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2 – Desmundo: de Portugal ao Brasil

Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (...).

E desta maneira dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta Vossa terra vi.110

Pero Vaz de Caminha

Situa-se nos séculos XV e XVI, o período que historicamente ficou conhecido como a Era das grandes viagens marítimas ou das grandes navegações. A criação da Escola de Sagres, logo após a conquista de Ceuta (1415), constitui-se em um marco importante para o desenvolvimento do projeto de expansão marítima portuguesa, uma vez que suas pesquisas,111 – apoiadas financeiramente por setores da burguesia e pela nobreza – estimulam os navegadores lusos a buscarem novas rotas marítimas a fim de que possam negociar suas mercadorias diretamente com a Índia, sem a obrigatoriedade de recorrerem aos atravessadores genoveses e venezianos, os quais detinham, antes da intervenção turca, o

110 CAMINHA, Pero Vaz de. A carta. Disponível em: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html>.

Acesso em: 19 abr. 2008.

111 A Escola de Sagres, criada em 1417, é considerada o principal centro de pesquisas em navegação,

geografia e cartografia da época, ela foi construída por iniciativa do infante D. Henrique (1394-1460), o Navegador, quinto filho do rei D. João I (1357-1433), em cujo reinado deu-se o início das conquistas portuguesas de além-mar. Cf. SÉRGIO, António. Breve interpretação da história de Portugal. Lisboa: Sá de Costa, 1981. p. 41.

monopólio dos produtos orientais, cobrado, em virtude desse privilégio, preços exorbitantes por sua comercialização.

Depois que os turcos tomaram Constantinopla, em 1453, e dificultaram o acesso dos europeus via Mar Mediterrâneo – tanto para a importação de especiarias orientais quanto para a exportação de manufaturas européias – as transações comerciais entre a Europa Ocidental e a Índia se tornaram inviáveis, restando como única possibilidade de manutenção desse intercâmbio a descoberta de um caminho alternativo. Os resultados obtidos em razão do empreendimento marítimo português foram além dos objetivos primeiros, pois – mais do que o efetivo encontro de uma outra passagem para o Oriente – o desenvolvimento científico-tecnológico relacionado à navegação,112 proeminente na península ibérica, proporcionou um avanço por territórios, até então, desconhecidos e a conseqüente conquista113 de um Novo Mundo para os europeus.

Embora a chegada dos portugueses ao Brasil, durante o reinado de D. Manuel I (1469–1521), tivesse sido considerada um grande feito – e apesar das insinuações de Pero Vaz de Caminha quanto à possível existência de metais preciosos114 na região, até aquele momento, inexplorada – não houve investimentos significativos por parte da Coroa

112 Ainda que os naufrágios fossem uma constante naquele tempo, a utilização das caravelas, além do uso de

certos instrumentos de navegação como a bússola, o quadrante, a balestilha, o astrolábio e, sobretudo, os aperfeiçoamentos das cartas náuticas permitiram que tais navegadores viajassem a distâncias cada vez maiores.

113 Sobre a utilização desse termo, Gilberto Cotrim enfatiza que, em 1556, a Coroa espanhola proibiu

oficialmente o emprego dos vocábulos conquista e conquistador, sob a alegação de que seus significados preservariam na memória a ocorrência de uma guerra entre os vencedores e os vencidos. Em substituição a estas palavras, sugeriu os termos descobrimento e descobridor, amplamente incorporados pela historiografia tradicional. Cf. COTRIM, Gilberto. O impacto da conquista. In: Historia global: Brasil e geral. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 142.

114 As minas de ouro e prata européias já não produziam o bastante para a cunhagem das moedas necessárias à

aquisição de mercadorias orientais. Ciente da importância destes metais para a Coroa portuguesa, Pero Vaz de Caminha conta ao rei que: “(...) um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção a terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também houvesse prata!”. Cf. CAMINHA, op. cit.

portuguesa ao longo dos primeiros trinta anos do século XVI, pois o lucrativo comércio com o Oriente ainda atraia os interesses da Europa. Somente nas décadas seguintes, já sob o reinado de D. João III (1502–1557), é que surgiriam as primeiras grandes investidas de povoamento e de exploração da nova colônia. Inicialmente com a instituição das capitanias hereditárias nos anos 30 e, mais tarde, com a implementação do governo-geral em 1549.

