• Nenhum resultado encontrado

3 EM BUSCA DO CONCEITO DE IDENTIDADE TERRITORIAL

3.1 AS POSSIBILIDADES ANALÍTICAS DO CONCEITO

3.1.1 Por uma alternativa epistemológica

Ao longo das últimas décadas, um número considerável de estudos originários de perspectivas epistemológicas diversas se debruçou exaustivamente sobre o conceito de identidade. Quase todos apontavam sua relevância emergente como resultado de uma crise trazida pelo acirramento da modernidade, que estaria produzindo sujeitos descontextualizados, a partir da compressão das escalas temporal e espacial. Os balizadores tradicionais da identidade, como o Estado, a família, as tradições, tinham se desvanecido pela imposição inexorável do tempo produtivo em forma de um presente sempre fluído, desconectado do passado.

Não nos ateremos aqui ao aprofundamento dessas correntes e suas concepções. Passemos apenas sinteticamente pelo debate teórico complexo e controverso que tem se dado em torno do conceito de identidade. Os polos diametralmente opostos nesse confronto teórico encontram ponto de convergência somente na superfície: a identidade cultural se estrutura na percepção da

originalidade e singularidade dos grupos sociais. A sua polarização se dá, fundamentalmente, a partir de duas perspectivas distintas e dominantes:

(i) a visão localista vê na identidade um conjunto de atributos e valores herdados (portanto, dependentes de um social pré-existente), que não se alteram substancialmente ao longo do tempo. Aqui a identidade é vista como uma herança da qual não podemos escapar, servindo de apoio às ideologias do enraizamento e levando à “naturalização da vinculação cultural” (CUCHE, 2002; 178). Tendo hoje na linha de frente os culturalistas, defende a relevância das tradições locais e chegam a afirmar, como Clifford Geertz (1989), que é em torno da identidade etnocultural que se estabelece a primeira e a mais fundamental de todas as vinculações sociais. Quando Geertz observa que as identidades mais consistentes são as étnicas, avalia, em outras palavras, que primeiras lembranças são aquelas compartilhadas. Cada consciência é um ponto de vista do grupo de pertença, em que os mesmos indivíduos de um determinado grupo compartilham entre si suas memórias. É a partir, por exemplo, da memória dos próximos que conseguimos completar nossas próprias lembranças, mesmo que constituídas de maneira pessoal;

(ii) os universalistas preconizam um campo de representações de total autonomia, a partir do qual o indivíduo se vale apenas dos aspectos subjetivos para a construção de sua identidade. Essa perspectiva, considerada nos seus extremos - a fragmentação e o descentramento das identidades sociais - nos leva a imaginar a representação do sujeito como a encarnação não mediada dos valores do grupo social, e, portanto, na dissolução da sociedade e das fronteiras entre o sujeito e sua prática. Para um dos seus principais expoentes, Stuart Hall (2000), a identidade tornou-se uma celebração móvel.

Porém, pensamos aqui em uma terceira perspectiva epistemológica na leitura do conceito, que surge do somatório de esforços em campos distintos do conhecimento, na crítica aos processos formativos dos discursos ideológicos. Não se trata aqui de uma teoria sistematizada, mas de um empenho convergente no sentido de entender como e por que as pessoas compartilham o conhecimento e

dessa forma constroem uma realidade comum (JODLET, 2002). Nessa concepção, o sujeito é enquadrado em um ambiente vinculado a certos graus simultâneos de autonomia e dependência, preservando o seu caráter individual e também relacional.

Tal perspectiva não compartilha da visão que avalia nas identidades sociais uma mera abstração que, por ser do campo das representações, se estabeleceria como uma ilusão, na dependência exclusiva da subjetividade dos sujeitos. Como as identidades culturais - e dentre elas as identidades territoriais - apresentam um caráter, ao mesmo tempo, de mobilidades e permanências (muitas das quais observadas no longo prazo), acreditamos que a melhor abordagem do tema está em um enfoque que enxergue nessas representações o resultado de um processo dialético, de construção social, que se dá no âmbito de circunstâncias sócio- históricas e culturais específicas; do homem no tempo e no espaço.

Ao considerar as identidades sociais situacionais e relacionais tira-se o foco de reificações habituais, encontradas, via de regra, nas visões localistas. Enfatiza- se, assim, o poder de significação e criação das identidades, como representações estruturadas, a partir das quais se pode pensar a continuidade de uma lógica de narrativas que explicam a existência das tradições socialmente compartilhadas; e representações estruturantes, que permitem a compreensão das constantes mudanças como processos constitutivos das organizações sociais.

Em síntese, tomamos aqui as identidades como representações sociais, resultado de percepções compartilhadas, que permitem ao sujeito sua localização no mundo, nas relações sociais e sua preparação para a ação (MOSCOVICI, 2003). Esse compartilhamento se dá a partir daquilo que o cientista social francês Pierre Bourdieu (2006: 9) chama de “poder simbólico”, que não se apresenta como arbitrário e, por isso, obtém sua legitimidade. Dessa naturalização da ordem social é que surgem as possibilidades de concordância, de criação de uma realidade comum, de onde emergem as identidades sociais no alinhamento entre nossa subjetividade individual com os lugares objetivos que ocupamos na sociedade, “suturando”20

o sujeito à estrutura.

20

A noção de identidades territoriais como representações sociais pressupõe, portanto, os seus processos constitutivos estruturando-se, no tempo e espaço, a partir de fontes diversas fornecidas pela biologia, história, geografia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória social, e aparatos de poder. A organização desses materiais se dá, como dissemos anteriormente, em uma perspectiva de coexistência entre certos graus de autonomia e dependência, sendo os seus significados reestruturados pelos indivíduos, grupos sociais ou sociedades, em razão das tendências sociais e projetos culturais enraizados ou emergentes em sua estrutura social.