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4.3 – O fim de uma longa espera

Meu pai dizia que a memória era uma mulher vaidosa, ciumenta, que desejava estar sempre presente; que o tempo, seu irmão, não se passava como, por exemplo, numa peça de teatro: uma cena após a outra.375

Ana Miranda A terra é o exílio insuportável, o morto um bem-aventurado sempre.376

Euclides da Cunha

O universo ficcional, em Dias & Dias, é instaurado a partir da expectativa do encontro de Feliciana, uma mulher de quarenta anos de idade, com Gonçalves Dias que, ao deixar a Europa a bordo do brigue francês Ville de Boulogne, tem sua chegada prevista em São Luís (MA) para o dia 3 de novembro do ano de 1864.377 Tal expectativa servirá como ponto de partida ao desenrolar da narrativa. Claro está que o relato da história não é linear, não há coincidência entre o início da trama e o início da fábula: a narração dos acontecimentos começa quando Feliciana, ciente do regresso do poeta ao Brasil, presentifica o passado. É por meio de um olhar retrospectivo – flashback – que a narradora começa a apresentar as personagens, os fatos, os conflitos, enfim, a trajetória do poeta maranhense, bem como a sua própria trajetória.

375

MIRANDA, Ana. Sem Pecado. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 20.

376 CUNHA, op. cit., p. 289.

377 Ao longo do romance, Ana Miranda insere diversas datas. Este elemento, bastante característico à narrativa

histórica e à escrita do diário, serve também para aproximar os diferentes discursos. A propósito, em Dias &

Dias, Ana Miranda, aproveitando-se de dados até mesmo de sua própria biografia, faz coincidir o dia e o mês

do aniversário de sua heroína com a data de seu próprio aniversário. É Feliciana quem conta: “se isso foi em fevereiro de 46, ele estava então com vinte e dois anos e iria completar vinte e três em 10 de agosto de 46. E eu, vinte e um no dia 19 de agosto, mês do desgosto”. MIRANDA, op. cit., 2002, p. 127.

A opção por apresentar a vida de Gonçalves Dias a partir da data de sua última viagem – subvertendo o modelo biológico: nascimento, crescimento, envelhecimento e morte, o qual é peculiar ao relato biográfico tradicional – além de apontar para a irônica inversão das convenções biográficas e historiográficas, permite, ainda, que a autora trabalhe, desde as páginas iniciais do livro, com outro tema bastante útil a sua trama romanesca. Esse tema diz respeito ao amor, ou melhor, à possibilidade de concretização amorosa entre a personagem narradora e o poeta. Através deste artifício, Ana Miranda cria uma atmosfera de “suspense” ao romance, fazendo crescer a expectativa do/a leitor/a em relação ao momento do reencontro entre Feliciana e seu amado, bem como em relação ao resultado deste reencontro.378 As transcrições abaixo demonstram como a autora – sem libertar sua heroína de seu amor platônico – recorre a esse fio condutor ao longo do texto:

Quando ele voltou em 45 eu lembrava de tudo, até de seu modo de caminhar, do lado que costumava repartir os cabelos, mas lembro de haver percebido uma grande mudança em Antonio quando ele retornou, desde suas roupas até seus modos, os cabelos repartidos para o outro lado. O meu amor era o mesmo, quiçá maior.379

Se a composição aos meus olhos foi realmente escrita no dia 21 de junho de 1835, quando eu tinha doze anos e Antonio tinha treze anos, e se estamos em 3 de novembro de 64, já se vão aí vinte e nove anos. Meu Deus, toda a minha vida dedicada a Antonio.380

378BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise estrutural da narrativa.

Petrópolis: Vozes, l973. p. 55-56. De acordo com o autor, “o suspense não é evidentemente mais que uma forma privilegiada, ou, caso se prefira, exasperada, da distorção: de um lado mantendo uma seqüência aberta (por procedimentos enfáticos de retardamento e de adiantamento), reforça o contacto com o leitor (ou ouvinte), detém uma função manifestamente fática; e por outro lado, oferece-lhe a ameaça de uma seqüência inacabada, de um paradigma aberto (se, como cremos, toda seqüência tem dois pólos), isto é, uma perturbação lógica, e é essa perturbação que é consumida com angústia e prazer (...); o suspense é pois um jogo com a estrutura, destinado, caso se possa dizer, a arriscá-la e a glorificá-la”.

379 MIRANDA, op. cit., 2002, p. 115. 380 Ibid., p.198.

Conforme se verifica, na citação anterior, a personagem narradora calcula o tempo de duração de sua longa espera: foram quase três décadas de imobilidade sentimental e existencial. Paralisia esta que Feliciana, enquanto rememora seu passado, conscientemente reconhece: “eu ainda era jovem, (...) e estava mais obstinada a esperar, havia tempo sobrando em minha vida, continuei em meu estado de espera, imóvel feito uma colina...”.381 Tal como Penélope que – fazendo, desfazendo e refazendo o véu-mortalha para Laertes – aguarda o retorno de Ulisses, Feliciana organiza, desorganiza e reorganiza os botões em sua caixinha de costura, mais do que isto, ela (des)(re)organiza suas memórias, suas palavras e, também, suas ações. Todavia, ainda que admita: “minha vida nunca perdeu o sentido porque o sentido da minha vida era esperar a volta de Antonio”,382 esta Penélope romântica – ou melhor, pós-moderna – diferentemente da heroína da Odisséia, não despreza a corte feita por seu pretendente. Ao contrário, ela procura seduzi-lo a fim de mantê-lo por perto:

