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A DESRESPONSABILIZAÇÃO PELO MUNDO

2 PERCEPÇÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO À LUZ REPUBLICANA DE

2.2 A DESRESPONSABILIZAÇÃO PELO MUNDO

O mal pode ser suave, pode ser risonho. E pode ser banal. Hannah Arendt, ao cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann em Jerusalém, nos anos 60, viu a banalidade do mal. Eichmann não chegou a usar as próprias mãos para matar nenhum ser humano, mas foi o idealizador e o organizador dos campos de extermínio. Mandou milhões para a morte. Porém, confinado a uma jaula de vidro durante o julgamento, apresentou-se como um sujeito comum, um qualquer. Hannah Arendt disse sobre ele: ―Realmente, acreditava que Eichmann era um brincalhão, e digo que li, e me detive particularmente nas declarações que prestou no interrogatório policial, 3.600 páginas, e que não sei quantas vezes cheguei a rir... gargalhar!‖ (Arendt apud Coimbra, 2013, p. 46).

Recorremos a essa observação de Arendt para dizer que assim como alguns já banalizaram a vida de muitos seres humanos, é possível fazer o mesmo em relação à educação, abandoná-la a si mesma, não dar relevância a ela. Não porque ―qualidade do ensino formal constitui-se numa das questões centrais da pauta de prioridades do país‖ (Zero Hora, 2013), o que faria a educação ser um meio para,

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supervalorizaria sua dimensão instrumental, mas porque o ultraje à educação compromete um dos pilares fundamentais da sociedade democrática.

Para o desenvolvimento do presente item nos valeremos de escritos publicados recentemente, que demonstram ser a educação uma discussão candente, posto que são recorrentes as falas, as defesas e os debates em torno de questões em boa medida apontadas aqui, o que leva a crer que problemas relativos à educação, sobretudo à hodierna relação de autoridade, aparecem cada vez com mais força na contemporaneidade.

Corre-se o risco de ficar sempre procrastinando quando se fala em educação. É isso que se pode dizer em consonância com a deixa de Fernando Shüler, que afirma que ―o Brasil tem uma teimosia encruada de não resolver certas coisas que todo mundo sabe que devem ser resolvidas‖ (2013, p. 11). O professor Shüler está se referindo ao que chama de apartheid educacional, em um país onde a educação define o mapa das oportunidades sociais. A procrastinação no que tange às questões educacionais que urgem é um vício. ―Mais fácil é abrir concurso, seguir a cartilha, e continuar apostando no mesmo de sempre‖, conclui pessimista o professor.

Pela sua seriedade, a educação deveria ser agenda de todos, acredita Ritzel (2014, p. 10), em consonância com o ideal democrático e o pensamento arendtiano. O que pode estar em risco se estiver certa a perspectiva editorial que diz que a atividade política está sendo vilipendiada no país (2004, p. 12). Se a política, que é uma das atividades mais nobres do ser humano, está sob a égide do que o dicionário chama de ―tratar com vilipêndio, ter ou considerar como vil, desprezar, repelir‖, a educação tende a ir mal também, uma vez que se dá em consonância com os ideais políticos de um povo. A pergunta é em que medida há uma preocupação do cidadão com questões políticas e, nesta ordem, educacionais. Sem uma participação minimamente interessada no processo, ―de fora‖, é possível fazer as mais diversas considerações relativas à má qualidade das instituições, como tem sido recorrente. Assim, é fácil apontar e fazer generalizações apressadas e com graus variados de precisão, já que são colocações oriundas do senso comum e de quem nem sempre está envolvido com as questões sobre as quais opina, como ajuda a lembrar Cavedon (2013, p. 13), em seu artigo Boas práticas pedagógicas. Nas palavras de Sofia, ―a escola é sempre palco de questionamentos, de forma geral, em especial a pública, é mal avaliada e em meia dúzia de argumentos,

sempre os mesmos, se explica seu fracasso. Cai-se facilmente na solução de criar testes ligados a estímulos ao mérito, para tentar pelo controle, melhorar a educação.‖

Não se está aqui negando a crise, sobre a qual a crítica arendtiana é incisiva. Quem trabalha diretamente com os estudantes tem feito queixas referentes ao que hoje é chamado de decadência cultural. Prikladnicki (2014, p. 03) lembra, por exemplo, do filósofo alemão Theodor Adorno, que, já no início do século XX, estava preocupado com o poder da música popular frente à música clássica. ―Fico a imaginar‖, escreve Fábio, ―o que [ele] diria hoje caso fosse convidado a conhecer o gosto musical exibido nas festinhas de debutantes ou de formandos por aí.‖ E se pergunta: ―quem vai substituir a geração de intelectuais veteranos do Brasil, aqueles que se formaram antes do golpe de 1964, falam quatro idiomas e entendem de filosofia a literatura, passando por política e economia?‖

Para Prikladnicki, estamos criando gente menos interessada em um projeto intelectual de uma vida porque está excessivamente envolvida com a contabilidade de outras coisas e com a estética. Não estaríamos interessados em enfrentar os problemas da educação no Brasil, posto que o utilitarismo, em sua acepção mais rasteira, tomou conta.