Desses dois momentos específicos, vale destacar a atuação de Duarte Coelho Pereira (1485?–1554), donatário da capitania de Pernambuco, bem como a liderança de sua esposa, Dona Brites de Albuquerque115 (1517?–1584?), que – durante as viagens do marido à Europa e, principalmente, depois da morte dele – governa a região por cerca de 30 anos.116 Com o intuito de povoar e, assim, proteger o litoral da cobiça de outros invasores (franceses, ingleses e holandeses) e, também, em virtude da necessidade de enfrentar os conflitos com diversos grupos nativos que tentavam resistir à invasão de suas terras e à escravização de sua gente, a governadora apóia, a partir de seu próprio núcleo familiar,117 a

115 Em uma missiva destinada ao rei D. João III, Manoel da Nóbrega, logo após a sua chegada na Capitania de

Pernambuco, em 1551, reconhece o valor de Brites de Albuquerque, ainda que tenha apagado o seu nome. Naquela, diz o clérigo: “Duarte Coelho e sua mulher são tão virtuosos, quanto é a fama que tem, e certo creio que por eles não castigou a justiça do Altíssimo tantos males até agora. E porém é já velho e falta-lhe muito para o bom regimento da justiça, e por isso a jurisdição de toda a costa devia de ser de V.A.”. Cf., a propósito, NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil e mais escritos. Lisboa: Universitária Editora, 2004. p. 66.

116 Com a morte do marido e a ausência dos filhos – Duarte e Jorge de Albuquerque, respectivamente, o

segundo e o terceiro donatários – que foram estudar em Lisboa, Brites de Albuquerque assume o comando da Capitania e, mesmo depois que os jovens retornam de Portugal, ela mantém-se na função de “governadora”. Cf. WIKIPÉDIA. Desenvolvido pela Wikimedia Foundation. Apresenta conteúdo enciclopédico. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Brites_de_Albuquerque&oldid=2789811>. Acesso em: 19 abr. 2008. No romance Desmundo, a inclusão da figura histórica de Dona Brites de Albuquerque serve de referência para que se possa situar o espaço central da narrativa, isto é, o litoral de Pernambuco, e contribui igualmente para que se localize o tempo em que se desenrolam os acontecimentos, pois Duarte Coelho volta para Portugal, em 1553, um ano antes de morrer, deixando sua esposa no comando da Capitania.

117 Durante seu governo, Dona Brites estabeleceu laços de parentesco com membros da tribo tabajara através

do casamento de seu irmão, Jerônimo de Albuquerque, com Muíra Ubi, filha do cacique Ubirá Ubi, posteriormente batizada com o nome de Maria do Espírito Santo Arcoverde. Desta aliança, foram registrados oito sobrinhos. Além do irmão, o filho primogênito da governadora, Duarte Coelho de Albuquerque, também se casou com uma índia. Cf.:ALBUQUERQUE, Pedro Wilson Carraro. Sobral Pinto e seus antepassados. Disponível em: <http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml?cod=6724&cat=Ensaios&vinda=S>. Cf., ainda, <http://www.historiadobrasil.com.br/viagem/bios01.htm#bba>. Acesso em: 19 abr. 2008.

união entre colonizadores portugueses e mulheres indígenas. Por esta via, isto é, através do “enlace das raças”, para usar os termos de Euclides da Cunha, consegue atingir seu principal objetivo, ou seja, promover a expansão demográfica do território e seu conseqüente desenvolvimento econômico. Segundo o autor de Os sertões, para o Brasil

vinham esparsas, parcelas em pequenas levas de degredados ou colonos contrafeitos, sem o desempenho viril dos conquistadores. Deslumbrava-as ainda o Oriente. O Brasil era a terra do exílio; vasto presídio com que se amedrontavam os heréticos e os relapsos, todos os passíveis de morra per

ello da sombria justiça daqueles tempos. Deste modo nos primeiros tempos o

número reduzido de povoadores contrasta com a vastidão da terra e a grandeza da população indígena. (...) Os forasteiros que aproavam àquelas plagas eram, ademais, de molde para essa mistura em larga escala. Homens de guerra, sem lares, afeitos à vida solta dos acampamentos, ou degredados e aventureiros corrompidos (...). A mancebia com as caboclas descambou logo em franca devassidão, de que nem o clero se isentava.118

