz de fazer a mediação entre a criança e o ensino da linguagem escrita.

Ou seja, a produção da linguagem, quer oral, quer escrita, não é um processo natural: é o resultado de um lento esforço de produção, dos homens. Nesse sentido, sua apropriação também não é natural ou espontânea. Dar-se-á, pois, pela inserção do aluno nessa realidade histórico-cultural, a partir da mediação do professor. (KLEIN; SCHAFASCHEK, 1990, p. 39).

O encaminhamento metodológico dos conteúdos apresenta uma proposta de alfabetização que se inicia com textos, levando em consideração que o processo da aquisição da escrita, pela criança, teve início antes mesmo dela chegar à escola. Da mesma forma que Vigotski analisou em suas pesquisas, que a criança inicia a representação pelos gestos e depois utiliza jogos, brincadeiras e desenhos, as autoras também partiram desses princípios até chegar ao ensino sistematizado da linguagem escrita. Para isso, elas dizem que: “É importante, nesse sentido, que o professor pense a alfabetização na perspectiva do que a escrita representa, de seus valores e usos sociais, além da compreensão de como se organiza esse sistema de representação”. (KLEIN; SCHAFASCHEK, 1990, p. 39).

Isto posto, a proposta explicita o trabalho com textos indicando as atividades possíveis de se realizar com as crianças, como por exemplo: trabalhar o nome das crianças; trabalhar desenhos com ilustração de histórias contadas ou lidas; trabalhar com textos produzidos pelo professor, bem como todos os tipos de textos sociais, sejam eles poéticos, narrativos ou informativos. A proposta considera que o ponto de partida é o texto e também ele é o ponto de chegada. Para as autoras, isso justifica que todo trabalho de sistematização do uso do código linguístico não poderá ser feito dissociado da produção e interpretação do texto. Até este ponto a análise que fizemos da proposta nos pareceu coerente com a perspectiva teórica adota pelas autoras, mas quando elas propõem a atividade de ensino da reestruturação do texto acabam, a nosso ver, adotando alguns princípios da Psicogênese da Língua Escrita quando se referem à correção do professor aos erros dos alunos:

Quando a criança faz seus primeiros ensaios de produção de texto por escrito, o mais importante é garantir a fluência do ato de escrever. Assim sendo, neste momento o professor não terá como

preocupação a correção formal do texto, mas a elaboração e explicitação das ideias. Não se trata de um ‘vale tudo’ de um anarquismo ortográfico, mas do espaço de liberdade necessária para que a criança faça suas tentativas de escrita. É importante respeitar os ‘erros’ da criança como parte do processo de apropriação do código escrito. (KLEIN; SCHAFASCHEK, 1990, p.45).

No decorrer da proposta está claro que o objetivo maior é a produção textual e que a correção ortográfica fica a cargo das estratégias adequadas oferecidas pelo professor. Infelizmente a proposta não entra no mérito das estratégias adequadas, deixando a cargo da escola ou do professor a organização desse trabalho. Isso, que à primeira vista parece um detalhe de menor importância, pode ter deixado brecha para a aprendizagem espontânea, apesar das autoras terem negado em diferentes momentos esse tipo de ensino.

Não podemos negar que era uma proposta inovadora e arrojada, que propunha grandes desafios para a recuperação da alfabetização, mas infelizmente esse currículo básico para as escolas públicas do Estado do Paraná, não vigorou por muito tempo e a partir de 1995 foi substituído por uma proposta neoliberal. O governo Jaime Lerner que se manteve no cargo por dois mandatos, entre 1995 e 2003, priorizou a terceirização da educação paranaense negociando com empresas privadas a prestação de serviços para a rede pública de ensino. Todo o trabalho desenvolvido foi se diluindo e se esvaziando, até o momento em que o governo conseguiu municipalizar grande parte das escolas que ofereciam o ensino fundamental das séries iniciais. Naquela época os municípios já estavam abastecidos com o material dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e logo depois, em 2001, com o material do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA). Supridos com tanto material e com uma proposta curricular nacional, as secretarias municipais de educação não se preocuparam em pensar outra proposta para a alfabetização. Além disso, não podemos nos esquecer que os projetos de financiamentos oferecidos pelo Ministério da Educação deveriam ser “amarrados” com a proposta dos PCN, por isso não havia muito o que fazer contra as políticas públicas de educação. A proposta construtivista para a alfabetização tornou-se hegemônica nas escolas paranaenses.