Arendt aponta para a ideia de que ação é o que os homens fazem entre si. O que o autor supracitado chama de decadência cultural pode ser visto como uma crise da educação em nossos dias. Talvez se deva lembrar que a escola não é a única responsável pela formação dos indivíduos, tal como muitos parecem pensar, entregando seu filho ao educandário pela manhã e retirando-o à noite, o que está entre as diferenças do que Hassen (2014) apontou entre pais e turistas.

Há muitos pais, defende Hassen, que abominam o período de férias, porque não sabem o que fazer com as crianças. ―Há pessoas que aparentemente renunciaram a ser aquilo que um dia escolheram ser: pais‖, escreve ela (p. 25). Assim como encontramos também professores que o fazem, recusando sua responsabilidade. É forte a tendência a, depois de nascidas, as crianças seguirem um caminho que, nos últimos tempos, foi-se naturalizando: em meio ao período da amamentação, lá estão elas sendo conduzidas para creches, das quais, com o passar dos anos, pularam para escolinhas até desembarcarem em escolas, essas instituições que, para desespero dos pais, inventaram dois meses ou mais de recesso. Considerações que estão em consonância com advertências presentes no

livro A Criança Terceirizada, do médico pediatra José Martins Filho, apontando os problemas de se priorizar o trabalho em detrimento das crianças.

Não se intenta com essas ponderações retirar da escola seu papel fundamental no que tange à educação, do contrário, estaríamos desautorizando toda a reflexão de Arendt referente à problemática. Colocadas essas primeiras ideias, é visível que são muitos os ―nós‖ da educação, e este escrito - inspirado em Arendt - objetiva sublinhar a responsabilidade também, e especialmente, daqueles que se intitulam ―nós da educação‖, isto é, os educadores.

O que aqui se propõe é uma reflexão sobre educação, seu papel na vida social e o significado de seus atores diretos. Ari Riboldi, em artigo intitulado Por uma

escola adequada (2014), lembra que ―professor vem do latim professor, oris, o que

professa, o que se dedica a, o que cultiva.‖ Segundo Riboldi, no sentido primitivo, era o professor que fazia juramentos ou declarações públicas, especialmente de caráter religioso. No início da era cristã, esclarece ele, os professores geralmente eram sacerdotes, exercendo, portanto, simultaneamente as funções eclesiásticas e as de educadores. Em tempos mais antigos, destaca o escritor, o professor escrevia as suas aulas e depois as lia aos seus alunos, tornando-se, por isso, o lente, o que lê. Para Arendt, professor é o responsável por apresentar o mundo às gerações mais novas, e, uma vez professor, não pode se furtar a essa tarefa. Mas para onde ir, perguntam-se a mais das vezes aqueles que se preocupam com a educação. E eis que a reflexão arendtiana, que não despreza o passado, mas antes diz que é preciso olhar com muita atenção para ele, ajuda-nos a pensar a respeito.

Auxilia com a reflexão Claudio Moreno (2013), dizendo que

Quando assistimos, assustados, ao declínio de nossos índices educacionais, quando ministros e pedagogos batem cabeça, perplexos, perguntando-se o que fazer, alguém deveria dar a eles o mesmo conselho que os sábios africanos dão a quem perde o rumo na imensa savana da vida: ―Se você não sabe para onde está indo, olhe para trás e veja, ao menos, de onde você veio‖ (p. 04).

Moreno diz que é como se tivéssemos esquecido a maneira de fazer aquilo que o homem vem fazendo há milênios: apresentar às novas gerações a complexa rede de estruturas artísticas, linguísticas, científicas, históricas, sociais e econômicas que constituem o mundo em que vivemos, sobre o qual estas gerações vão atuar decisivamente, quando chegar sua hora - trazendo à tona uma ideia vividamente

arendtiana. O aluno não pode ser visto como pertencente a uma minoria oprimida pelos professores, nem os conteúdos passarem a ser vistos como dispensáveis, a formação pedagógica como mais importante para o professor do que a especialização em sua disciplina específica - ao contrário do que se espera de uma escola verdadeiramente republicana -, assevera Moreno, ancorado em Arendt. A seu modo, contribui Savater:

É um disparate aplicar rigorosamente, desde a pré-escola, o princípio democrático de que tudo deve ser decidido entre iguais, pois as crianças não são ―iguais‖ a seus professores no que se refere aos conteúdos educacionais. Elas são educadas justamente para que mais tarde cheguem a ser iguais em conhecimentos e autonomia. Elas podem e devem ser treinadas, naturalmente, no exercício igualitário da deliberação democrática; é aconselhável que seu critério assim estabelecido prevaleça em certos assuntos escolares não essenciais; no entanto é uma fraude transformá-las em uma minoria oprimida pelo autoritarismo docente dos adultos, pois nesse momento de sua vida não o são, mas a melhor forma de fazer com que mais tarde o sejam é ―libertá-las‖ fora de hora em vez de colaborar para sua formação (1998, p. 127-8).

