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A autoridade na educação sob a perspectiva Arendtiana

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Academic year: 2021

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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO NAS CIÊNCIAS – MESTRADO E DOUTORADO

JOÃO CARLOS CAVALHEIRO

A AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO SOB A

PERSPECTIVA ARENDTIANA

Ijuí – RS 2014

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JOÃO CARLOS CAVALHEIRO

A AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO SOB A

PERSPECTIVA ARENDTIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Mestre em Educação.

Orientador: Prof. Dr. José Pedro Boufleuer

Ijuí – RS 2014

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JOÃO CARLOS CAVALHEIRO

A AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO SOB A

PERSPECTIVA ARENDTIANA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, como parte dos requisitos para a obtenção do grau de Mestre em Educação, aprovada em 10 de dezembro de 2014, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

________________________________________________________ Prof. Dr. Edison Alencar Casagranda – UPF – RS

________________________________________________________ Prof. Dr. José Pedro Boufleuer – UNIJUÍ – RS

________________________________________________________ Prof. Dr. Sidinei Pithan da Silva – UNIJUÍ – RS

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RESUMO

O presente trabalho tem por escopo apresentar a concepção da pensadora Hannah Arendt no que tange à relação entre autoridade e educação, bem como tecer algumas reflexões a partir do que a autora propõe nesse sentido, com base no republicanismo. No ensaio sugestivamente intitulado ―A crise na educação‖, Arendt afirma que educação e política são âmbitos diferentes, posto que em política lidamos com adultos e o direito de participar da vida pública começa onde cessa a educação. A crise da tradição, sustenta Arendt, manifestada na crise da autoridade, torna paradoxal a tarefa de educar no mundo hodierno. Para a autora, a educação consiste na apresentação do mundo, em um convite ao amor ao mundo; para tanto, é necessário que o professor conheça o passado e o tenha como referência, posto que sem sua dignidade a escola não passa de um centro de treinamento com vistas a funções técnicas. No entender arendtiano, vivemos uma crise de autoridade sem precedentes, que não surgiu na escola, mas que brota do tipo de relação que temos estabelecido com o mundo comum e público. O professor, contudo, não pode furtar-se ao furtar-seu papel, isto é, tem a incumbência de aprefurtar-sentar o mundo às novas gerações. O problema que nos propomos enfrentar, com base em Arendt, concerne à condição de possibilidade de educar em um mundo progressivamente avesso à autoridade, procurando perceber a compreensão arendtiana de autoridade como responsabilidade pelo mundo.

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ABSTRACT

This paper is to present the design scope of the thinker Hannah Arendt regarding the relationship between authority and education as well as to make some reflections from the author proposes in that direction based on republicanism. In the essay suggestively titled "The crisis in education," Arendt states that education and political contexts are different, since we deal with adults in politics and the right to participate in public life begins when education ends. The crisis of tradition, Arendt argues, manifested in the crisis of authority, makes paradoxical the task of educating nowadays. For the author, education consists in the presentation of the world, an invitation to love the world; in order to reach this it is necessary that the teacher knows the past and understands it as a reference, since without their dignity school is just a training center aimed at technical functions. According to Arendt, we experienced a crisis of unprecedented authority, which did not arise in school, but springs from the kind of relationship we have established with the common and public world. The teacher, however, can not shirk its role, the teacher is tasked to introduce the world to new generations. The problem we propose to tackle, based on Arendt, concerns of the possibility of educating in an increasingly averse to authority world, trying to understand Arendt's understanding of authority as responsibility for the world.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 7

