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Desigualdades, iniquidade e justiça social em saúde

CAPÍTULO II VISÃO ANTROPOLÓGICA DA SAÚDE PARTICULAR SITUAÇÃO DA SAÚDE ORAL

2.2. Desigualdades, iniquidade e justiça social em saúde

Numa primeira análise, desigualdade e igualdade são conceitos dimensionais que se referem a quantidades perfeitamente mensuráveis. Um exemplo simples de desigualdade em saúde é uma maior incidência da doença X no grupo A, em comparação com o grupo B da população P. Se a doença X é aleatória ou distribuída igualmente entre todos os grupos da população P, então não há presença de desigualdade em saúde nessa população. Noutras palavras, a desigualdade em saúde é um termo descritivo que não implica juízo moral (Kawachi et al., 2002; Alleyne, 2002).

Os mesmos autores apresentam um outro exemplo, que nos parece um pouco mais concreto e de fácil compreensão, para que se consiga perceber o conceito de desigualdade. Imaginando que o indivíduo A morre num acidente de sky diving aos 40 anos, o seu irmão gémeo homozigótico B, que não gosta deste hobby, vive até aos 80 anos. Neste caso, os tempos de vida desiguais de A e B (neste caso as expectativas de vida desiguais entre praticantes de sky diving e não praticantes) reflete uma escolha pessoal que não deve causar preocupação moral. Tentar comparar o estado de saúde entre indivíduos de idades muito díspares, ou puros acasos, como por exemplo uma doença genética, não são moralmente condenáveis.

Por sua vez, iniquidade em saúde aplica-se às sentidas desigualdades existentes nesta, que muito se apresenta diferenciada, pois decorre de múltiplos fatores (sociais, culturais, étnicos) e que não são colocados à partida. Trata-se de uma desigualdade sentida e

percetível, sem que possa ser mensurada e que incorre num juízo moral, daí a introdução do conceito de iniquidade (Alleyne, 2002).

Com estes dois exemplos os autores pretendiam esclarecer quanto à forma como a desigualdade pode ser moldável e vista com diferentes olhares. Mas, e de forma ponderada, conseguem também dar a conhecer que o que se apresenta como sendo o “mundo das coincidências” poderá não passar de mera justificação para o que se pretende ser o ideal, o que é muitas vezes motivo de grandes discórdias e de difíceis avaliações (Braveman & Gruskin, 2003).

A equidade para Braveman & Gruskin (2003), é um princípio ético fundamentado que se estrutura no princípio da justiça distributiva. No âmbito da saúde é uma preocupação acrescida na diminuição de disparidades quando existentes em grupos sociais menos privilegiados, pessoas pobres, grupos raciais, étnicos ou religiosos, mulheres, e os residentes rurais, pois são aqueles que são socialmente marginalizados e apresentam maior risco de doença.

Estes autores referem ainda que, em termos operacionais, promover a equidade em saúde significa eliminar a noção de desvantagem social ou mesmo, e só, marginalização/exclusão. A apoiar esta necessidade, referem que uma estrutura democrática deve dar enfoque a grupos socialmente desfavorecidos, marginalizados, ou “desprivilegiados” dentro de e entre países, industrializados ou não.

A experiência prática sugere que a eliminação das sistemáticas disparidades de saúde entre grupos sociais requer a correção de causas fundamentais, com especial atenção para os efeitos prejudiciais que estas acarretam, pelo menos, até certo ponto. Deverá ser tido em linha de conta que igualdade de oportunidades para ser saudável, requer inevitavelmente a identificação dos seus verdadeiros determinantes, bem como das manifestações que estas acarretam na saúde. Preocupação com a equidade em saúde implica, portanto, um compromisso e um investimento no combate à pobreza e à ausência da referida saúde, quando tão evidenciada e marcante. Mesmo assim, poderá o resultado final não ser o reflexo de tal esforço e aplicação (Buka, 2002; Braveman & Gruskin, 2003).

A iniquidade, em contraposição à equidade, deve ser entendida como uma definição mais politizada e que se move por compromissos morais e está aquém do que se poderia

esperar, atendendo à justiça social. No acesso à saúde, a iniquidade está mais relacionada com todos aqueles que não se inserem na chamada população “correta” e que se orienta segundo patamares impostos, enquanto a equidade é tida como elemento a ter em conta para a sociedade dita normal. É importante verificar se estes pré- conceitos fazem sentido, uma vez que a maioria das vezes é na sociedade dita “normal” que se encontram as maiores dificuldades ligadas ao acesso à saúde, situação que se tem vindo a verificar cada vez mais. (Alleyne, 2002).

