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No desenvolvimento da sua reflexão, o autor apoia-se, entre outras, na obra de Cláudia Castelo (998) O modo

O “ARRASTãO” MEdIáTICO E A ACçãO dOS MEdIA

1 No desenvolvimento da sua reflexão, o autor apoia-se, entre outras, na obra de Cláudia Castelo (998) O modo

“Após ter sido apropriado pelo campo do político e aceite sem críticas pelo campo científico, o «não racismo» português veiculado pelo Estado Novo foi inoculado por todos os meios na mentalidade dos portugueses. Por outras palavras, este mito português tem as suas origens nos potentes mecanismos de difusão ideológica postos em marcha quer no exterior que no interior durante a fase final do Estado Novo” (Marques, 2007: 30).

Cabecinhas, Lima e Chaves (2006: 27) confirmam essa herança, espelhada em representações hegemónicas, como imagens do passado que legitimam a ordem social presente, e que também evidenciam de forma clara expressões da memória social como um campo de disputa entre grupos.

Neste processo de transmissão de uma imagem idealizada (estereotipada) da nação, que persiste ainda nos dias de hoje, importa analisar o impacto dos media na difusão de representações negativas dos grupos minoritários, “frequentemente associados aos problemas da criminalidade e violência urbanas, ao desemprego, ao tráfico de drogas, à economia subterrânea, à insegurança, aos custos sociais e, mais recentemente, ao terrorismo” (Marques, 2007: 14). Por seu lado, Rosário, Santos e Lima (2011: 64) consideram que os media desempenham um papel sistemático e dinâmico no processo de socialização, realçando ser necessário perceber se os seus conteúdos são portadores de estereótipos e de mensagens discriminatórias que influenciam significativamente a opinião pública, nomeadamente, mediante a análise dos discursos sobre as minorias. No quadro desta análise torna-se evidente a importância que Lippman (2002: 28-29) atribui aos estereótipos e preconceitos, assumindo-os como processos cognitivos com um carácter duplo, manipulativos e estabilizadores da realidade no processamento de informação em sociedades complexas, uma vez que o papel do observador é sempre selectivo. Por sua vez, Gomes (2011: 20-21) realça que nos media é visível a mercantilização ou “comodificação” da informação, ao escolher aquilo que é mais extraordinário para as suas audiências, e a imprensa popular, mais do que a de referência, acaba por adulterar a realidade, provocando uma deturpação na percepção

da realidade, recorrendo à rotulação qualitativa e pejorativa quando usa imagens e linguagens sombrias e sensacionalistas de certos indivíduos ou grupos sociais.

Com efeito, não se pode omitir que a presença e a expressão dos preconceitos étnicos na sociedade também decorre por via da sua veiculação pelos media, em discursos que habitualmente reproduzem preconceitos étnicos e estereótipos que são coerentes com as opiniões negativas expressas ou implícitas. Importa realçar nesta análise que:

“os debates sobre os meios de comunicação social e a integração dizem também respeito aos direitos e liberdades fundamentais. Por ser um direito fundamental de qualquer democracia funcional, a liberdade de expressão não deve ser colocada em causa. Este direito, consagrado no artigo 10.º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e nas Constituições de muitos países, permite que certas ideias e discussões controversas sejam veiculadas pelos meios de comunicação social, incluindo aquelas que traçam um retrato negativo dos imigrantes e que podem, desta forma, prejudicar a sua integração. Por outro lado, todos os Estados democráticos têm o dever de proteger as pessoas de discursos racistas e xenófobos que incitem ao ódio” (Direcção Geral da Justiça, da Liberdade e da Segurança, 2010: 28).

Procurando compreender o impacto dos media nas representações negativas de grupos sociais, iremos analisar, ainda que de forma breve, uma situação exemplificativa destes processos. Assim, tomamos como foco da análise a notícia que foi amplificada por vários órgãos de comunicação social, a 10 de Junho de 2005, na praia de Carcavelos, tendo o evento sido descrito como um “arrastão” (AA.VV., 2006).

Segundo a Lusa, 500 jovens e adultos constituídos em gangs entraram na praia e começaram a saquear e a agredir os banhistas. De acordo com a RTP, ao princípio da tarde, grupos de 30 a 50 jovens, em simultâneo e de uma forma aparentemente organizada, assaltaram e agrediram os banhistas que gozavam o sol em diversos locais da praia. Para a TVI, foi uma tarde de terror e pânico em Carcavelos. Segundo o Correio

da Manhã, o terror instalou-se quando cerca de 500 rapazes e raparigas, organizados em vários grupos, começaram a varrer a praia de Carcavelos, onde estavam milhares de pessoas, roubando e agredindo. O Público noticiava que cerca de meio milhar de jovens, entre os 12 e os 20 anos, varreram o areal de Carcavelos e, até chegar a polícia, roubaram o que quiseram aos banhistas. Para o Diário de Notícias, a praia de Carcavelos foi invadida por uma onda de assaltantes que espalharam o pânico (AA.VV., 2006; Correia, 2009).

