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6.1 A IDEIA DA IGUALDADE NO PARADIGMA SOCIAL

6.1.1 Identidade e Igualdade

Como de certa forma já salientado quando se tratou da crítica à teoria da justiça como equidade, um aspecto importante da questão igualitária é que nela o indivíduo deve ser entendido não apenas na sua individualidade perante a sociedade, mas também como integrante, dentro dela, de grupos sociais específicos. Uma dimensão relevante para a discussão de promoção da igualdade é a da identidade e das diferenças que tais grupos determinam dentro da sociedade.

Michel Rosenfeld215 afirma que a igualdade é uma ideia central no constitucionalismo moderno, tratando-se, no entanto, de uma ideia singularmente evasiva. A igualdade constitui-se no direito constitucional potencialmente mais extenso, inclusive porque

214 CAMPILONGO, Celso Fernandes. O Judiciário e a democracia no Brasil. Dossiê judiciário, n. 21, p. 116-25,

mar.-mai. 1994. Disponível em: <http://www.usp.br/revistausp/n21/fcelsotexto.html>. Acesso em: 27 fev. 2002.

215 ROSENFELD, Michel. Hacia una reconstrucción de la igualdad constitucional. Derechos y libertades:

penetra em muitos outros216, porém, apesar da sua virtual onipresença, é difícil de ser precisada em face das disputas que se travam em torno de seu objeto e âmbito relevantes:

A solução das pretensões de igualdade constitucional somente pode ser entendida adequadamente – e, portanto justificar-se ou criticar-se legitimamente – se enquadrada na luta dialética sobre a natureza e alcance da igualdade constitucional. Esta luta é, sobretudo, a luta dialética sobre a natureza e alcance da igualdade constitucional é uma luta sobre identidade e diferença, é dizer, uma luta sobre os casos nos quais as pessoas deveriam ser consideradas como iguais, e os casos nos quais podem ser consideradas como não iguais, para os efeitos da igualdade constitucional.217

Segundo o autor, haveria três etapas de desenvolvimento da ideia de igualdade constitucional com base em sua origem moderna, como expressão do repúdio aos privilégios do Estado absolutista. Na primeira etapa dialética, a diferença se correlaciona com a desigualdade, isto é, os caracterizados como diferentes são tratados desigualmente conforme sua posição na hierarquia. Na segunda etapa, a identidade se correlaciona com a igualdade, de maneira que todos possuem o direito de serem tratados igualmente desde que reúnam certos critérios adotados como critérios de identidade. Por fim, na terceira etapa, a diferença se correlaciona com a igualdade, pois qualquer pessoa será tratada igualmente na proporção de suas particulares necessidades e aspirações218.

Rosenfeld exemplifica com a luta pelos direitos iguais das mulheres, mas é possível facilmente identificar as etapas assinaladas em toda e qualquer luta igualitária de um determinado grupo social, a qual culmina com um ponto em que as diferenças concretas serão consideradas visando a uma igualdade abstrata.

No exemplo dado, a primeira etapa corresponde ao momento em que as diferenças entre homem e mulher são utilizadas para colocar as mulheres em situação de inferioridade, correspondendo-lhe um tratamento opressor imposto por toda a sociedade. Em uma segunda etapa, as mulheres pleiteiam um tratamento igualitário com base na identidade, buscando eliminar as diferenças existentes entre elas e os homens219. Por fim, na terceira etapa, sempre

216 O que Robert Alexy refere como direito geral de igualdade e direitos de igualdades específicos. (ALEXY,

Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 393. tradução nossa)

217 “La resolución de las pretensiones de igualdad constitucional sólo puede entenderse adecuadamente – y por

tanto justificarse o criticarse legítimamente – si se encuadra en la lucha dialéctica sobre la naturaleza y alcance de la igualdad constitucional. Esta lucha es, sobre todo, una lucha sobre identidad y diferencia, es decir, una lucha sobre los casos en los que las personas deberían ser consideradas como iguales, y los casos en que pueden ser consideradas como no iguales, a efectos de la igualdad constitucional.” (ROSENFELD, op. cit., p. 413, tradução nossa).

