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3 DESIGNAÇÕES NAS FRONTEIRAS DO (NÃO-)PLÁGIO NO DISCURSO DO CONAR

3.1 DESIGNAÇÃO COMO UM PROCESSO DISCURSIVO

A relação entre palavra e objeto, ou mais amplamente entre a linguagem e o mundo, é uma das questões mais antigas concernentes aos estudos da linguagem, como se pode observar, por exemplo, na discussão filosófica clássica trazida por Platão, na obra intitulada “Crátilo”, acerca das teses naturalista e convencionalista da linguagem. Nesta obra, Platão ([V a.C.] 2001, p. 43-44) cria um diálogo entre Crátilo, que acreditava “que cada um dos seres tem um nome correto que lhe pertence por natureza”, Hermógenes, que defendia que o “nome que alguém puser a uma coisa, esse será o nome correto” e Sócrates, que se posicionara no entremeio destas duas teses, argumentando que o nome dado a algo é uma convenção, mas não arbitrária (ou seja, aponta para alguma associação natural), já que é da ordem do coletivo, pois, do contrário (sendo individual), não seria possível a comunicação.

Na modernidade, o matemático lógico alemão Gottlob Frege, especialmente em seu ensaio “Sobre o sentido e a referência” também vem refletir sobre a linguagem e a exterioridade. À discussão clássica sobre a relação entre nome e coisa, Frege acrescenta a noção de sentido. Diz Frege ([1892] 2009, p. 131):

É, pois, plausível pensar que exista, unido a um sinal (nome, combinação de palavras, letras), além daquilo por ele designado, que pode ser chamado de sua referência (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar de o sentido (Sinn) do sinal, onde está contido o modo de apresentação do objeto.

Ou seja, na linguagem, além do sinal e do objeto para o qual ela aponta, há o sentido, que seria o modo pelo qual a língua apresenta este referente do mundo. Frege procura então esclarecer que sentido não é o mesmo que representação. Enquanto que o sentido seria uma apreensão coletiva e objetiva do referente, a representação seria uma “ideia” subjetiva que emergiria da individualidade do pensamento. A lógica, segundo Frege, devendo se ocupar daquilo que é objetivo, e, portanto, “verdadeiro”, não trataria dessa dimensão subjetiva da referência, o que ficaria a cargo da psicologia.

Pêcheux ([1975] 1997), por sua vez, simpático a esse antipsicologismo de Frege, irá retomar algumas de suas proposições para, no entanto, chegando ao que considera ser o “ponto cego” da teoria fregeana – o idealismo –, propor alguns desenvolvimentos da semântica em torno da sua proposta da Análise do Discurso.

Voltemos, assim, a Frege. Para o autor, existe uma “conexão regular entre um sinal, seu sentido e sua referência”, que faz com que um sinal corresponda a um sentido e este a uma referência, sendo a referência possível de estar relacionada a mais de um sinal. No entanto, Frege (2009, p. 132) aponta que as línguas naturais apresentam exceções a essa regra:

Certamente, a cada expressão que pertença a um sistema perfeito de sinais deveria corresponder um sentido determinado; as linguagens naturais, porém, raramente satisfazem a essa exigência e deve-se ficar satisfeito se a mesma palavra, no mesmo contexto, sempre tiver o mesmo sentido.

É justamente este logicismo idealista de Frege que Pêcheux (1997) irá criticar, pois o filósofo francês não vê essas “exceções” (que resultariam em “ilusões dos sentidos”, segundo Frege) como “imperfeições da linguagem”1.

A partir do exemplo “aquele que salvou o mundo morrendo na cruz nunca existiu”, Pêcheux (1997, p. 97-99) mostra que esta frase não deveria ser entendida como “absurda e desprovida de qualquer sentido” por não haver relação lógica-formal entre a designação de algo e a afirmação sobre esse algo, pois poderia ser relacionada ao discurso ateísta que nega a existência de um Deus que o discurso cristão pressupõe-se existir. Para Pêcheux (1997, p. 99), o que ocorre nesta frase, do ponto de vista discursivo, é o efeito de sentido produzido na relação de “separação, distância ou discrepância na frase entre o que é pensado antes, em outro lugar ou independentemente, e o que está contido na afirmação global da frase”. Seria, assim, efeito de sentido suscitado pelo encaixe sintático do pré- construído2 na enunciação. Ou, dito de outro modo, efeito produzido no

discurso quando um elemento de um “domínio de pensamento” circulante no interdiscurso irrompe em outro domínio na formulação intradiscursiva, onde a relação entre a designação e a referência adquire sentido.