1 BASES REPUBLICANAS DA EDUCAÇÃO ... 10

1.1 ESCRITOS POLÍTICOS DE THOMAS JEFFERSON ... 10

1.2 CONDORCET E A INSTRUÇÃO PÚBLICA ... 14

1.3 A PERSPECTIVA ARENDTIANA ... 24

1.4 ―A CRISE NA EDUCAÇÃO‖ ... 31

1.5 A EDUCAÇÃO EM SUA ESSÊNCIA ... 38

2 PERCEPÇÕES ACERCA DA EDUCAÇÃO À LUZ REPUBLICANA DE ARENDT ... 51

2.1 REFLEXÕES EM TORNO DA EDUCAÇÃO COMO O AR QUE SE RESPIRA ... 51

2.2 A DESRESPONSABILIZAÇÃO PELO MUNDO ... 53

2.3 NÃO BASTA SER PAI... ... 59

2.4 ―PROFESSORES, NÃO SE PREOCUPEM EM NOS DIVERTIR‖ ... 64

2.5 ―POLEGARES, ONDE ESTÃO?‖ ... 71

2.6 EDUCAR TEM VALOR... 72

2.7 ―ELOGIO À DISCIPLINA‖ ... 76

3 A AUTORIDADE NA EDUCAÇÃO: CONSIDERAÇÕES COM BASE EM HANNAH ARENDT ... 84

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 96

(8)

7

INTRODUÇÃO

É plausível que em alguns momentos do passado humano a autoridade tenha sido vista como um fato natural, como na criação dos filhos ou na relação do professor com seus alunos, tal qual foi caracterizada na Antiguidade. Com o passar do tempo, enfoques educacionais afirmaram e reproduziram a retórica da negação da autoridade, em nome de relações ditas democráticas e livres1.

O que aqui nos propomos desenvolver, com base no pensamento de Hannah Arendt (1906-1975), filósofa política alemã que figura entre os pensadores mais influentes do século XX, questiona o fundamento aparentemente tranquilo dessa associação, apontando para a problematização arendtiana da questão, avessa ao que se pode entender como uma radical horizontalização de todo e qualquer processo, em especial o educativo, como procurar-se-á demonstrar.

Toma-se como problema central a autoridade na educação, tendo em vista a perspectiva da filósofa Hannah Arendt, interrogando se a educação - tal qual a compreende a autora - pode prescindir da autoridade.

Riboldi (2013, p. 13)2 escreve que república ―se trata dos bens, das coisas que pertencem ao povo, que não são de propriedade particular.‖ Diz que é uma ―forma de governo em que o Estado se organiza com o fim de atender aos interesses de todos os cidadãos; forma de governo na qual o povo é soberano e o Estado governa por meio de representantes investidos em suas funções em poderes

1

Robert (2007, p. 218) aponta que as finalidades da educação multiplicaram-se tanto que ninguém mais consegue achar seu rumo: pede-se, ao mesmo tempo, que o sistema educativo (e consequentemente os docentes) instrua, eduque, socialize, ―coloque o aluno no centro‖, dê chances iguais a todos, faça com que todos tenham êxito, eleve o nível geral e responda aos desafios econômicos, dê uma cultura geral e prepare para o emprego, profissionalize, promova a cidadania, lute contra a exclusão social, reduza a violência, compense certas falhas dos pais e, globalmente, traga remédios aos males sociais que outras instituições não conseguem curar.

2

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distintos, com o pressuposto de visar ao bem comum.‖3

Entre os assim ditos investidos, está o professor, agente fundamental à saúde da república, da qual depende a própria educação, em um processo de mútua implicação.4

Riboldi escreve que ―não há outro caminho fora da política, pois ela representa a vida em sociedade e as normas de convivência‖ e que ―não há República e democracia sem exercício de plena cidadania.‖5

Contudo, trata-se de uma escolha feita pelo homem enquanto coletividade, e não de uma necessidade6. Reitera que ―ainda vivemos numa democracia em processo de aperfeiçoamento‖7

, o que, a bem da verdade, é o próprio espírito do processo democrático, o aperfeiçoamento, o fato de ser sempre problemático e possibilitar a tomada de posição dos envolvidos. ―A democracia verdadeira só existe com cidadãos livres, conscientes, participativos e com o pleno domínio e conhecimento da realidade em que estão inseridos‖, continua Riboldi.8 E afirma que ―o caminho é a educação que

liberta e abre horizontes‖. Quais as lacunas ou desafios desse processo de aperfeiçoamento? A educação seria, direta ou indiretamente, partícipe desse processo? Tudo dependeria dela ou, por constituir-se republicana, mover-se-ia por outras veredas?

