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Lugar, identidade e suas validades categóricas

2 POR UMA CRÍTICA ÀS RAZÕES EXCLUDENTES

2.1.2 Lugar, identidade e suas validades categóricas

Colocamos nossa abordagem desde o início na perspectiva de uma avaliação da coexistência de outras racionalidades no lugar turístico para além do projeto hegemônico, expressas pela existência de outras autorrepresentações distintas da construída pelo discurso hegemônico sobre o lugar e seus sujeitos. A nossa reflexão busca compreender como tais processos de invizibilização dos sujeitos e das dinâmicas dos lugares se tornaram concernentes com uma lógica calcada na banalização de processos de exclusão social.

Entendemos que as identidades sociais e os lugares são componentes inseparáveis da realidade social. Ao mesmo tempo, consideramos que pensar em lugar e em território sem pensar nos sujeitos que o configuram é institucionalizar a mutilação instrumentalizada pelas lógicas totalizadoras. Acreditamos que, ao refletir sobre os lugares e as identidades como construção social (cujos processos constitutivos estão vinculados à subjetividade dos indivíduos e a intersubjetividade dos sujeitos coletivos), a perda de relevância dos lugares e a fragmentação dos sujeitos ocorrem (em especial nos países em desenvolvimento) porque a prevalência da racionalidade capitalista atua no sentido de acomodar suas formas de exclusão social, fragmentando a estrutura social em grupos com baixa intercomunicabilidade, retirando das pessoas sua centralidade nas políticas locais.

Esse processo se reafirma continuamente por meio do elemento que dá tangibilidade social ao mercado econômico - principal enclave social do mundo ocidental -, o consumo, que, ao obedecer à lógica de renovação contínua dos estoques produzidos pelo capitalismo, oferece em retorno a efemeridade como referência aos processos de identificação social do indivíduo. Na dimensão do nosso estudo, sob o reinado de tal lógica, os lugares e seus sujeitos tornam-se também objetos de consumo no mercado turístico.

Em outra direção, ao identificar a globalização como fenômeno central nas relações sociais e de caracterizá-lo por fluxos de sociabilidades (baseados temporal e espacialmente nos fluxos de informação, tecnologia, financeiros etc.), seus teóricos delinearam uma teoria social que não considera mais a sociedade como um sistema, composto por subsistemas, dotado de contornos locais, institucionais, burocráticos. Mas esqueceram que a “globalização é desigualmente distribuída em todas as dimensões do espaço” (HISSA; CORGOSINHO, 2006: 13), e que os processos de hierarquização espacial promovidos pela internacionalização do capital reforçam a exclusão social. Em razão disso, ao invés de tomar como ponto de partida de suas análises indivíduos localizados em territórios específicos, tais teóricos tentam vislumbrar um novo horizonte constituído por indivíduos plurilocalizados em um espaço global. Mas estes indivíduos e esses não-espaço social são, na verdade, abstrações teóricas.

Avaliamos que, se há deslocamentos no conceito de identidade, em razão de sua dinâmica indissociável, isso não implica que a necessidade de identificação ou o

desejo de pertencimento a um grupo social sejam processos datados, muito menos que não tenham sido naturalmente gestados e incubados dentro da experiência humana, emergindo daí como um fato da vida. Ou ainda, que o Estado, como articulador de identidades centrais, tenha perdido o seu significado na contemporaneidade, particularmente o seu papel protagonista na articulação das diversas demandas internas ao seu território.

Teóricos (GIDDENS, 1999; BAUMAN, 2005; CASTELLS, 2006) têm reafirmado que o processo atual de mudanças está reestruturando as sociedades de um padrão de mosaico (como na lógica territorial dos Estados-Nação) para o padrão reticular, descontínuo e fragmentado, que admite sobreposições territoriais. A rigor, em um mesmo espaço territorial geopolítico, há, e na verdade sempre houve, simultaneamente, outros territórios compostos de identidades distintas, que coexistiram, justapostas ou sobrepostas, e a partir das quais têm se estruturado as identidades sociais hegemônicas ou contra-hegemônicas.

Na trilha de seus argumentos, teóricos globalistas (marcadamente subjetivistas) tentam sobrepor seus argumentos a noções caras aos relativistas culturais, cuja bandeira tem sido empunhada pelos localistas. Para esses últimos, há a convicção de que a ampla gama de noções de tempo e espaço - elementos constitutivos de todas as representações sociais - é e será responsável pela constituição da diversidade humana e, simultaneamente, da unidade local, com as especificidades de seus tempos e espaços. Enquanto os subjetivistas acreditam que valores universais estão se sobrepondo aos locais na criação de identidades globais, os localistas observam nas culturas locais a fonte mais relevante na configuração das identidades.

Tanto a perspectiva culturalista como a subjetivista traz, isolada, limitações à análise do conceito de identidade cultural, ao negarem uma perspectiva dialética que identifique graus simultâneos de dependência e autonomia do sujeito na construção de suas autorrepresentações. O surgimento de identidades globais se dá em enclaves consubstanciados por segmentos cultural e economicamente privilegiados das sociedades atuais. Isso não excluiria a existência de identidades unificadas e centrais espacialmente localizadas. Argumento contrário, excludente, teria que se basear na lógica do um-ou-outro, característica da civilização ocidental até um último

quatro do século XX, e não da simultaneidade (um-e-outro), perspectiva intrínseca às sociedades atuais, sob a égide da era digital.

Outro elemento que nos parece insuficiente nas análises de teóricos afeitos a concepções mais subjetivistas diz respeito ao fato que, apesar de sugerirem um caráter abrangente de seus diagnósticos e de preconizarem a generalização dos processos de fragmentação/descentramento, suas abordagens estão, de forma mal dissimulada, centradas no ethos capitalista como sendo a categoria analítica determinante dos resultados de seus estudos, mesmo quando não lhe é feita uma referência explícita ou negada, abertamente, alguma vitalidade a outras dinâmicas culturais das sociedades. Seus estudos, em geral, acabam por naturalizar as exclusões pela sua inevitabilidade diante de forças quaisquer que se encaminham para a sua reprodução contínua.

Vale salientar que, mesmo considerando a prevalência do capitalismo do mundo contemporâneo, isso não elimina as outras dinâmicas socioeconômicas e culturais da vida humana, responsáveis pela sua diversidade. Mas nos discursos teóricos a palavra capitalismo praticamente não aparece, nem a exclusões sociais que lhe caracterizam. Assim, fica-se à vontade para se generalizar uma percepção de realidade focada na experiência específica de camadas sociais e econômicas privilegiadas como se fosse possível a sua extensão a todos os segmentos sociais e todos os lugares.

Por todas essas razões, observamos fragilidades nos discursos sobre as atuais configurações dos conceitos de lugar e identidade. Mais do que noções que se desestruturaram diante das mudanças processadas nos balizadores temporais e espaciais responsáveis por sua constituição, como sugerem alguns, continuam preservando o seu viço como conceitos analíticos. E, assim sendo, acreditamos ter sentido operacional a sua adoção em uma reflexão sobre os lugares, os territórios, os seus sujeitos e as relações que se desenvolvem entre os elementos que fazem deles o que são.