A tal possibilidade de sentido de tal frase, portanto, não seria uma “imperfeição da linguagem” e sim um efeito discursivo. Isto porque, como vimos, na introdução deste trabalho, a Análise do Discurso concebe a linguagem como opaca, não transparente. Ou seja, para essa perspectiva, a relação entre o mundo e a linguagem não é direta, não se tratando do “mundo em si”, mas do “do mundo para” (ORLANDI, [1996] 2004, p. 28). Isto porque, como nos esclarece Orlandi (2004, p. 30): “diante de qualquer objeto simbólico ‘x’ somos instados a interpretar o que ‘x’ quer dizer. Nesse movimento da interpretação, aparece-nos como conteúdo já lá, como

1 Como diz Leandro Ferreira (2010, p. 19): “A língua da AD admite a falta, o furo, a falha;

não trabalha com uma noção de estrutura fechada e homogênea e incorpora o termo ‘real da língua’, trazido por Milner da psicanálise, para expressar essa incompletude, esse não-todo que é próprio da língua e a constitui”.

2

O termo pré-construído foi elaborado por Paul Henry ([1977] 1992) “para designar o que remete a uma construção anterior, exterior, mas sempre independente, em oposição ao que é ‘construído’ pelo enunciado” (PÊCHEUX, 1997, p. 99).

evidência, o sentido desse ‘x’”. É justamente tornar evidentes esses sentidos o trabalho da ideologia, fazendo conduzir a interpretação de “x’ em determinada direção”. Ou, como diria Pêcheux (1997, p. 160):

É a ideologia que fornece as evidências pelas quais “todo mundo sabe” o que é um soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem com que uma palavra ou um enunciado “queiram dizer o que realmente dizem” e que mascaram, assim sob a “transparência da linguagem”, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos enunciados.

Portanto, a relação de sentido entre as palavras e as coisas – ou entre as designações e seus objetos de referência (os referentes) –, não é direta por antes ser efeito de um gesto3 de interpretação, interpretação que a ideologia

faz aparentar não existir, como se o sentido já estivesse lá.

Ocorre que não há sentido sem interpretação, tampouco interpretação sem sujeito, nem mesmo sujeito sem ideologia e, sendo assim, “as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam” (PÊCHEUX, 1997, p. 160). Isso porque, ainda de acordo com Pêcheux, essas posições (ideológicas) estão materializadas em formações discursivas (FDs), que determinam “o que pode e deve ser dito” – e, por consequência, o que não pode e não deve ser dito – em uma dada conjuntura, a partir de uma dada posição4. Desse modo, o

sentido de uma mesma designação pode variar de uma FD para outra (ou de uma posição-sujeito para outra), da mesma forma que designações

3 Orlandi (2004, p. 18) explica que o termo “gesto” procura marcar que a interpretação é um

ato da ordem do simbólico (enquanto possibilidade de apreensão – sempre aberta, incompleta, sujeita à falha – do real).

4 A FD regula e organiza seus dizeres pela forma-sujeito, que é o sujeito do saber, universal,

histórico (“ponto onde se ancora a estabilidade referencial dos elementos de um saber”, de acordo com Courtine, 2009, p. 87) em oposição ao sujeito do discurso. Os sujeitos do discurso, na enunciação, por sua vez, ao se inscreverem em uma determinada FD, podem tomar diferentes posições – de identificação, contraidentificação ou desidentificação – com relação a essa forma-sujeito. A primeira modalidade, a da identificação, é aquela que caracteriza o discurso do “bom sujeito”: quando o sujeito do discurso se identifica com a forma-sujeito da FD; já a segunda, a da contraidentificação, o sujeito do discurso se contrapõe à forma-sujeito da FD, caracterizando o discurso do “mau-sujeito”; há ainda uma terceira modalidade, a de desidentificação, quando o sujeito do discurso se desidentifica com a forma-sujeito de uma FD, se deslocando para uma outra (PÊCHEUX, 1997, p. 215- 217; INDURSKY, 2007, p. 80-82; 2008, p. 12-15). Abordaremos novamente esses conceitos no capítulo 4.

diferentes, em uma determinada FD (ou numa determinada posição-sujeito), podem adquirir o mesmo sentido.

Nessa perspectiva, quando se fala em plágio (ou mesmo plágio publicitário), devemos entender que se trata de uma designação que suscita efeitos de sentido múltiplos, moventes, instáveis, cujo referente se constrói discursivamente, já que este, enquanto objeto do discurso, é também um ponto de vista do sujeito (PÊCHEUX, [1969] 2010a, p. 82). Vale dizer ainda que as designações produzem certos sentidos e fixam seus objetos de referência a partir de outras designações que circulam no interdiscurso

enquanto memória do dizer5 (INDURSKY, 1999; ZOPPI-FONTANA, 1999), em

processos discursivos que envolvem relações de paráfrases, sinonímias, substituições6 (MARIANI, 1998). Ainda de acordo com Mariani (1998, p.

