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2 POR UMA CRÍTICA ÀS RAZÕES EXCLUDENTES

2.1.3 O lugar da gente

Abstrato por natureza, o espaço geográfico se apresenta como um metaconceito, com a abrangência necessária ao abrigo de outras categorias

espaciais, que em seus níveis diferenciados de abstrações encorpam a compreensão da vida humana e contribuem para explicar suas dinâmicas, além de trazerem em si perspectivas operacionais diversas. A noção espacial que nos interessa aqui e agora é a de lugar, que surge do espaço indiferenciado ao ser impregnado pelos significados constituídos pelas formas do seu uso no cotidiano dos homens.

A ideia de se utilizar a categoria lugar se dá aqui pela compreensão de que a parte mais substantiva do fenômeno turístico e da identidade territorial ocorre na escala local, onde se estabelece a materialidade de suas relações e interações. O interesse nessa noção surge da possibilidade de análise da apropriação do imaginário baseado nos lugares para fins meramente instrumentais, a partir de uma crítica às obsessões hegemônicas locais, que acabam por se converter em instrumentos vulneráveis, em razão das suas próprias contradições. Tais lógicas de gestão dos lugares tendem, em dado momento - por aceitação passiva de impulsos alheios à vida que se desenrola nos seus espaços -, se desconectar dos seus impulsos internos.

Em As Conseqüências da Modernidade, o sociólogo inglês Anthony Giddens define o conceito de lugar como “cenário físico da atividade social” (GIDDENS, 1999: 26-7). Tal definição nos parece simplificadora, na medida em que enfatiza o caráter do lugar como um espaço concreto. A noção que nos interessa é a que assume em Milton Santos (2006) o caráter de espaço banal, que reúne o ser humano, as firmas, as instituições diversas, as formas sociais e jurídicas e as formas geográficas, que unidos formam o cotidiano imediato, impregnado por uma imensa carga simbólica.

O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade. (SANTOS, 2006b: 218).

Ao pensarmos em lugar como espaço dinâmico, entendemos a sua essencialização como algo danoso às próprias dinâmicas da vida nos lugares. O lugar não é e nem possui uma essência imutável. Surge da ação pragmática e subjetiva dos homens sobre o espaço, imprimindo suas digitais com seus traços temporais singulares, alinhavados pelas memórias individuais e coletivas que nele pousam e repousam. Assim, o projeto de constituição de um campo

representacional dos lugares agenciado como noção a ser mercantilizada, em sua relativa sustentabilidade, reclama que tais representações estejam vinculadas, fundamentalmente, ao seu valor de uso garantido pelo envolvimento dos sujeitos responsáveis pela construção desse espaço.

Todo lugar possui suas singularidades, produzidas pela interação das culturas que dão sentido ao espaço; pela interação entre seus fluxos e fixos. As formas de uso do espaço produzem seus fixos, objetos localizados no espaço material, e seus fluxos, mobilidades (a intersubjetividade) que circulam por esse mesmo espaço. Para Milton Santos (2006b), o lugar pode ser definido a partir da conjugação de quatro componentes e suas densidades na configuração do seu espaço: técnico, informacional, comunicacional e normativo. Mas quem substancia essas densidades são as relações históricas constitutivas do lugar (ESCOBAR, 2005); seus tempos singulares que definem as relações entre os fluxos e fixos internos e externos.

O nosso lugar no mundo é o espaço onde encenamos os nossos fatos, colocamos os nossos afetos e a partir do qual construímos nosso pertencimento ao mundo nas formas de representações que dão sentido à nossa vida, com suas dinâmicas particulares. Esse caráter que o espaço indiferenciado pode obter ao longo do tempo vivido, da natureza da experiência ali vivida, pode torná-lo, como observa o geógrafo de corrente humanista Yi-Fu Tuan (1983) intensamente humano, a partir da qualidade da ligação emocional aos objetos físicos e das funções dos conceitos e símbolos na criação da sua identidade.