218 Ibid., p. 415. 219

“[...] inclusive, devido a que essas demandas ocorrem em uma situação dominada por homens, a identidade que as mulheres devem atender em sua busca por igualdade é uma identidade orientada em direção ao homem.” (“[…] incluso, debido a que esas demandas tienen lugar en una situación dominada por hombres, la identidad

em processo, as mulheres demandam uma igualdade que leve em consideração as diferenças existentes entre os sexos, sem, no entanto, que a elas advenham prejuízos. Resulta que homem e mulher sejam tratados de igual forma, proporcionalmente às suas diferentes necessidades e aspirações. Isso significa que, na terceira etapa da luta pela liberação feminina, a mulher não precisa, não desejando, assumir a identidade masculina para que seja tratada de forma igualitária em relação ao homem, porque o tratamento igualitário distinguirá suas diferentes necessidades e aspirações.

No campo da igualdade de acesso à atenção em saúde, pode-se traçar, em linhas gerais, uma evolução semelhante. Na primeira etapa da luta dialética igualitária, a diferença, isto é, possuir ou não recursos materiais, contribuir ou não para o sistema previdenciário, corresponde a um desigual tratamento no acesso às ações e aos serviços de saúde. Em uma segunda etapa, com o reconhecimento da saúde como direito de todos e do imperativo de acesso equitativo à atenção sanitária, a identidade na condição humana corresponde a uma preconizada igualdade no acesso. Já a terceira etapa dialética, em andamento, haverá de fazer corresponder com que à diferença de identidade se correlacione uma igualdade que respeite as distintas necessidades e aspirações.

Essa terceira etapa é tão importante quanto o reconhecimento da universalidade e equidade no acesso, porque implica reconhecer, nessa universalidade e equidade, a diversidade de público à que a atenção sanitária se dirige, por idade, sexo, raça, condição social, etc., bem como acarreta reconhecer que o destinatário dessa atenção deve, inclusive, ser participante e responsável pelas trajetórias tecnológicas por ela assumidas, definindo, como vimos na seção 2 desta dissertação, não apenas o conceito de saúde, mas também o conteúdo do direito à saúde que pretende ver observado por todos. Em outras palavras, também sob o aspecto do acesso às ações e aos serviços de saúde, as pessoas apresentam identidades e diferenças em suas necessidades e aspirações, as quais a igualdade constitucional deverá considerar.

Esta terceira etapa é sempre um ideal, do qual se pode sempre se aproximar sem nunca alcançá-lo plenamente. A aproximação, além disso, envolve riscos de regressão à primeira etapa, os quais precisam ser evitados. Com esse objetivo é possível e necessário uma constante e permanente reconstrução da igualdade constitucional, pois como apontado por é Michel Rosenfeld: “Novas identidades podem ser forjadas mediante a prévia nivelação de

que las mujeres deben acoger en su búsqueda de la igualdad es una identidad orientada hacia el varón.”). (Ibid., p. 415, tradução nossa).

diferenças artificiais. E, em conjunto, todas as identidades e novas ou até então subenfatizadas diferenças podem ser construídas ou reconstruídas”220.

Outro ponto relevante a observar na abordagem acima descrita é que o desenvolvimento da percepção da igualdade possui um caráter dinâmico na sociedade e está circunscrita pelos dados estruturais e pelas variáveis históricas e culturais desta.

Para exemplificar com o objeto deste trabalho, o problema da igualdade no acesso às ações e aos serviços de saúde somente emerge, para citar duas condicionantes histórico- culturais, a partir do momento em que os recursos médicos tornam-se disponíveis como uma realidade fática e a partir do momento em que os membros de uma sociedade adquirem a consciência da atenção à saúde como um direito seu, buscando dele se apropriar.