Ainda na década de 30, Duarte e Brites conseguem fundar diversas vilas de colonos, distribuindo terras para o cultivo do fumo, do algodão e, principalmente, para expansão dos canaviais; além disso, eles conquistam o apoio de investidores financeiros e – escravizando índios e africanos – começam a construir os primeiros engenhos de açúcar com o intuito de beneficiar, em larga escala, um dos produtos mais apreciáveis na Europa. A competência administrativa do casal (incluindo o uso de armas) faz com que a capitania de Pernambuco se transforme, em poucas décadas, em um dos lugares mais prósperos de toda a América portuguesa. Tal progresso, entretanto, não ocorre nas demais capitanias, exceção feita a São Vicente onde igualmente são estabelecidas alianças com tribos indígenas.

118 CUNHA, Euclides da. Os sertões. In: SANTIAGO, Silviano. (Coord., seleção de textos e prefácio)

Das dificuldades vividas pelos primeiros colonizadores, muitas são atribuídas ao isolamento das capitanias em relação à metrópole, o que leva D. João III a adotar, no final dos anos 40, uma outra estratégia com o propósito de garantir a ocupação lusa ultramarina. Confiante no potencial econômico das terras brasílicas e no intuito de amenizar os problemas decorrentes das árduas travessias do Atlântico, o soberano português confere a Tomé de Sousa (1502–1579) o título de primeiro governador-geral do Brasil, atribuindo-lhe a tarefa de centralizar, em Salvador, o comando político-administrativo da Colônia. Na armada católica do governador, além de fidalgos, soldados, súditos anônimos e muitos degredados, viaja um grupo de missionários da Companhia de Jesus que, sob a liderança do padre Manuel da Nóbrega (1517–1570), tem, entre outras, a incumbência de converter a população indígena ao catolicismo.

A tarefa de catequizar os índios, ou, como prefere Caminha, de “salvar esta gente”, depende, em parte, do apoio do rei, pois se faz necessário encontrar alternativas que sejam capazes de, entre outros aspectos, modificar o comportamento sexual dos colonos que eram adeptos da poligamia com mulheres indígenas. Sobre as preocupações e as sugestões de Nóbrega, já no momento de sua chegada, Euclides da Cunha destaca que o jesuíta, em uma epístola destinada a El-Rei119 com data de 1549,

119

Provavelmente, Euclides da Cunha comete uma pequena imprecisão aqui, pois a carta a que se refere, escrita na Bahia com data de 9 de Agosto de 1549, foi enviada para Lisboa, na verdade, ao P. Simão Rodrigues, Provincial da Companhia de Jesus em Portugal. Nesta, Nóbrega diz: “Parece-me coisa muito conveniente mandar S.A. algumas mulheres, que lá tem pouco remédio de casamento, a estas partes, ainda que fossem erradas, porque casarão todas muito bem, com tanto que não sejam tais que de todo tenham perdido a vergonha a Deus e ao mundo. E digo que todas casarão muito bem, porque é terra muito grossa e larga, e uma planta que se faz uma vez dura X anos aquela novidade, porque, assim como vão apanhando as raízes, plantam logo os ramos e logo arrebentam. De maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida, e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra. Cf., NÓBREGA, op. cit., p. 50-51.

pintando com ingênuo realismo a dissociação dos costumes, declara estar o interior do país cheio de filhos de cristãos, multiplicando-se segundo os hábitos gentílicos. Achava conveniente que lhe enviassem órfãs, ou mesmo mulheres 'que fossem erradas, que todas achariam maridos, por ser a terra larga e grossa'. A primeira mestiçagem fez-se, pois nos primeiros tempos, interessante, entre o europeu e o silvícola. 'Desde cedo', di-lo Casal, 'os tupiniquins, gentio de boa índole, foram cristianizados e aparentados com os europeus, sendo inúmeros os brancos naturais do país com casta tupiniquina'.120

Sem respostas concretas ao seu apelo, o jesuíta volta a tratar do mesmo assunto dois anos mais tarde e, desta vez, envia – de Olinda-PE, com data de 14 de setembro de 1551 – uma missiva destinada a D. João III em que considera a situação de Pernambuco, no que diz respeito à ausência de mulheres, menos grave do que a de outras localidades. Por isso, o padre solicita ao rei que,

