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2.3 – Um lugar distante daqu

Território e lugar se configuram como categorias conceituais que facilitam a compreensão do caráter subjetivo do espaço. Construídos em um determinado espaço/tempo histórico e simbólico, os mesmos exemplificam a complexa interconexão de espacialidades formadas a partir de dimensões objetivas e subjetivas; físicas e abstratas.181

Vilson Sérgio de Carvalho

Roland Bourneuf e Réal Oullet afirmam – a partir da análise de Dom Quixote (1605), e de Moby Dick (1851) – que “a viagem dá a estes romances o tema e o princípio da unidade, a matéria das peripécias, o ritmo; por ela se revelam ou se realizam as personagens e, para além dessas aventuras grotescas ou épicas, o autor sonha numa outra viagem, a do homem durante a sua existência”. De acordo com estes autores, “longe de ser indiferente, o espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra”.182 No caso de Desmundo, vale registrar que a viajante protagonista, sem revelar seu sobrenome, apresenta-se como “Oribela de Mendo Curvo”,183 amalgamando em sua própria identidade o nome da terra natal. O sentimento que a jovem nutre pelo lugar de origem pode ser entendido em consonância com o que

181

CARVALHO, op. cit., p. 309.

182 BOURNEUF, Roland; OULLET, Réal. O universo do romance. Trad. de José Carlos Seabra Pereira.

Coimbra: Livraria Almedina, 1976. p. 131.

183 Situada ao Nordeste de Portugal, a Vila de Torre do Moncorvo, (antiga Mendo Curvo) pertence ao Distrito

de Bragança e, por ser considerada uma grande produtora de vinhos e de amêndoas, a vila integra, atualmente, a rota turística trasmontana. Tal referência confirma a procedência geográfica da protagonista de Desmundo pois, segundo declara, sua terra se localiza “onde florescem amendoeiras a perder de vista e entre elas as oliveiras”. Cf. MIRANDA, op. cit., 1996, p. 52.

Vilson Sérgio de Carvalho descreve como topofilia,184 pois, mesmo quando o doloroso presente se sobrepõe ao passado, tornando-o cada vez mais nebuloso e distante, ela não esquece que

Havia ainda em meu coração o desejo de tornar, embora fosse a cada anoitecer mais pálida a vista da Princesa, suas torres e muralhas dentro de mim, mais apagada a vista do rio, mais borrada a face de minhas amizades (...). Nem em sonhos vinha mais minha mãe, vinha sim (...) a lembrança má dos marujos se servindo de mim, o mouro em fogo avoando sobre minha cama a atentar com sua beleza má (...). De bom, só restavam as flores do Mendo Curvo e o mel de suas abelhas. E a tanto me agarrava eu, como se fosse um fio de seda que levasse ao mundo, estando eu no desmundo.185

Se por um lado, o apego a detalhes tão específicos – como, por exemplo, o mel e as flores acima citados – pode ser traduzido como verdadeira adoração a um lugar, pode, por outro lado, conotar a saudade de um tempo vivido neste lugar, um tempo em que Oribela tinha a mãe para protegê-la e podia contar com o apoio financeiro do pai, “um mercador de azeite que um dia fora rico”,186 para prover seu sustento. Em outras palavras, é possível afirmar que o fato de não conseguir ocupar, no presente, um lugar socialmente respeitado é o que justifica o sonho de retorno da protagonista. Nesse sentido, seu retorno se torna impossível porque é o tempo, e não um oceano, que a distancia do lugar desejado.

184 O vocábulo topofilia expressa a importância e o valor que uma pessoa atribui a um determinado lugar. Nas

palavras do autor, “trata-se (...) de um sentimento de valorização de um lugar em função de fatores diversos tanto de ordem objetiva, como também de ordem subjetiva. Através deste conceito, faz-se possível entender os sentimentos positivos do homem por uma localidade qualquer. Sentimentos que podem ir desde a simples sensação de bem-estar até uma verdadeira paixão; de uma apreciação estética até o prazer de um contato corporal mais direto. Tais sentimentos explicariam porque cenas simples e pouco atrativas para uns podem significar muito para outros que entendem as mesmas como dotadas de grande beleza. O sentimento topofílico é percebido como apego a um lugar qualquer por motivos diversos: por familiaridade, por representar conteúdos passados significativos (relacionados à histórias de vida pessoal ou mesmo coletivas) ou pela evocação ou associação, que o mesmo permite, em termos de sentimentos ou valores variados como paz, orgulho, patriotismo ou simplesmente saudade”. Cf. CARVALHO, op. cit., p. 309.