Enquanto isso o professor Adelino seguia-me como um pintinho atrás da galinha, (...) ele abençoava o dia em que me conhecera e rezava a Deus para que lhe permitisse ser digno de acalentar uma esperança de receber meu afeto. (...) somos quase um a sombra do outro, ou melhor, ele é quase a minha sombra, pois onde quer que eu vá ele me segue, ele faz parte da minha vida, até mesmo preciso admitir que necessito dele, o professor Adelino é um apoio para mim, faz-me feliz saber que alguém me ama dessa maneira (...) faço com que fique sempre preso a mim – porque percebo que quanto mais o destrato, o desprezo, o desconheço – quanto mais sou impaciente, e infantil e desequilibrada – e altiva – mais ele se sente preso a mim e mais apaixonado....383

O diálogo que Dias & Dias estabelece com a obra de Homero é explicitamente proposto por Ana Miranda no episódio do naufrágio do Ville de Boulogne, o qual é

381 Ibid., p. 144. 382 Ibid., p. 99. 383 Ibid., p. 78.

proveitosamente recriado nas páginas finais do romance. Divergindo do sucesso obtido pela “bojuda nau”, pilotada por Ulisses, que consegue ultrapassar as terríveis Cila e Caribdes, o histórico navio francês naufraga nas águas revoltas do Atlântico perto da costa maranhense e Gonçalves Dias, sem ter a mesma sorte do herói grego, é o único passageiro que não retorna vivo à pátria.

... que dia é hoje, mesmo? 3 de novembro, oh que calor aqui neste cais onde espero por Antonio, por que ele está demorando tanto? Vejo uma chalupa que chega pelas águas da baía, nela vêm um comandante, um capitão e vários marinheiros, (...). Em seguida vem outra chalupa apenas com o piloto e mais bagagens. Navegam com cuidado. Aqui há a pequena ilha do Medo, há a Ponta da Guia que alguns comparam a Cila e Caribdes porque entre elas fica o estreito do Boqueirão, as águas traiçoeiras do estreito do Boqueirão metem medo, há lendas horríveis, histórias de naufrágios e desastres (...) a correnteza das águas que se encontram, a corrente dos rios, joga os barcos sobre os escolhos.384

Esta cena completa circularmente a narrativa, ou seja, ela pode ser conectada ao primeiro parágrafo do romance em que a personagem narradora – enquanto aguarda sozinha, no embarcadouro de São Luís, a chegada de Dias – começa a rememorar toda a sua história. O tempo que Feliciana espera pela embarcação não pode ser medido cronologicamente, sabe-se apenas que ele corresponde de forma exata ao tempo do relato, pois este termina quando ela fica ciente de que o navio naufragou e que o corpo de seu amado Antonio foi sepultado pelo mar.

Em síntese, vale enfatizar que neste romance, Ana Miranda recria – paralelamente à história de vida de Gonçalves Dias – diversos episódios sociais, políticos e culturais

384 Ibid., p. 231-2. Grifos meus. Sobre Cila e Caribdes, cf., a propósito, HOMERO, op. cit., p. 112-19.

Especialmente, a rapsódia XII, em que são narradas algumas provações que Ulisses enfrenta em sua viagem de retorno à pátria, ou seja, seu encontro com as sereias, bem como a perigosa passagem entre os dois escolhos, quando ele opta por perder seis marinheiros, aproximando-se de Cila, para não perder todos e, até mesmo, a própria vida, caso se aproximasse de Caribdes.

situados no nordeste do país durante boa parte do século XIX. Mas é, sem dúvida, pela ótica testemunhal de Feliciana que a autora consegue proporcionar outro enfoque sobre aquela sociedade claramente dividida entre a independência ou não de Portugal, entre as velhas e as novas formas de expressão artística. Enfim, o romance revela não apenas uma sociedade e uma época repletas de transformações políticas e literárias, mas também evidencia novas perspectivas para as mulheres, sobretudo no que se diz respeito a sua autonomia, bem como a uma possível liberdade de escolha em relação ao casamento.

Além disso, em muitas passagens do romance, o/a leitor/a pode também reconhecer, no Brasil daquele período, situações comuns ao Brasil de hoje. Observam-se, por exemplo, o jogo de interesse praticado pela classe dominante, a indignação provocada pelo imenso contraste social e, também, pela malandragem de certos indivíduos: “papai não aceitava que seu irmão falasse daquela maneira do lorde Cochrane, dizia que o lorde Cochrane tinha levado o dinheiro depositado no cofre dos órfãos e ausentes porque fora obrigado”.385 A utilização do passado como um meio de conduzir o/a leitor/a a uma profunda reflexão acerca de sua própria realidade caracteriza Dias & Dias, caracteriza a metaficção historiográfica e, de modo geral, a obra de Ana Miranda.

5

Amrik:

do Líbano às Américas