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Desigualdades sociais e heterogenia identitária

3 EM BUSCA DO CONCEITO DE IDENTIDADE TERRITORIAL

3.1 AS POSSIBILIDADES ANALÍTICAS DO CONCEITO

3.1.2 Desigualdades sociais e heterogenia identitária

Se considerarmos que a arbitrariedade de um poder hegemônico não está dissociado de suas práticas de inclusão e de exclusão, o compartilhamento de uma realidade comum será sempre relativo. A legitimidade dos grupos hegemônicos, em sua perspectiva hierárquica, tende a ser dissonante na medida em que estabelece fronteiras a partir das quais o diálogo é limitado pelos muros simbólicos que dividem a sociedade em grupos sociais, que realizam trocas substantivas, na maioria dos casos, quando seus interesses não colidem. Assim, pensamos na possibilidade de que quanto maior as desigualdades sociais e culturais, menor a possibilidade de lógicas temporais e espaciais se intercruzarem em fronteiras dialógicas.

Ao se estabelecerem em uma delimitação de fronteiras socioculturais entre os que estão incluídos e os excluídos, entre “nós” e os “outros”, as identidades definem um campo de possibilidades de ação que vai desde a cooperação ao conflito, não só em relação às alteridades exógenas a um dado espaço geográfico, mas, também, nas que se constituem nas vizinhanças mais imediatas. Apesar da contiguidade ser o lugar por essência do diálogo, as contexturas de um tecido social podem também subverter essa lógica em direção ao distanciamento de grupos social que coabitam um mesmo espaço.

Se podem ser vistos a partir de traços de identidade — que se desmancham, se metamorfoseiam, se fortalecem ou se enfraquecem, os lugares também devem ser avaliados a partir da consideração das mobilidades no seu interior, sob a consideração da alteridade. (HISSA, CORGOSINHO, 2006: 15).

Ao abordar as relações de poder e a configuração identitária dentro de uma sociedade, o sociólogo espanhol Manuell Castells (2006) avalia ser possível encontrarmos no agente social hegemônico, responsável pela estruturação da identidade e das motivações que constituem o seu conteúdo simbólico, as variáveis determinantes para o conhecimento daqueles que com ela se identificam ou dela se excluem ou são excluídos, em um processo de definição hierárquica de posição dos sujeitos na estrutura social. A partir desta constatação, ele define três tipos de identidade quanto as suas formas e origens (CASTELLS, 2006: 23):

a) Identidade Legitimadora: introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais. Castells define a identidade legitimadora como aquela que dá origem a um conjunto de organizações e instituições, bem como uma série de atores sociais estruturados e organizados que, embora às vezes de modo conflitante, reproduzem a identidade que racionaliza as fontes de dominação estrutural.

b) Identidade de Resistência: criada por atores que se encontram em posições/condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobrevivência com base em princípios diferentes dos que permitem as instituições da sociedade, ou mesmos opostos a esses últimos. Castells sugere ser este tipo de identidade aquela que possibilita a formação de comunas, ou comunidades. Ela dá origem a formas de resistência coletiva diante de uma opressão que, do contrário, não seria suportável. São constituídas a partir da perspectiva de defesa nos termos das instituições/ideologias dominantes; c) Identidade de Projeto: define-se quando os atores sociais, utilizando-se de

qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, buscam a transformação de toda a estrutura social. A identidade de projeto produz sujeitos que expandem sua identidade na direção da transformação da sociedade como prolongamento do seu projeto identitário.

Essas definições expressam a percepção de existência de múltiplas identidades dentro de um mesmo conjunto social, como uma cidade, estado ou país, configuradas a partir de sua aproximação ou distanciamento do centro de poder simbólico. Assim, a identidade legitimadora pode ser entendida como a hegemônica dentro do tecido social; aquele sistema de representações que passa a ser principal orientador das relações sociais na proporção em que é assimilado como legítimo por aqueles que lhe estão sujeitos ou que o constroem. Mas a sua existência não elimina a construção de outras identidades nos processos de afirmação de grupos sociais distantes da estrutura de poder. Como consequência, essa pluralidade torna- se fonte de tensão e contradição permanente na ação social.