O sentido da constituição do lugar é essencialmente coletivo. É definido pela forte relação com um local particular; é “uma relação entre os homens derivada da prática, se constituindo em referência para os indivíduos” (CARLOS, 1999; 48). Isso se dá, como já foi dito, através das formas de uso do espaço, das relações entre as pessoas no plano do imediato, na vizinhança, na construção de uma identidade compartilhada, no sentimento de pertencer a um lugar.

O lugar exige uma sensação de familiaridade, algo que se compõem do vivido, da apropriação do espaço, que altera continuamente a sua configuração tanto material quanto simbólica, sempre recorrente aos fluxos antes percorridos. Mas, como observa Manuel Castells (2000), a existência do lugar não garante em si a

constituição de uma comunidade. Isso porque os habitantes do lugar podem não se relacionar, apesar de terem suas vidas marcadas pelas qualidades físicas e simbólicas distintivas do lugar. A característica simbólica do lugar pode, por exemplo, ser exatamente a da desagregação. Ou assim se tornar, caso o agenciamento do seu campo representacional se descolar das funções de uso cotidiano das suas coletividades, produzindo a não intercomunicabilidade.

Para Milton Santos (2006b: 231), “a razão universal é organizacional, a razão local é orgânica. No primeiro caso, prima a informação que, aliás, é sinônimo de organização. No segundo caso, prima a comunicação”. Assim, nos colocamos na perspectiva de questionar se a organização e a gestão das representações dos baianos pelo Estado na difusão do turismo não as descolam das autorrepresentações dos baianos de Salvador, na medida em as primeiras estão submetidas a uma lógica de consumo externo às suas racionalidades localizadas. No gerenciamento mercadológico, o tempo de circulação das informações tende a não acompanhar as dinâmicas da vida local.

A submissão dos fluxos técnicos, informacionais, comunicacionais e normativos a interesses de lógicas externas, ou de redução das lógicas internas a uma única dimensão, a econômica, pode contribuir para o estranhamento dos indivíduos com seus lugares de existência. Há uma ideia corrente de que a mobilidade do mundo – ou seja, os fluxos mundiais - estaria reconfigurando os lugares de modo irreversível, já que parcela relevante do material constitutivo dos espaços sociais é tributário da subjetividade dos indivíduos, essa capturada

irrevogavelmente pelos balizadores moventes da contemporaneidade (HALL, 2002).

Mas essa mobilidade, característica dos fluxos do capital internacional e das comunicações em rede, não está posta como matéria da realidade para a maioria da população dos lugares, até porque tais componentes que caracterizam essa mobilidade são seletivos e, consequentemente, excludentes. Seu caráter tende a reforçar a hierarquia do espaço e contribuir para imprimir tempos distintos de coexistência e, eventualmente, a não comunicação entre as partes constitutivas do lugar.

Como observa Dorothy Massey (2000), a mobilidade do capital tende a ampliar o poder de alguns em detrimento de outros e, com isso, reforçar a constituição de uma hierarquia espacial, por intermédio da qual se mantém, inclusive, a ideia de periferia e centro, que podem estar localizadas no mesmo espaço, no mesmo lugar. Isso porque o lugar também possui um componente de localização que permite a articulação entre as ideias de proximidade e distância, sejam elas concretas ou subjetivas.

Como já foi dito, aqui o interesse não está na naturalização do lugar, na sua essencialização. É possível caminharmos em direção a interpretações e reinterpretações dos lugares vinculados à constituição de redes e a transposição de fronteiras e, simultaneamente, considerarmos as noções de enraizamento, limites e pertencimento. A defesa do espaço público apropriado para benefício privado no carnaval de Salvador4 de 2012 foi uma demonstração de como a constituição de redes, tanto no mundo real como no virtual, pode contribuir para a mobilização em defesa do lugar. Noções como rede e lugar não são dissociáveis.

A necessária relativização da valoração hierárquica dos fluxos globais se sobrepujando os fluxos locais se impõe porque, mesmo nas situações em que os fluxos percorrem um espaço dito global, ao chegarem aos lugares são incrustados em escalas temporais específicas. Além disso, o que teóricos como David Harvey (2008) nomeiam de compressão espaço-tempo, na verdade, diz respeito ao encurtamento do tempo de percurso e não do espaço de percurso. Todos os fluxos materiais continuam se deslocando no espaço concreto entre uma origem e um destino. E nesses espaços concretos, as suas escalas temporais definem os seus usos locais, mesmo que nas estratégias de sobrevivência dos grupos locais tais fluxos impliquem a sua exclusão ou a autoexclusão dos projetos hegemônicos.