O direito à saúde, imposto pela lei e por ela consagrado, determina que os governantes responsáveis pela prevenção, tratamento e controle das mais diversas patologias, garantam condições que permitam o acesso aos cuidados de saúde, bens e serviços necessários para se ser saudável. Apoiando esta imposição descrita na lei, acresce o facto de todos os direitos humanos - económicos, sociais, culturais, civis e políticos – serem considerados interdependentes e indivisíveis, o que potencia a responsabilidade dos próprios governantes, exigindo-se destes uma progressiva correção e adaptação às mais diversas necessidades, nomeadamente no âmbito da educação, informação, privacidade, condições de trabalho, participação social e ausência de discriminação. A atenção sistemática sobre a vasta lista de direitos consagrados pode fornecer um quadro coerente capaz de focalizar e centrar a atenção nas necessidades e condições de acesso. Eventualmente assim, poder-se-ia obter o que se pretende ser uma saúde ideal, sendo que para tal acontecer é necessária uma atitude pró-ativa por parte dos servidores de saúde (Ryan, 2006).

As estreitas ligações existentes entre os conceitos de pobreza, equidade e direitos humanos, quando enquadrados no tema saúde, são muitas e bastante profundas. Quer os princípios de equidade, quer os descritos como direitos humanos, procuram incessantemente o princípio de igualdade, nomeadamente na saúde daqueles que fazem já parte duma sociedade hierarquizada (Ryan, 2006; Leinsalu et al., 2009).

Alcançar esta igualdade implica não apenas a redução dos efeitos prejudiciais, produzidos pela pobreza e pela marginalização, mas sim a redução das já referidas disparidades existentes entre as populações. Atente-se que para a própria educação, os padrões de vida, as expectativas existentes nas pessoas e mesmo para a exposição ambiental a que estas estão a ser submetidas, só podem ser saudáveis quando forem pelo menos semelhantes (Wilkinson, 1997; Braveman & Gruskin, 2003).

Os direitos humanos e os princípios de equidade exigem fortemente que as instituições de saúde lidem, com a pobreza e com a saúde, de forma equilibrada, estável, não discriminatória, reduzindo a discrepância já anteriormente anotada, tentando-se, assim, melhorar a saúde dos mais pobres, alterar as condições que criam, exacerbam e perpetuam esta mesma pobreza, afastando cada vez mais a marginalização e a auto marginalização. Definir objetivos e metas para a realização progressiva da plena concretização dos direitos humanos anteriormente descritos, que se baseia numa “realização progressiva”, requer, por parte dos governantes, bem como por parte dos agentes intervenientes, uma demonstração clara de boa-fé, para uma orientação em prol de melhorias na saúde, demonstrando a necessidade de direitos igualitários (Buka, 2002).

A pobreza não é, por si só, uma violação dos direitos humanos. No entanto, as ações ou a falta de atitudes governamentais que conduzam à mesma, ou o fracasso nas respostas adequadas para as condições que esta vai criando, fazem com que a pobreza (e a marginalização) evolua e crie processos de negação e, estes sim, já são tidos como violação dos direitos humanos. Exemplo disto é o acesso à educação, especialmente à educação primária. Reconhece-se que, inextricavelmente ligada à pobreza, esta educação é díspar entre grupos sociais diferentes. Trata-se tanto da negação de um direito, como se apresenta, como a causa de graves disparidades, sabido que é ser a educação a promover a capacitação e participação do homem nas decisões sobre comportamentos sociais importantes, nomeadamente com a saúde. Ora se este acesso à educação é colocado em causa à partida, facilmente se consegue perceber que a chave para se quebrar o ciclo pobreza/doença, será mais difícil de encontrar (Nayar, 2007).

As estratégias usadas na pobreza e saúde, sem perspetivas mais amplas que ofereçam equidade e que coloquem os direitos humanos como enfoque, podem falhar como condições sine qua non, pois os principais fatores que influenciam de forma direta a relação existente entre saúde e pobreza são colocados em conta e, portanto, vão facilmente impedir que esta ligação se quebre. Se não houver uma atenção sistemática, tanto à pobreza como à discriminação e marginalização, podemos assistir a uma quase perpetuação da pobreza e da iniquidade no acesso à saúde. Todos os esforços já realizados, já experimentados e experienciados, (como aqueles que frequentemente estão executados), foram dados como relativamente ineficazes. Como alguns fatores

intervenientes, temos a acessibilidade geográfica e a disponibilidade financeira para acesso aos serviços de saúde preventivos. Estes são apenas dois dos fatores, que por si só, potenciam disparidades neste acesso. Claro está que os grupos mais suscetíveis acabam por ser vítimas de processos seletivos e, evidentemente passam estes a ser grupos menos utilizados (Regidor et al., 2006).