Educação é um conceito caro a Arendt, tal como política e liberdade - termos que, na essência, se complementam. E, mais que isso, têm sido amplamente problematizados e examinados. O que terá a filósofa a contribuir nesse sentido é o que essa investigação pretende compreender melhor, relacionando a assim designada crise na educação com a crise da autoridade, seja ela na família ou na escola, tomando um amplo sentido para a relação entre educador e educando.

3

República, democracia e cidadania, Ari Riboldi, Zero Hora, 2013, p. 13.

4 Elias (1994, p. 21) entende que ―há uma gama mais ou menos restrita de funções e modos de

comportamento possíveis. Por nascimento, ele está inserido num complexo funcional de estrutura bem definida; deve conformar-se a ele, moldar-se de acordo com ele e desenvolver-se mais com base nele.‖ No que tange ao professor, isto não é natural, mas se origina em seu contrato com a república, trata-se de função referente a ser um representante da mesma.

5

Idem.

6 ―A política não é necessária, em absoluto - seja no sentido de uma necessidade imperiosa da

natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa - onde cessa o reino das necessidades materiais e da força física. Como tal, a coisa política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, porém, decisivos; é só neles que se manifesta de cheio o sentido da política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa política‖ (Arendt, 2012, p. 50).

7

Idem.

8

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Não é considerada novidade a atenção às ideias de Hannah Arendt também entre os educadores. É possível tomar as reflexões arendtianas como uma espécie de compêndio de tensões cruciais que designaram o século XX e que perduram no mundo hodierno, ainda que agravadas em boa medida.

Esse escrito propõe-se a adentrar à problematização arendtiana em torno da educação, especialmente no que tange à crise da autoridade, tão alardeada em nossa época, partindo do pressuposto aventado por Hannah Arendt de que a origem dessa crise está para além dos muros escolares, dada sua concepção de educação como uma questão eminentemente política.

Para tanto, far-se-á uma pesquisa bibliográfica, cujo embasamento teórico elementar será a obra arendtiana, com destaque para seu clássico Entre o Passado

e o Futuro, coletânea de ensaios na qual Arendt publicou boa parte da temática aqui

exposta. Em consonância com A Condição Humana e As Origens do Totalitarismo,

Entre o Passado e o Futuro constitui o longo ciclo de investigações e reflexões

voltado para a compreensão dos fenômenos políticos que marcaram o século XX e que resultaram no que Arendt postula como a crise do mundo moderno.

O primeiro capítulo do nosso escrito configura-se a partir das bases republicanas da educação, bem como da compreensão política de educação sustentada por Arendt, demonstrando as razões da autora para que fosse possível uma crise da educação. O capítulo que segue constitui-se em ilustrar implicações e a tecer algumas reflexões realizadas em torno da questão da crise educacional, ecoando a problemática aventada por Arendt. Por fim, reúnem-se argumentos a partir das proposições arendtianas referentes ao resgate da autoridade como condição senão essencial, ao menos bastante importante ao enfrentamento da crise em questão.

Diversos dos conceitos a que Arendt recorre para expor sua perspectiva não se encontram elucidados diretamente em um único escrito e pressupõem uma familiaridade razoável com o restante de sua obra. Assim, recorre-se aqui também a alguns dos comentadores e estudiosos da obra arendtiana, tais como Cláudio Boeira Garcia, Adriano Correia, Flávio Brayner, Vanessa Sievers de Almeida, Odílio Alves Aguiar e Alain Renaut, que, cada qual a sua maneira, auxilia na compreensão, além de lançar novas possibilidades de leitura e propor perspectivas diversas.

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10

1 BASES REPUBLICANAS DA EDUCAÇÃO

Inspirado em Arendt, nosso escrito visa compreender qual a relação entre educação e autoridade. Em boa medida, a escola tal qual a conhecemos hoje deve sua origem aos movimentos iluminista a republicano, por sua preocupação com a ―emergência de um homem novo‖, como será exposto. As proposições arendtianas no que tange à educação estão relacionadas ao espírito republicano e às ideias que o conduziram em seu percurso. Caminho que historicamente conta com grandes nomes da filosofia política, entre os quais Barão de Condorcet e Thomas Jefferson.

