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Direitos e deveres em contexto de marginalidades

CAPÍTULO III CONTEXTOS DE MARGINALIZAÇÃO EM SAÚDE ORAL

3.4. Direitos e deveres em contexto de marginalidades

Segundo a OMS, antes mesmo da Guerra Fria, houve uma grande preocupação em fundar o conceito de saúde, centrado na positividade, no otimismo, na dinâmica de relação. Ou seja, no essencial, no profissionalismo, para assim ser o reflexo de melhor qualidade de vida para os utentes. Atenta-se aos aspetos como o bem-estar físico, a alimentação, o acesso aos cuidados, o equipamento usados.

No entanto, e atendendo a várias mudanças sentidas, nomeadamente sociais, económicas, políticas, culturais, religiosas, comportamentais, ambientais, o que os utentes pretendiam e ainda pretendem, em relação à saúde, está muito longe do que conseguem obter. A própria OMS tem tentado atualizar este conceito de qualidade nos cuidados sanitários, atendendo a muitas críticas tecidas pelos mais diversos Estados, mas não tem sido uma tarefa facilitada. Na tentativa de solucionar o problema, definindo saúde como “um estado de completo bem-estar”, isso fez com que a saúde seja vista como algo ideal, inatingível, o que transmite claramente essa dificuldade em possibilitar um estado de equilíbrio total.

Atendendo a que a OMS é uma agência especializada em saúde, e subordinada à Organização das Nações Unidas, esta entendeu ser necessário introduzir algo mais vasto e ao mesmo tempo mais completo, que pudesse tornar esta mais real e que pudesse ser aceite pelos utentes. Surge então a definição que indica que todo o indivíduo ou grupo

deverá ser apto, ou tornar-se capaz, de realizar aspirações e satisfazer as suas maiores e sentidas necessidades e lidar com estas, dentro de um enquadramento social e ambiental, compatível com o seu estado de saúde. Pretende-se assim que a saúde seja entendida como um recurso diário e não um objetivo deste. Desta forma possibilita-se uma maior abrangência de recursos humanos, e garante-se mais equidade nos serviços prestados.

Vários têm sido os autores que se têm dedicado a esta dicotomia de deveres e direitos. A área da saúde sempre teve a definição de elementos concordantes e dissonantes quando se tenta alterar algo de grande impacto. No entanto, há autores que referem dever a saúde ser vista apenas como uma simples ausência de doença, condicionando fortemente a discussão sobre direitos e deveres (Boorse, 1977). Esta ideia redutora pode, no entanto, pôr em causa a conduta normal no caso da medicina psiquiátrica, pois nesta a ausência de doença não significa a inexistência de sinais e sintomas muito significativos (Kass, 1981). Outros (Nordenfelt, 2001) defendem que deveríamos ver a Saúde como um estado físico e mental em que é possível alcançar todas as metas vitais, dadas as circunstâncias.

Devemos entender que antes de qualquer consideração filosófica e moral, existe já assumido pelas nações que são signatárias dos acordos a ONU, um conjunto de direitos que deveriam fundamentar todas as políticas públicas, nomeadamente as que se referem à saúde. A Carta da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos seus Artigos dá- nos todos os elementos fundamentais para entendermos os desafios que se colocam aos decisores e atores políticos. Desde o seu Artigo 1.º “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade”, nenhuma razão mais se pode invocar para a descriminação quanto à sua origem e essência. Os artigos seguintes desenvolvem esta marca da liberdade e igualdade do ser humano, independentemente “de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação” (Artigo 2.º). Direitos protegidos e assumidos pela lei, concretizam-se em muitos âmbitos, entre os quais os da segurança social e da saúde:

“Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao

alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade” (Artigo 25.º).