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Em 2012, durante os meses de janeiro e fevereiro, uma intensa mobilização conhecida como Desocupa Salvador foi desencadeada nas redes sociais digitais e depois ganhou corpo no mundo concreto contra a “privatização” da Praça de Ondina. Através de um acordo que trazia com contrapartida a realização de benfeitorias e de repasse em dinheiro, a prefeitura municipal permitiu a exploração comercial do espaço durante o carnaval pela iniciativa privada, por cinco anos. No mundo concreto, o movimento gerou ações na Justiça e manifestações públicas no lugar, contra a apropriação do espaço público para uso privado.

O que significa o vaticínio da aniquilação do espaço através da compreensão das escalas temporais sugerida por autores como Anthony Giddens5, se não a precipitação de teóricos tentando se projetar além do seu tempo? Até no cenário mais global possível, a rede mundial de computadores, os fluxos globais se localizam espacialmente. As tecnologias da informação e comunicação nos dão a sensação de compressão do espaço e a sensação de simultaneidade, do tempo contínuo. Isso é, de fato, realidade no mundo virtual. No mundo do cotidiano dos lugares, onde a vida de todos se desenrola, o espaço é um dado concreto da realidade e o tempo não é único.

No processo de relativização dos fluxos gerados pela rede mundial de computadores, vale um breve registro. Em março de 2012, Mark Zunkerberg6 concedeu entrevista coletiva sobre o estágio do Facebook naquele momento. Nela, criticava uma excessiva espanização7 na rede, que seria responsável por uma

sobrecarga incômoda no seu espaço físico de armazenamento de dados. No Brasil, isso foi incorporado como uma crítica ao comportamento dos brasileiros, em um autorreconhecimento do uso excessivo do spam8 como uma característica local, o que anteriormente se chamou de orkutização brasileira9 do Facebook.

No fundo, Zunkerberg falava da ocupação de um espaço material, concreto, responsável por abrigar os dados que se constituem como informações em caráter de fluxos. Havia dois aspectos em questão: a primeira apontava para o fato de que toda rede virtual está espacialmente localizada, em um lugar físico de armazenamento de dados com limitações potenciais, cuja ampliação impacta em custos. Em outras palavras, o mundo virtual, por mais fincando que esteja em um ciberespaço, não pode prescindir de espaços concretos para a sua existência. O segundo sinalizava o reconhecimento que a utilização das redes acontece a partir dos balizadores de uma cultura localizada no espaço humano. Ou seja, quem navega na rede mundial de computadores está condicionado por uma cultura mediada pelo espaço e seus tempos singulares, a partir dos quais o

5 O sociólogo inglês Anthony Giddens, ao longo de sua carreira, tornou-se “o comunicador do príncipe”, como sugere Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant (2001: 160).

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Presidente e sócio-fundador do Facebook. 7

Trata-se aqui de um neologismo derivado da palavra inglesa spam. 8

No âmbito da internet, spam significa lixo eletrônico: mensagens de autoajuda, correntes etc. 9

Vários críticos de internet avaliam que a perda de importância do Orkut nos Estados Unidos e Europa se deu em razão do grande crescimento dessa rede entre brasileiros e de sua característica de uso do spam.

compartilhamento de valores e hábitos se realiza em relações diretas localizadas. Há, portanto, mesmo no mundo virtual, fixos e fluxos locais a serem considerados.

Com os movimentos e com as mobilidades de todos os tipos, os lugares parecem existir de uma outra forma mas, surpreendentemente, emergem com maior vigor. A mobilidade intensa não extrai o significado dos lugares e a sua condição que, surpreendentemente, é negligenciada: o mundo existe nos lugares (HISSA; CORGOSINHO, 2006 ; 12-13).

