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Samuel Fleischacker adverte151 que a “justiça distributiva”, em seu sentido moderno, é ideia recente no pensamento social e político ocidental, pois, ainda que as demandas conflitantes sobre a propriedade, por um lado, e os princípios sociais de distribuição de recursos, por outro, sejam preocupações antigas dos filósofos, apenas recentemente, há pouco mais de dois séculos, as pessoas passaram a reconhecer “que a estrutura básica da distribuição de recursos em suas sociedades era uma questão de justiça”, que “a justiça deveria exigir uma distribuição de recursos que satisfizesse as necessidades de todos”152 e que a justiça distributiva, em seu sentido moderno, “invoca o estado para garantir que a propriedade seja

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FLEISCHACKER, Samuel. Uma breve história da justiça distributiva. Tradução de Álvaro de Vita. São Paulo: M. Fontes, 2006.

distribuída por toda a sociedade de modo que todas as pessoas possam se suprir com certo nível de recursos materiais.”153

Tal concepção entende a justiça distributiva como imperativo social que se funda, sobretudo, antes na necessidade que no merecimento, como ocorria na concepção aristotélica.

Várias premissas precisam ser admitidas para que se possa passar do conceito aristotélico ao conceito moderno de justiça distributiva. Enumerando-as: 1) que aos indivíduos são devidos certos direitos e proteções; 2) que alguma parcela de bens materiais faz parte do que é devido a cada indivíduo; 3) que tal fato pode ser justificado racionalmente, em termos puramente seculares, independentemente de virtudes outras que não a da justiça, tais como caridade ou outras que obriguem apenas em nível moral; 4) que a distribuição dessa parcela de bens é praticável, não sendo algo absurdo ou que solaparia o próprio objetivo que se tenta alcançar, conforme proclamam as teses que justificam a existência das desigualdades se os sistemas resultantes promoverem um melhor estado de bem-estar a todos; 5) que compete ao Estado, e não somente a indivíduos ou organizações privadas, garantir que tal distribuição seja realizada.154

Nesse sentido moderno, a justiça distributiva não pode ser contraposta ao pensamento dos cientistas sociais do século XVIII, ideólogos do laissez-faire, como David Hume e Adam Smith, entre outros, que, ao se libertarem do que o autor chama “tolas noções de „preço justo‟ da Idade Média”, tornam possível a economia moderna. Segundo Fleischacker, longe de serem amoralistas frios155, tais pensadores construíram as bases que permitiram o direcionamento da atuação estatal no sentido da “ajuda aos pobres”156157.

O fato é que o desenvolvimento da teoria da justiça distributiva no âmbito de sistemas econômicos de matriz liberal é testemunho vigoroso da amplitude dos conceitos e ideias envolvidos. De acordo com Fleischacker:

A “justiça distributiva”, em seu sentido moderno, invoca o Estado para garantir que a propriedade seja distribuída por toda a sociedade de modo que todas as pessoas possam se suprir com certo nível de recursos materiais. As discussões sobre justiça distributiva tendem a se concentrar na quantidade de recursos que se deve garantir e

153 Ibid., p. 8. 154

Ibid., p. 12.

155 Fleischacker utiliza várias passagens de Jeremy Benthan, Adam Smith e Stuart Mill para ilustrar as

preocupações distributivistas desses autores. Frisa, entretanto, que o argumento utilitarista utilizado por estes,que, de certa forma, vai persistir até mesmo em Rawls, dois séculos mais tarde, para justificar a desigualdade, é o de que esta se justificaria na situação, e apenas na situação, em que as pessoas que se encontrem em pior situação em um sistema de desigualdade, ainda assim se encontrem em melhor situação do que estariam sob uma distribuição igualitária de bens. Recorrendo a uma figura de Locke, “um rei ameríndio é materialmente mais pobre que o mais pobre dos trabalhadores diaristas na Inglaterra.”. (Ibid., p. 58).

156

Ibid., p. 7-8.

157 Coloca-se entre aspas “ajuda aos pobres” pelo sentido piedoso que a expressão possa abrigar, a ser

no grau em que essa interferência estatal é necessária para que esses recursos sejam distribuídos.158

A justiça distributiva, no âmbito de sistemas econômicos de matriz liberal, possui um de seus fundamentos sólidos na igualdade de oportunidades. E, para a garantia desta, não restaria suficiente a utilização exclusiva do mecanismo distributivo do mercado, tornando-se necessário o concurso do Estado para redistribuir bens, corrigindo as imperfeições do sistema. A atuação do Estado como agente da redistribuição de bens, conquanto em medidas e proporções totalmente distintas, torna-se necessária independentemente da concepção ideológica relativa aos direitos de propriedade; ou seja, é preciso a presença do Estado como agente da redistribuição159, quer tal intervenção se volte a prover o reequilíbrio necessário ao sistema de livre mercado, em um sistema de matriz liberal, quer se volte para garantir uma idealizada partição equitativa de todos os bens disponíveis, em um sistema de matriz social. Talvez, a diferença de fundo resida mais no grau da intervenção estatal que na natureza dessa intervenção.

Em se tratando de grau, haveria que se respeitar, fundamentalmente, as características específicas da sociedade considerada, incluindo a sua concepção de justiça. Tais características são determinadas, embora não exclusivamente, pelo seu desenvolvimento histórico.

Importa, entretanto, neste estudo, o objetivo de promover uma aproximação entre as fundamentações liberal e social da equidade, de considerar as ideias de John Rawls, que, como será visto, dará uma autêntica fundamentação científica e filosófica para a discussão da equidade e da justiça distributiva no âmbito do pensamento liberal, emancipando-se, de certa forma, tanto do pragmatismo objetivo de sistemas puramente utilitaristas quanto da abstração subjetivista de sistemas morais puramente intuicionistas.