O capítulo que ora se inicia objetiva fazer esse resgate, não querendo restringir o pensamento da autora aos pensadores elencados, mas procurando relacioná-los com a temática em pauta, à medida que Arendt apresenta-se coerente com as bases republicanas defendidas pelos mesmos.

Embasam o republicanismo de Hannah Arendt pensadores que, antes dela, ocuparam-se em fundamentar um modo de governo ancorado na igualdade e na liberdade entre os cidadãos. Ainda que em contextos diferentes, Jefferson e Condorcet parecem auxiliar sobremaneira a alicerçar ideias a partir das quais Arendt constrói seu arcabouço conceitual, ao menos no que tange às proposições republicanas.

1.1 ESCRITOS POLÍTICOS DE THOMAS JEFFERSON

Na introdução de Escritos Políticos (1964) afirma-se indispensável o conhecimento da filosofia política de Thomas Jefferson9 para se compreenderem as tradições e instituições dos Estados Unidos da América, acrescendo-se que a característica fundamental do credo político jeffersoniano era a preocupação pela liberdade humana. Jefferson acreditava que os homens devem ser livres e a conduta guiada e governada pela razão, e não por autoridades arbitrárias ou tirânicas.

No entender de Jefferson, ―os governos derivam seus justos poderes do consentimento dos governados‖ (Jefferson, 1964, p. 04). Um tirano não estaria em

9

Thomas Jefferson (1743-1823) foi o terceiro presidente dos Estados Unidos (1801-1809) e o principal autor da declaração de independência (1776) daquele país. Foi um dos mais influentes dos ―Pais Fundadores‖ da nação, conhecido pela sua promoção dos ideais do republicanismo nos Estados Unidos. Como filósofo político, foi um homem do Iluminismo, privilegiava os direitos dos estados, um governo federal rigorosamente controlado e apoiava a separação entre Igreja e Estado.

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condições de governar um povo livre10, a república é o lugar daqueles desonerados de qualquer vassalagem e é apropriado apelar ao tribunal do mundo para justificar o que se faz dentro dela.

Jefferson conclama os cidadãos a despertar a fim de que rompam os grilhões, nos quais a ignorância simiesca e a superstição os persuadiram a acorrentar-se, e a colher as bênçãos e a segurança do autogoverno.11 Diz-se preocupado com o restabelecimento do livre direito para o ilimitado exercício da razão e da liberdade de opinião. Ergue-se contra o que chama de ―exemplo de despotismo para o qual não se pode oferecer paralelo nas épocas mais arbitrárias da história britânica.‖12

À sua referência:

Creio que o governo republicano é o mais forte da terra. Creio ser ele o único onde todo homem, quando conclamado pela lei, acorreria para a bandeira da lei e enfrentaria as perturbações da ordem pública como sendo de seu próprio interesse. Diz-se, às vezes, que ao homem não se pode confiar o governo de si mesmo. Pode-se então confiar-lhe a governança de outros? Ou encontramos anjos, na forma de reis, para governá-lo? Responda a história a essa questão.13

Jefferson infere que denunciar todos os abusos ao tribunal da razão pública dispõe-se a ser o mais seguro baluarte contra tendências anti-republicanas. Referindo-se aos acontecimentos que sacodem a Europa, partilhando de seus intentos, escreve que deseja sinceramente uma vitória da Revolução Francesa, que ela possa estabelecer uma república livre e bem-ordenada.14 Aludindo à própria experiência, expõe:

Nós dos Estados Unidos somos constitucional e conscientemente democratas. Consideramos a sociedade como uma das necessidades naturais do homem; que ele foi dotado de faculdades e qualidades para satisfazê-las com a colaboração de outros que têm as mesmas necessidades; que ao ter, pelo exercício dessas faculdades, conseguido um estado de sociedade, é uma de suas aquisições que ele tem o direito de regular e controlar, juntamente, de fato, com todos aqueles que concorreram para essa obtenção, os quais não podem excluir de seu uso ou direção da mesma maneira que esses a ele.15

10

JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos. 1964, p. 06.