Os lugares, com seus fluxos e fixos, são determinantes na configuração de identidades compartilhadas e vivenciadas no espaço. Negligenciar as forças culturais, econômicas e políticas que atravessam e habitam os lugares tem seu preço. Quanto mais o tempo comum se amplia, pelos processos de reprodução social, mais o espaço ganha contornos de compartilhamento mais amplos, que podem ser fragmentados em razão dos processos de exclusão intrínsecos à hierarquização espacial. Cada lugar possui fluxos múltiplos e simultâneos, sobrepostos, visto que hierarquizados não são dotados dos mesmos significados para todos. A circulação nele de fluxos externos, cujos campos simbólicos não se comunicam no âmbito da vivência dos fluxos internos, tende a gerar um descompasso entre os que habitam o lugar, podendo produzir um distanciamento entre os diversos grupos espacialmente distantes e/ou próximos.

Sendo o espaço de vida do ser humano impregnado por suas ações, emoções e significados cotidianos, o lugar não desaparece. A ideia de mundo se sobrepujando aos lugares é resultado apenas do deslocamento de interesses econômico, político e teórico, que se exilaram voluntariamente na ideia do global, como se os lugares estivessem se desvanecido como abrigo social. Mas certamente a ideia de mundo é a mais abstrata dentre as noções de espaço, porque não é nele, mas no lugar, no território e nas regiões em que a vida com suas especificidades acontece (SANTOS, 2006a; HISSA, 2009). Os lugares contemporâneos não são apenas encruzilhadas da simultaneidade dos fatos do mundo. Neles também se expressam os afetos, cooperações, os conflitos e as confrontações espacialmente localizadas (HISSA; CORGOSINHO, 2006).

Assim, o impulso de desconstrução do lugar como espaço da vida humana se impôs pela aceitação não apenas da predominância do enquadramento atual do capitalismo, com sua prevalência em significativas esferas da vida contemporânea,

mas principalmente pela avaliação da sua inevitabilidade como única maneira de se pensar a realidade social. Todas as outras formas de expressão socioeconômicas da vida quando aceitas são vistas como subordinadas ao capitalismo ou suas complementares, nunca formas diferenciadas e legítimas em si como expressões da vida social. Esse enquadramento dos lugares se impôs pela hegemonia do pensamento único e seu discurso monocórdio neoliberal, que imobilizou inclusive os teóricos de esquerda.

Escobar (2005: 137) observa que, nas últimas décadas, “dispositivos epistemológicos, encravados na construção da teoria social, fundamentalmente eurocêntrica”, buscaram a invisibilidade de formas subalternas de pensar locais e regionais e suas possibilidades de configurar o mundo, liberando de amarras a noção aparentemente universal de formação do capital. Mesmo considerando a influência do capital na constituição das relações sociais contemporâneas, e até mesmo o seu caráter predominante, não se pode deixar de levar em conta outras formas de existência. Até porque “[...] há muito mais coisas determinando nossa vivência do espaço do que o ‘capital’” (MASSEY, 2000; 179). Esta mesma análise é compartilhada por Milton Santos, para quem

O capitalismo foi investido de tal predominância e hegemonia que se tornou impossível pensar a realidade social de outra maneira, muito menos imaginar a supressão do capitalismo; todas as outras realidades (economias de subsistência, economias biodiversificadas, formas de resistência do Terceiro Mundo, cooperativas e iniciativas locais menores) são vistas como opostas, subordinadas ao capitalismo ou complementares a ele, nunca como fontes de uma diferença econômica significativa. (SANTOS, 2006b: 310).

A ideia de que a globalização aprofunda as contradições entre o global e o local é, em si, o reconhecimento da existência de lógicas distintas, que resultam também na expressão das distâncias entre incluídos e excluídos localizados em um mesmo espaço. Mas a ausência do lugar tem ocupado um espaço privilegiado no debate contemporâneo, que lhe garante o status aparente de característica essencial da condição contemporânea. Só que a marginalização do lugar é algo muito mais presente no discurso teórico e no projeto neoliberal de homogeneização dos processos sociais do que no cotidiano das pessoas que vivenciam o espaço social. E uma análise do turismo cultural é um campo fértil a tal constatação.