Leinsalu et al., (2009) referem que os princípios da equidade e dos direitos humanos devem ser levados em linha de conta pelas instituições de saúde que tenham em consideração a implementação de políticas e programas que possam afetar direta ou indiretamente os marginalizados sociais, os desfavorecidos, os mais vulneráveis ou discriminados. Acrescentam ainda a necessidade de identificação e superação dos obstáculos - como a língua materna, as crenças culturais, o racismo, a discriminação de género e homofobia - que impedem muitas vezes os grupos desfavorecidos de receber os benefícios das iniciativas de saúde de forma mais correta. Uma significativa redução na vulnerabilidade, na discussão, no acesso, nos cuidados de saúde, em todos os grupos sociais, far-se-á notar, mas, maioritariamente nos grupos em que o processo de exclusão é bem sentido e está bem impregnado.

A perspetiva correta sobre os direitos humanos, segundo Nayar (2007), pode favorecer o aparecimento de um quadro de referência universal que identifique facilmente as múltiplas condições desiguais, o que nos pode facultar informações úteis quanto aos padrões de vida existentes e de que forma estes podem ser tão marcantes para a obtenção de uma saúde condigna. Sabe-se que, normalmente, nos grupos em constantes processos de exclusão, as condições desiguais na intervenção social, associadas aos padrões de vida alternativos, são mais do que o mote necessário para uma disparidade na saúde e, consequentemente, no acesso a esta, facilitando portanto as discrepâncias bem notadas, e já existentes. Os instrumentos internacionais dos direitos humanos, oferecem, assim, não apenas um quadro de ação, mas também uma obrigação legal a existirem políticas para alcançar a igualdade de oportunidades para se ser saudável; uma obrigação que, necessariamente requer considerações sobre pobreza e injustiça social (Wilkinson, 1997).

Na maioria dos países, a pobreza material e as suas desvantagens desempenham um papel fulcral na criação, agravamento, e perpetuação dos problemas na saúde. Os princípios em questão devem destacar a responsabilidade dos países mais ricos, pois

deveriam estes tentar procurar as verdadeiras causas e as consequências que todo este clima acarreta, dentro e fora das suas fronteiras. Levanta-se, desde já, a necessidade de um compromisso para com os direitos humanos, que exige uma ação importante sobre a pobreza e a saúde, e que se torne um imperativo em prol de ética e justiça social (Braveman & Gruskin, 2003; Regidor et al., 2006).

As discussões acerca dos critérios para equacionar o problema da desigualdade social têm sido muitas, acompanhando passo a passo o debate sobre a injustiça e as perspetivas existentes para a solucionar, se possível em torno da distribuição de bens e benefícios sociais. Este conflito, existente, como analisa Rawls (1997), decorreu exatamente da dificuldade em se entender da forma notoriamente desigual como os benefícios são distribuídos, o que despoleta uma permanente disputa entre os indivíduos de grupos sociais diferentes e, consequentemente, a interrogação permanente quanto às definições existentes na lei, nomeadamente as que diretamente se relacionam com desigualdade social.

O mesmo autor refere que a estrutura social comporta várias posições e os indivíduos nessas diferentes posições sociais têm diferentes expectativas de vida e bem-estar. Assim se indica claramente da necessidade de esclarecimento sobre determinadas matérias, nomeadamente, quanto às posições associadas que possam fornecer o aparecimento de desigualdades profundas. Neste cenário, o autor propõe mais e melhor justiça com equidade, combinando dois princípios fundamentais: o da justiça formal, da igualdade de todos perante a lei; e da justiça substantiva ou “real”, da igualdade socioeconómica, que ao ser regulamentada, teria como resultado benefícios compensatórios para todos e especialmente para os menos favorecidos. Regendo nestes dois princípios, facilmente se depreende que, para Rawls (1997), a igualdade não é equidade, pois, equidade implica um tratamento desigual para os desiguais. Se os indivíduos são diferentes, precisam de ter tratamento diferenciado e portanto, assim ter- se-ia as designadas desigualdades justas: um tratamento desigual mas justo, quando comprovadamente benéfico para os indivíduos mais vulneráveis.

Repare-se que em torno de tudo o referido anteriormente emerge o conceito de exclusão social, que não é recente. No entanto, cada época, com sua conjuntura política, económica e social, origina algumas derivações importantes neste conceito, pacificamente aceite. Durante um decurso normal de vida, de uma forma ou de outra, a

pessoa passa pontualmente por situações em que se sente excluído, não significando, no entanto, que deva ser inserido, ou obrigatoriamente inserido, num processo de exclusão social, conclusivo e castrador. Por outro lado, existem indivíduos ou grupos de indivíduos com determinadas características que experimentam diariamente a exclusão social, quer por opção de vida, quer pela própria sociedade que os agrupa, ou mesmo por autoexclusão. Vulgarmente, vemos a exclusão social associada a pobreza, o que não corresponde inteiramente à verdade, pois existem muitas pessoas que experimentam a pobreza temporariamente e não são excluídas permanentemente, aliás, muitas vezes são apoiadas socialmente. Assim e a título de exemplo, temos uma situação pontual de desemprego que se traduz numa pobreza temporária. Por outro lado, existem indivíduos que vivem o que pode ser considerado pobreza permanente, pois estão associados a famílias pobres, e não conseguem livrar-se do estigma da pobreza, permanecendo pobres ao longo das suas vidas (Martins, 2007).