O que se tem dito com base em Arendt em grande medida tem a ver com a ideia de responsabilidade. A crise na educação, segundo o pensar arendtiano, passa pelo abandono da responsabilidade própria do adulto: se os adultos são omissos, os jovens crescem perdidos.

Laitano (2013), referindo-se ao consumo de bebidas alcoólicas, escreve que estamos diante de um problema sério quando o jovem desobedece à lei com a conivência dos adultos. Segundo ela, ―a maioria [dos jovens] acaba convencida de que o mundo dos adultos é assim mesmo: uma festa que nunca atende às expectativas e que ninguém consegue enfrentar de cara limpa‖ (p. 02). Laitano refere-se às festas jovens contemporâneas regadas a álcool. Nas suas palavras, ―cabe aos adultos mostrar que existem limites, sim, e ensinar que, junto com a liberdade, vem a responsabilidade, não apenas consigo mesmo e a própria segurança, mas com relação aos outros também‖ (p. 02). A colunista nos faz atentar para o fato de que o jovem que aprende o prazer da transgressão, mas não reconhece a legitimidade dos acordos sociais estabelecidos para proteger principalmente os mais frágeis - entre os quais se incluem aqueles que ainda não têm maturidade suficiente para lidar com a bebida - jamais vai conseguir entender, por exemplo, que beber e dirigir nunca é uma decisão que afeta uma única pessoa. E que saber a hora de parar de beber pode ser o detalhe que separa uma noitada de

diversão de uma madrugada trágica. Isto é, há uma inaptidão juvenil para lidar com tais questões, o que se torna ainda mais problemático em um mundo que não preza o comedimento, no qual imperam certos valores nem sempre saudáveis, ou no mínimo preocupantes.

Contudo, Laitano defende que o posto de combustíveis que vende bebidas sabendo que serão consumidas por menores, ou o mediador na transação, os donos dos locais que fecham os olhos para o circuito, os promotores de festas com bebida liberada, o fiscal que não fiscaliza, os pais que recebem os filhos bêbados em casa e acham normal: todos estão compactuando com a cultura da eterna terceirização da responsabilidade. E é incisiva em sua conclusão: ―em um mundo de adultos omissos, ou que não deixam claras as regras que querem ver respeitadas, os adolescentes crescem cada vez mais perdidos, individualistas e angustiados‖ (p. 02). Silva (2013), embasado em Aldous Huxley, George Orwell, Ray Bradbury, Michel Foucault e Gilles Deleuze, escreve que ―quanto mais os indivíduos introjetam as regras, mais aceitam a disciplina e menos precisam ser confinados ou vigiados presencialmente‖ (p. 02). A educação não tem só a responsabilidade de fazer com que regras sejam assumidas, a questão central é o conhecimento; todavia, em nenhum dos casos é facultado ao adulto, aqui o professor, eximir-se de sua responsabilidade.

Tudo isso tem a ver com a imperiosidade de dizer não, isto é, de não ceder a todos os quereres daqueles que ainda não estão politizados. Há uma farta literatura embasando a tese da importância de um freio à permissividade. Tajes (2013, p. 08), citando Corinna Schabbel, afirma que a dificuldade para se dizer não passa pelo fato de que quase todas as pessoas que estão prestes a largar uma negativa fantasiam uma série de reações por parte do outro - que pode ficar brabo, magoado, triste, ofendido. Tajes recorre também a Abrão Slavutzky, para quem

[...] dizer não é ficar no limite de não ser mais amado. E o que desejamos na vida mais do que ser amados? Somos seres sociais e às vezes nos pedem demais, pedem o impossível, é a conhecida voracidade humana. Se damos na hora para não nos incomodar, vamos terminar sofrendo logo adiante. Um não é bom, põe limite na voracidade amorosa do outro. E na nossa. (Slavutzky apud Tajes, 2013, p. 08).

Arendt é incisiva no que tange à ideia de que o educador não pode se furtar ao seu papel. ―Aquele‖, diz ela, ―que não quer assumir sua responsabilidade, não

pode ter filhos e deve-se proibi-lo de tomar parte na educação‖ (Arendt, 1972, p. 238). Pereira (2013) escreve que vale a pena destacar quem é, o que faz e o que pode o educador, aquele que conduz as crianças, que inicia os pequenos nas artes de viver, no saber, na leitura e escrita, no brinquedo, no cuidado de si, na invenção e na aprendizagem de tudo o que nos cerca. Entre suas atribuições, está a responsabilidade, não por tudo, já que atribuiríamos a ele uma espécie de ―síndrome de Atlas‖, o herói da mitologia grega Antiga, que era responsável por carregar o mundo às costas. Mas é inegável uma grande responsabilidade ao professor.

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