Para as outras Capitanias mande V. A. mulheres órfãs, porque todas casarão. Nesta não são necessárias agora por haverem muitas filhas de homens brancos e de índias da terra, as quais todas agora casarão com a ajuda do Senhor; e, se não casavam dantes, era porque consentiam viver os homens em seus pecados livremente, e por isso não se curavam tanto de casar e alguns diziam que não pecavam, porque o Arcebispo do Funchal lhes dava licença.121

No ano seguinte, mais precisamente no início de julho de 1552, de volta à Bahia, Nóbrega escreve novamente ao rei e aproveita para reiterar seu antigo pedido:

Já que escrevi a V. A. a falta que nesta terra há de mulheres com que os homens casem e vivam em serviço de N. Senhor, apartados dos pecados em que agora vivem, mande V. A. muitas órfãs e, se não houver muitas, venham de mistura delas, e quaisquer porque são tão desejadas as mulheres brancas

120 CUNHA, op. cit., p. 254. 121 NÓBREGA, op. cit., p. 68.

cá, que quaisquer farão cá muito bem à terra, e elas se ganharão e os homens de cá apartar-se-ão do pecado.122

É, a propósito, a citação acima que Ana Miranda utiliza como uma das epígrafes123 do romance Desmundo (1996).124 É a partir do argumento contido neste excerto, extraído de um dos documentos históricos mais antigos sobre o Brasil Colônia, que a escritora recria, ficcionalmente, o período que circunscreve a efetiva instalação do projeto colonial português no continente americano, evidenciando, entre outros aspectos, as primeiras construções arquitetônicas, as formas de desenvolvimento sócio-econômico, os conflitos entre os europeus e os índios, enfim, a consolidação de um dos principais núcleos colonizadores do país, a capitania de Pernambuco, considerada pelo padre Manoel da Nóbrega como “uma povoação grande, das maiores e melhores desta terra”.125

A história – que abarca grande parte do contexto apresentado até aqui – é contada por intermédio de Oribela, uma jovem órfã portuguesa que, juntamente com outras meninas órfãs, é designada – por uma ordem da rainha Catarina da Áustria (1507-1578), esposa de D. João III – ao exílio no Brasil. Sem o poder de recusa, sete internas de um mosteiro126 são

122 Ibid., p. 74.

123 A outra, assinada por Fernando Pessoa, sugere o viajar sem destino certo e sem volta: “Ir para Longe, ir

para Fora, para a Distância Abstrata. Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas, Levado, como a poeira, pelos ventos, pelos vendavais!”, e remete ao tempo das grandes viagens marítimas. Por meio destas epígrafes, a autora conecta a literatura com a história antes mesmo de iniciar a narrativa propriamente dita.

124 MIRANDA, Ana. Desmundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Todas as citações do texto de Ana

Miranda pertencem a esta edição.

125 NÓBREGA, op. cit., p. 42. 126

De acordo com o estudo realizado por Eliane Campello a respeito das “órfãs da rainha”, diversas jovens que viviam no Recolhimento de Nossa Senhora da Encarnação, inaugurado em 1543, foram enviadas para o Brasil durante os anos de 1551, 1552, 1553 e 1557. Segundo a autora: “Há registro histórico dos povoadores e das órfãs, e entre os nomes de mulheres que deram início a 'poderosas famílias do Brasil' encontram-se: Joana (casada com Rodrigo de Argolo), Maria (mulher de Francisco Bicudo), Clemência Dória, Inês da Silva e Violante de Eça (as três últimas citadas vieram com Duarte da Costa)”. A propósito, estes nomes não aparecem em Desmundo o que leva a crer que as “órfãs de Ana Miranda” são, de fato, figuras ficcionais. Cf.: CAMPELLO, Eliane. A feminilização órfã: Desmundo e Le premier jardin. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABECAN, 8, 2005, Gramado-RS. Anais. Porto Alegre, 2006. 1 CD-ROM.

obrigadas a embarcar em uma nau rumo ao novo país, a fim de “ajudar nos trabalhos, para fecundar, parir”,127 em suma, para fortalecer o processo de dominação e de exploração mercantil das auspiciosas terras transoceânicas e, acima de tudo, para “fazer filhos abençoados de alvura na pele”.128

127 MIRANDA, op. cit., 1996. p. 55. 128 Ibid., p. 73.