A própria Lei do SNS de 1979 (Lei n.º 56/79) colocou a sua ênfase nos serviços de saúde públicos. Os objetivos de equidade do SNS estão consagrados nas suas próprias características: universal (é destinado a todos os cidadãos, sem qualquer discriminação), geral (incluindo prevenção, tratamento e reabilitação) e gratuito (financiado pelo Estado e com escasso recurso ao pagamento direto dos utentes). Aliás, pelo artigo 4º, o acesso ao SNS é garantido a qualquer cidadão independentemente da sua condição social e económica. Um serviço de saúde que, com o tempo, verificou ser difícil a sua sustentabilidade, apelando algum pagamento direto por parte dos utentes, vindo a classificar-se como tendencialmente gratuito. Assim, em 1990, foi aprovada a Lei de Bases da Saúde, inserindo um novo quadro legal no SNS. Este documento, que advém da verificação de iniquidades marcadas na população portuguesa, refere que “é objetivo fundamental obter igualdade dos cidadãos no acesso aos cuidados de saúde, seja qual for a sua condição económica e onde quer que vivam, bem como garantir a equidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços” (Base II, 1- b). Desta forma, o SNS deve “ (...) garantir a equidade no acesso dos utentes, com o objetivo de atenuar os efeitos das desigualdades económicas, geográficas e quaisquer outras no acesso aos cuidados” (Base XXIV, d).

Apesar de apresentar uma melhoria em termos de equidade e apelar igualmente à equidade na distribuição de recursos e na utilização de serviços, esta Lei de Bases tem lacunas que podem dificultar o acesso dos cidadãos.

Não obstante o princípio de equidade seja primordial na legislação do SNS, e sendo este um conceito político que muitos economistas revelam ser prejudicial à economia de um país (Davies & Moore cit. in Kawachi et al., 2002), os governantes nacionais tenderam, no passado, a revelar pouca preocupação na sua concretização, promoção e monitorização. Dois documentos da OMS (2010a, 2010b) revelaram que até 2010 o SNS apresentava potencialidades, mas acima de tudo limitações e lacunas preocupantes. Ficou sabido que entre 2004 e 2010, Portugal não revelou estratégias e programas suficientes para combater as desigualdades em saúde; e que o SNS revelou progressos

bastante consideráveis, apesar de ainda existirem assinaláveis diferenças no estado de saúde dos portugueses, de acordo com o género, região geográfica e nível socioeconómico (tanto por nível educacional como por nível de rendimento). Os grandes desafios para o SNS apontam estes como sendo os âmbitos da consolidação e melhoria do estado de saúde dos cidadãos, da diminuição dos níveis de desigualdade entre grupos e da adequação da resposta às expectativas dos cidadãos.

Atualmente, com a crise económica mundial e a entrada do FMI em Portugal, o governo optou por uma menor comparticipação da saúde ao utente. No entanto foram atribuídas algumas isenções e comparticipações diretas a utentes mais desfavorecidos, nomeadamente os que estão em processo de desintoxicação e doentes oncológicos. Houve necessidade de aumentar as taxas moderadoras e reduzir o tempo de internamento hospitalar, questões que têm lançado várias e ferozes polémicas.

A alteração à regra do “tendencialmente gratuito” é cada vez mais uma certeza, basta avaliar o que tem sido implementado no nosso país e em todos os países Europeus. Tende-se para um serviço de saúde pago, e cada vez mais vinculado a seguros, aproximando-nos a largos passos ao que já acontece nos EUA, Austrália, entre outros.

A necessidade sentida por muitos em recorrer aos serviços de saúde começa hoje a ser bem diferente. O utente começa a ter mais em conta as suas capacidades financeiras e a avaliar essa mesma necessidade. Pondera se deve ou não recorrer aos serviços, pois terá de pagar as taxas moderadoras e este procedimento é oneroso e incompatível com o poder económico duma maioria populacional.

3.5. Justificativa

Como Médico Dentista (com alguma experiência em trabalho de campo junto de populações desfavorecidas), pela pertinência, pelo interesse do ponto de vista científico, clínico e social, pelo particular gosto e interesse pela área da saúde comunitária, escolhi esta temática, muito discutida e muito divergente. Essa escolha foi feita na convicção de que a pesquisa poderia contribuir para o conhecimento da situação atual da saúde oral entre as comunidades urbanas ditas “marginais”, que são, por isso, socialmente estigmatizadas. A informação obtida poderá contribuir para a elaboração de programas, que promovam a integração de “minorias” na sociedade.

O êxito ou não êxito deste objetivo terá de passar pelo apoio e colaboração de todos os profissionais que, pela seu trabalho e estudo, contribuam para o enriquecimento e aprofundamento de conceitos e metodologias de investigação científica neste âmbito. No entanto interessa perceber que todos temos um papel fundamental para que esta marginalização, que se traduz em exclusão social na saúde, deixe de ser tão significativa e tão marcante.

PARTE II