É possível portanto atribuir-se uma relação causal entre alguns fatores sociais, nomeadamente o económico, exclusão social e pobreza.

Na opinião de Martins (2007), devemos incluir conceitos, como precarização e vulnerabilidade para melhor entender e complementar a definição de pobreza e de fragilidade social. A exclusão social, para além da noção de pobreza amplamente detetada e discutida, deverá incluir outras situações que originem ruturas nas relações sociais! Só assim se conseguirá opinar mais conclusivamente sobre o que é ser excluído, o que é exclusão social e se de facto, no caso particular, se verifica tal condição e se coaduna!

Defende Martins (2007) que a exclusão social tem inerente a ideia de que as sociedades marginalizam os indivíduos ou grupos, levando-os à sua total desadaptação social, inviabilizando o seu acesso aos direitos humanos constitucionalmente adquiridos. Isto permite concluir que associando-se a pobreza como fator preponderante no conceito de exclusão, não deixa esta de ser também um veículo para a mesma. Pode ainda acrescentar-se que a exclusão resulta de uma desarticulação entre as diferentes partes sociais e os indivíduos das quais fazem parte, e consequentemente, este mal-estar latente e presente, torna-se significativamente visível quando são necessários benefícios sociais, que normalmente não são equitativamente disponibilizados.

A ideia de exclusão social pode e deve ser tida em diferentes vertentes, como já anteriormente referido. No entanto ter-se-á de ter especial atenção às seguintes: as de tipo económico (relacionadas com a pobreza e que têm a sua forma mais extremada na condição de “sem-abrigo”); as do tipo social (caracterizadas pelo isolamento e muitas vezes associadas à falta de autossuficiência e autonomia pessoal, ou seja, idosos que vivem na solidão, deficientes, doentes crónicos e acamados, as quais não tendo obrigatoriamente de estar relacionados com fatores de pobreza económica, podem ser associadas a questões de estilos de vida mais individualistas e pouco sensíveis à solidariedade); as do tipo cultural (tendo como exemplos o racismo, a xenofobia, a dificuldade da sociedade em reintegrar ex-reclusos, a exclusão social de minorias étnico-culturais e religiosas); e as de origem patológica, (com a exclusão social essencialmente a surgir por motivos de doença, como os casos dos infetados com doenças infetocontagiosas e/ou sexualmente transmissíveis) (Martins, 2007).

Claro é que todos os anteriores contextos, económicos, sociais, culturais, geográficos e políticos, da sociedade, quando desintegrados, originam uma perda do reconhecimento do indivíduo na sociedade, originando, na maioria das vezes, a sua exclusão social. Este processo dinâmico, que se justifica como sendo o resultado de não nascer excluído mas de ser à posteriori excluído, é agravado ou diminuído consoante as oscilações socioeconómicas experimentadas pela conjuntura política da sociedade na qual o indivíduo ou grupo estão inseridos. Aliás, Amaro (2000), no seu artigo a “Exclusão Social Hoje”, afirma que existem 6 dimensões principais no quotidiano do indivíduo, sem as quais o mesmo entra em processo de exclusão ou autoexclusão. São estas: SER (personalidade); ESTAR (grupos sociais); FAZER (trabalhos realizados e socialmente reconhecidos: emprego ou trabalho voluntário); CRIAR (capacidade empreendedora); SABER (acesso à informação); e TER (poder de compra).

O esquema abaixo apresentado corrobora o referido por Amaro e consegue ser bastante objetivo quanto à relevância a ter em consideração quando enquadramos esta exclusão social à privação económica, que por si só é castradora e redutora. E quando aliada a fatores de outra índole, potencia o conceito de mal-estar.

Figura nº 1 – Dimensões de bem-estar teoricamente relevantes (Pereira et al., 2007) Este esquema reflete sobre alguns dos muitos fatores que intervêm diretamente na saúde, pois quer a formação, as condições habitacionais, os meios de higiene e a segurança, entre muitos outros, são neste momento os fatores que mais influência têm sobre o comportamento humano, fundamentalmente no seu enquadramento psicossocial. Sem que estes estejam sob uma relativa harmonia, não é possível ter uma boa saúde e portanto a desigualdade será cada vez mais marcante.

2.3. Alterações e condicionantes orais e dentários