O que aconteceu, na verdade, foi um assalto, na praia de Carcavelos, no qual estiveram envolvidos 30 a 40 jovens, sendo uma situação que já tinha ocorrido anteriormente, no mesmo local e em outras praias, com conhecimento das forças policiais. Veja- -se a justificação da queixa apresentada pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial:

“Como confirmou mais tarde a PSP: “Sempre foi comum juntarem-se vastos grupos nas praias de onde depois divergiam pequenos núcleos de oito ou dez indivíduos que praticavam assaltos. Concluímos que na sexta-feira aconteceu o mesmo, só que devido às centenas de pessoas que se encontravam na praia o fenómeno tomou outras proporções. De um grande grupo de 400 ou 500 pessoas só 30 ou 40 praticaram ilícito”, afirma o responsável do Comando da PSP de Lisboa.

Mas os erros jornalísticos não terminam aqui. As imagens que têm sido veiculadas como sendo do “arrastão” (…) constituem uma manipulação, pois não correspondem ao acontecimento. Como referiu a Direcção Nacional da PSP em conferência de imprensa: “Muitos jovens que apareceram em imagens televisivas e fotográficas a correr na praia de Carcavelos, naquele dia, não eram assaltantes, mas tão só jovens que fugiam com os seus próprios haveres”. Apesar disso, tal informação, prestada no dia 17, não teve impacto na informação de origem, que continua a ser disponibilizada de forma errada. Por fim, foi repetidamente enunciada pelos media a suspeita de se tratar de um crime organizado e, por isso, mais grave. O Comandante Metropolitano da PSP em declarações públicas reproduzidas pelo PÚBLICO, refutou essa suspeição:

“Para o superintendente Oliveira Pereira, os assaltos também terão sido decididos na altura na praia e não fruto de uma organização mais elaborada que levasse centenas de pessoas a Carcavelos com intuitos criminosos”.

Apesar deste desmentido público perdurou a mesma suspeição nos dias seguintes” (AA. VV., 2006: 15).

Após apresentação de queixa por parte da Presidente da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial à Alta Autoridade para a Comunicação Social, esta entidade averiguou e apurou os factos, tendo concluído que:

“desde a Agência Lusa, cujos comunicados estiveram na origem das notícias, às diferentes edições dos telejornais e dos noticiários da imprensa escrita, os respectivos orgãos, objecto da sua apreciação, procederam, generalizadamente, com evidente falta de rigor informativo, de isenção e de objectividade, não utilizando (...) os meios e processos devidos e ao seu alcance para uma procura da realidade dos factos e, assim, transmitindo, quer a nível nacional, quer a nível internacional, uma versão deturpada, enganadora, tendenciosa dos acontecimentos, com evidentes repercussões sociais indutoras do racismo e da xenofobia, contribuindo objectivamente para o reforço da exclusão social” (AA.VV., 2006: 61).

No domínio das emoções, o sentimento de terror na praia foi atribuído a indivíduos de uma origem étnica, oriundos de vários bairros da Grande Lisboa, definidos como problemáticos. Este exemplo torna evidente que os media podem contribuir para a construção de representações estereotipadas falaciosas, associando determinados atributos e características a todos os membros de um grupo, adoptando-os nas estratégias discursivas, nomeadamente:

“a) A metaforização dos emigrantes e da imigração como fenómeno inquietante, comparando-o por exemplo a fenómenos naturais: “vaga”, “fluxo”, “onda, “avalanche”, acabando por caracterizar o fenómeno como uma espécie de inevitabilidade com ressonâncias climáticas, ante o qual nada se pode fazer ou a incidentes de natureza militar e bélica: “invasão”;

b) Associação dos imigrantes e minorias étnicas a conflitos e a criminalidade, e sua descrição como actores sociais potencialmente conflituosos: há que destacar que ao lado de representações que associam directamente a imigração à delinquência, há representações mais subtis relacionados com a má vizinhança, o desrespeito e a perturbação da ordem;

c) Publicitação de visões integradoras que, sendo aparentemente progressivas, têm implícito o desconhecimento das diferenças específicas das minorias étnicas, sendo por vezes, portadoras de formas de xenofobia oculta que se traduz na ideia que os imigrantes para integrar-se têm de mudar os seus valores” (Correia, 2009: 119-120).

Ainda seguindo a análise de Correia, importa ter em atenção que os media “são, inevitavelmente, portadores de conteúdo ideológico, mesmo quando veemente se afirmam alheios a quaisquer tipos de vinculações desse tipo” (2009: 79).

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