Ao pensar na tensão resultante das contradições da coexistência dos diferentes tipos de identidades em uma mesma sociedade, o sociólogo espanhol Manuel Castells não vê na identidade um simples reflexo de interesses hegemônicos, sejam das elites dominantes ou do poder do Estado, mas o resultado de um amplo processo de negociação em torno da possibilidade de construção de uma história comum e um projeto compartilhado. Isso a partir de uma experiência diversificada dos aspectos sociais, étnico, econômico, territorial e de gênero. Mas, ao mesmo tempo, ao refletir sobre essa coexistência e comunicabilidade recíproca entre estes três tipos de identidade, o autor observa:

A resposta a essa questão (a coexistência entre os tipos de identidade), que somente pode ser empírica e histórica, determina se as sociedades permanecem como tais ou fragmentam-se em uma constelação de tribos, por vezes, renomeadas eufemisticamente de comunidades. (CASTELLS, 2006: 26).

Para os grupos sociais mais distantes do centro de poder, a sua sobrevivência depende de integração de suas expectativas e possibilidades em modos simbólicos e práticos de organização, que tendem a expressar dissonância com os valores e costumes definidos como hegemônicos. Dessa forma, mesmo em sociedades complexas, os saberes locais, no sentido de Geertz (1997), se tornam fundamentais para as suas vidas cotidianas. Ao mesmo tempo, podemos aqui concordar com sociólogo inglês Anthony Giddens quando avalia que tais processos não podem ser encarados como transferência de poder de alguns indivíduos ou grupos para outros.

Para Giddens (2002: 130), “transferências de poder ocorrem dessa maneira, mas não são exaustivas”, na medida em que tais práticas podem ser incorporadas, o que resultaria uma ampliação do poder central e ganhos dos poderes não- hegemônicos, constituindo-se o que Castells chama de identidades de projeto. Acreditamos ainda que outros saberes e práticas locais responsáveis por gestar identidades de resistência podem ser, em grande medida, constitutivas de novas formas de poder, em franca contraposição ao poder hegemônico.

As diferenças internas nos apontam caminhos de possíveis análises dos fios que constituem o tecido de ligação, por exemplo, entre a identidade legitimadora e a identidade de resistência. Em que medida as (sub)identidades estabelecidas em cada extremidade se configuram como polaridades que não se tocam? (BHABHA, 1998). Em sociedades que aceitam passivamente as distorções de suas desigualdades sociais, há poucas chances da minoria ideológica ser ouvida. Todas elas localizadas em frontes abertos por conflitos incômodos para os grupos localizados nas identidades legitimadora e, eventualmente, de projeto. A identidade de resistência se estabelece, em sua atitude negadora da subjugação, em tentativas de reconfiguração das condições adversas a que os seus indivíduos estão submetidos. Seus movimentos se dão motivados tanto por uma racionalidade instrumentalizadora das suas necessidades imediatas, como por uma racionalidade substantivada pelo desejo de garantir a existência legítima de suas subjetividades. A sua afirmação nega, potencialmente, uma unidade idealizada.

Na medida em que o discurso identitário tem sido apropriado pelo Estado como um recurso na “conversão perversa das energias emancipatórias em energias regulatórias (...), em uma crescente promiscuidade entre o projeto da modernidade e o desenvolvimento histórico do capitalismo” (SOUZA SANTOS, 1994: 33), o seu exame pode nos permitir uma análise do seu agente construtor e/ou articulador, dos grupos que possuem maior aderência aos seus projetos, daqueles grupos que emergiam por terem seus apelos identitários incorporados ao discurso hegemônico e, ao mesmo tempo, das energias sociais alternativas que vão se configurando como contra-hegemônicas.

A articulação das representações sociais dos grupos minoritários tenderia à reafirmação das suas diferenças simbólicas em relação às representações dos que

estão no topo social, mesmo que sejam preservados elementos comuns. Essa possibilidade de se expressar na periferia do poder pode ser uma oportunidade em duas perspectivas extremas para o gestor público disposto a escutar as vozes dissonantes internas: (i) a apropriação, sob o propósito de manipulação, dessas representações com fins meramente instrumentais ou de dominação política. Mas, como as identidades são fluídas, há sempre a possibilidade de se reconfigurar tais representações em sentidos que se descolem das razões funcionais operadas pelos sentidos de dominação; e a (ii) sua incorporação aos referenciais que norteiam a definição de políticas públicas de caráter inclusivo, ampliando o pertencimento a uma racionalidade maior, substantivada por se tornar acolhedora de demandas amplas. Tal prática é substantivamente menor do que a primeira alternativa.