114):

a questão da “referência”, portanto, toca simultaneamente em questões de base linguística (os muitos e possíveis modos de se produzir sentidos na materialidade linguística) e de história (as fronteiras e tensões impostas para as significações pelas nem sempre visíveis determinações sociais e jurídicas que, regulando as formas de dizer, impedem que se diga qualquer coisa de qualquer lugar).

O processo discursivo de designação e construção do referente se dá, dessa forma, não sem disputas em torno da estabilização dos seus sentidos, não sem confrontos de discursos (GUIMARÃES, [2002] 2005)7. Assim, como

havíamos ressalvado em nossas problematizações, ao fazermos a pergunta “o que é um plágio publicitário?”, não estamos levantando uma questão ontológica, interessando-nos, de fato, entender o plágio enquanto construção

5 A memória discursiva (que não é a memória psicológica, individual) está relacionada aos

já-ditos que sustentam o dizer (ORLANDI, 2004). É a “existência histórica do enunciado no interior de práticas discursivas regradas por aparelhos ideológicos”, segundo Courtine (2009, p. 106). Já Pêcheux ([1983], 2007, p. 52) a define como “aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os ‘implícitos’ [...] de que sua leitura necessita: a condição do legível em relação ao próprio legível”.

6 Quando uma designação é utilizada, outra deixa de ser e o não-dito, em AD, também

produz efeitos... É “silêncio significante”, como diz Orlandi ([1992] 1997, p. 23).

7 Distinguindo designação de referência, Guimarães (2005, p. 9) diz que “a designação é o

que se poderia chamar de significação de um nome”, sendo esta significação uma relação simbólica tomada na história. Já a referência seria “a particularização de algo na e pela enunciação”.

discursiva, ou melhor, entender como se dá essa construção no/pelo discurso sobre o plágio publicitário, escolhendo nos ater à sua produção e circulação no Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), pois, como já dissemos, esta instituição tem sido responsável por julgar os casos suspeitos de plágio na área de publicidade no Brasil8,

constituindo-se um lugar privilegiado para a observação desse “confronto discursivo”. Afinal, como nos lembra Cazarin (2004, p. 228), “em AD, a preocupação não é com o referente ou com a designação em si, pois o que se leva em conta são os efeitos de sentidos”9, importando aí então as condições

de produção10 do discurso.

Então, reformulando e desdobrando aquela pergunta, agora questionamos: quais os efeitos de sentido que a designação plágio produz quando é utilizada nos julgamentos dos casos suspeitos que ocorrem no Conar? Quando essa designação é substituída por imitação, cópia ou designações correlatas e que efeitos essas substituições suscitam? Como é construído discursivamente o referente da designação plágio? E, por outro lado, como se designa o que não é um plágio (o que vimos denominando como “não-plágio”) e que efeitos tais designações produzem? Como os discursos constroem esses referentes do não-plágio? Que efeitos essas designações e construção de seus referentes produzem na delimitação discursiva das fronteiras do plágio e do não-plágio?

8 O Conar julga não só casos de suspeita de plágios, como várias outras “infrações” que

ferem o seu Código de Ética, tais como publicidade enganosa ou abusiva e outras que desrespeitem os princípios de veracidade, responsabilidade social etc.

9 Se, na lógica formal, a questão da referencialidade diz respeito à condição de veracidade da

correspondência entre a “palavra” e as “coisas do mundo”, na abordagem discursiva, a referencialidade é estudada para se observar a produção histórica de sentido da designação e do referente. Nas palavras de Indursky (1997, p. 25): “a relação signo-sentido, que é estável e unívoca na língua, desestabiliza-se quando é tomada em sua situação de uso. Por essa razão, a linguística ocupa-se dos sentidos estabilizados do léxico de uma língua, passíveis de dicionarização, limitando-se ao estudo de seu sentido e referência, enquanto a AD interessa-se pelas representações feitas pelo homem no uso que este faz do léxico em sua prática discursiva, procurando examinar as transformações de sentido, bem como os efeitos daí decorrentes”.

10 Segundo Orlandi ([1990] 1999, p. 30), as condições de produção (CPs) compreendem os

sujeitos e a situação (envolvendo aí o jogo das formações imaginárias – as representações e antecipações – desses sujeitos e situação) e a memória discursiva. Em sentido restrito, as CPs dizem respeito às circunstâncias de enunciação, isto é, o contexto imediato e, em sentido mais amplo, ao contexto sócio-histórico (ideológico), como vimos no capítulo 2.

3.2 SENTIDOS DE PLÁGIO EM RELAÇÃO A DESIGNAÇÕES