185 MIRANDA, op. cit., 1996, p. 138. 186 Ibid., p. 123.

Em verdade, o dilema vivido por Oribela, bem como o drama compartilhado pelas demais órfãs da rainha, é decorrente de seu irremediável desamparo, pois – sem pai, sem mãe, sem amor, sem fortuna, enfim, sem qualquer tipo de proteção – ela não possui em sua terra nada nem ninguém que possa ser resgatado e, caso consiga retornar a Portugal, sua condição, na corte do rei D. João III, será a de uma “órfã enjeitada” e, sem qualquer perspectiva de constituir uma nova família, será ainda mais socialmente marginalizada. No Brasil, entretanto, ela observa que: “... as gentes até queriam saber nossos nomes, feito agora fôssemos de carne e alma, humanas, (...) Apenas mulheres, órfãs, pobres, mas tratadas como as italianas, as de pura pele e claros olhos e sem buços, que cheiravam como flores e brilhavam como o raio do sol, rainhas do purgatório, deusas dos infernos, cassandras dos desterros, flores de desertos”.187

Ter sua identidade, sua elementar condição humana reconhecida é o que Oribela ambiciona, não só para si, mas também, para suas companheiras. Todavia, ela quer obter esse reconhecimento em Portugal – lugar que, de acordo com seu ponto de vista, representa o mundo – onde o simples fato de ser alguém, de ser distinguida pelo próprio nome confere-lhe algum valor; não “no purgatório”, “no inferno”, “no desterro”, “no deserto”, que – na citação anterior – caracteriza simbolicamente o Brasil, ou seja, não neste imenso e perverso desmundo, onde o ser pouco ou quase nada significa.

Até aqui, procurou-se mostrar que se, por um lado, o romance pode ser percebido como o relato da trajetória de uma jovem exilada e de sua permanente luta para escapar do desmundo e/ou dos desmandos que crescem sobre as bases do patriarcado. O que se comprova na passagem em que Oribela – adotando um discurso semelhante ao das

exploradoras sociais apresentadas por Mary Pratt – imagina um espaço idealizado de poder e prazer femininos e – a partir da ausência temporária de seu marido e de sua convivência prazerosa com Temericô – constrói, a seu modo, sua feminotopia: “Bom era viver numa casa sem homem a ordenar”.188

Desmundo pode, por outro lado, ser visto como revelador de relações hierarquizadas, portanto desiguais, também entre as mulheres. Acaso não teria sido diferente se, por exemplo, Oribela tivesse ido viver com o marido longe dos olhos vigilantes de Dona Branca e de Viliganda? Não teria sido diferente se, em sua nova casa, estivesse vago o lugar soberano, o qual imaginava ocupar? O fragmento abaixo revela o que pensava a jovem antes de seu casamento: “Não há mulheres e onde não há mulheres as poucas hão de ter a força dos homens em seus desejos e mandos, como rainhas. Onde há uma só mulher há de ela ser rainha, como foi a primeira, que de Eva vieram todas as rainhas e a segunda há de ser princesa e as seguintes suas fidalgas e as mais suas aias”.189

Ora, se a crítica feminista tradicional daria conta em responder as implicações referentes ao primeiro caso, baseando-se em uma visão do conceito de gênero como diferença entre a mulher e o homem, certamente não atenderia às questões envolvidas no segundo. Pois o conceito de gênero como diferença sexual, na afirmação de Teresa de Lauretis, “Confina o pensamento crítico feminista ao arcabouço conceitual de uma oposição universal do sexo (...) o que torna muito difícil, se não impossível, articular as

188 Ibid., p. 126. 189 Ibid., p. 39.

diferenças entre mulheres e Mulher, isto é, as diferenças entre as mulheres talvez mais exatamente, as diferenças nas mulheres”.190

Surge daí a necessidade, percebida pela crítica feminista das últimas décadas, de considerar o sujeito não somente pela diferença sexual, mas também pelas diferenças de classe, de raça, de orientação sexual, de geração, enfim, abrindo espaço para que sejam questionadas as relações entre as pessoas no feminismo, já que pensar em um “feminismo universal” não abarca a diversidade das relações sociais.

Nesse sentido é que a narradora de Desmundo se reveste de significação, pois se trata de alguém que se mostra em desvantagem não só em relação aos homens, mas também em posição de inferioridade entre algumas mulheres. Ainda que receie suas vozes interiores “Um temor me deu, havia umas vozes dentro de mim, que eu não queria ouvir”.191 Oribela assume sua fala e revela toda a desigualdade social daquele tempo e lugar. Ana Miranda, por sua vez, ao dar voz a essa personagem, possibilita ao/à leitor/a problematizar, através das relações de gênero, múltiplas relações de dominação.

Além disso, a personagem-narradora é alguém que, embora fragilizada por sua própria condição “(...) se era eu só no mundo, haveria de me saber cuidar, espreitar, que bastava o perigo de não ter pai nem mãe, ser mulher que excomungada nasceu, ignorante e principiante”,192 não se deixa sucumbir e até o fim buscará, geográfica, social e culturalmente, ocupar “um outro lugar” diferente, distante do exílio que lhe foi imposto.

Do que foi mostrado até o momento, já se pode concluir que, em Desmundo, Ana Miranda resgata um período importante do passado brasileiro convenientemente

190

Cf. LAURETIS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Tendências e

impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 207.

191 MIRANDA, op. cit., 1996, p. 51. 192 Ibid., p.170.

sedimentado pela história oficial e – como se observa também em seus outros romances – assume uma atitude, não raras vezes, contra-ideológica.

Aqui, entretanto, a autora subverte os padrões dominantes ao conferir expressão a um ponto de vista da mulher. Em outras palavras, pode-se dizer que Ana Miranda desafia e contesta o centro através da voz de Oribela. A personagem central do romance é, conforme se procurou demonstrar, uma figura ex-cêntrica e é a partir da especificidade da sua experiência, da sua linguagem e da sua visão de mundo que o/a leitor/a é levado a refletir sobre uma sociedade que se organiza por volta do ano de 1550 e, o que parece mais importante, sobre a sociedade de seu próprio tempo.

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