11 Ibidem, p. 09. 12 Ibidem, p. 19. 13 Ibidem, p. 39. 14 Ibidem, p. 44. 15 Idem.

(13)

Em afirmação que será retomada por Arendt, Jefferson entende que uma república é um Estado de sociedade na qual todo membro e espírito maduro e são tem igual direito de participar na direção dos negócios da sociedade.16 Cuidar da vida e da felicidade humanas, e não de sua destruição, constitui o primeiro e legítimo objetivo do bom governo, completa.17

Sendo o único objetivo do governo civil formar sociedades, sua administração deve ser conduzida mediante assentimento comum, no sentido de que não pode ser arbitrária. A igualdade de direitos para o homem e a felicidade de cada indivíduo são agora reconhecidas como os únicos objetivos legítimos do governo, expõe Jefferson.18 Afirma acreditar que os habituados a pensar por si mesmos e a seguir a razão como guia são mais fácil e seguramente governados do que aqueles alimentados pela ignorância.19 Diz ter jurado eterna hostilidade a toda forma de tirania sobre o espírito do homem, e enfatiza:

Um governo republicano justo e sólido, mantido aqui, será um monumento permanente e exemplo para alvo a ser imitado por outros países, e participo convosco da esperança e da crença de que eles verão, pelo nosso exemplo, que o governo livre é, de todos os outros, o mais vigoroso.20

Acrescenta, coerente, que um governo pela razão é melhor do que um governo pela força e que o corpo do povo americano é substancialmente republicano.21 Entende que todos os poderes justos exercidos por um governo derivam do consentimento do povo governado e nele fundado. É a visão de que o povo constitui a sociedade ou nação como fonte de toda a autoridade. É seu desejo que ―todo homem e todo grupo de homens na terra‖ possam desfrutar das ―bênçãos do autogoverno‖ e exercê-lo.22

Jefferson revela23 ser axioma em seu espírito que a liberdade jamais poderá estar segura senão nas mãos do próprio povo, mas, também do povo com certo grau

16

JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos. 1964, p. 52.

17 Ibidem, p. 55. 18 Ibidem, p. 57. 19 Ibidem, p. 72. 20 Ibidem, p. 73. 21 Ibidem, p. 74. 22 Ibidem, p. 79. 23

(14)

de instrução. O que cumpre ao estado levar a efeito, com base num plano geral. ―Nossos jovens‖, registra ele, ―são educados no republicanismo‖.24

Milita pela liberdade e pelo saber: onde a imprensa é livre e todo homem sabe ler, redige, tudo está em segurança. Jefferson auxilia-nos a fundamentar o que aqui defendemos à base de Arendt: ―Considero a continuação do governo republicano como absolutamente dependente da educação pública‖.25

Thomas Jefferson também frisa o valor de uma Constituição: pensa de grande importância elaborá-la e declarar os fundamentos a que estarão subordinadas as leis atuais e futuras.26

Defende que os governos são republicanos tão-só na proporção em que corporificam a vontade de seu povo e a executam. Onde se encontra nosso republicanismo, pergunta Jefferson? Não em nossa Constituição, mas simplesmente no espírito do nosso povo, apura. O verdadeiro fundamento do governo republicano está na igualdade de direitos dos cidadãos em sua pessoa e propriedade e em sua administração, emenda. Reafirmando a ideia de referência contínua à Constituição, mas de não dogmatizá-la, tomando cautela para prover uma maneira de emendar quando a experiência ou a mudança de circunstâncias tiver manifestado que alguma parte dela não se adapta ao bem da nação, formula:

Alguns homens encaram as Constituições com religiosa reverência e as consideram como a arca do convênio, demasiado sagrada para nela tocar. Atribuem aos homens da época anterior uma sabedoria mais que humana e supõem o que fizeram impossível de ser corrigido (...). Mas leis e instituições devem acompanhar o progresso do espírito humano. À medida que este se torna mais desenvolvido, mais esclarecido, à medida que se fazem novas descobertas, se revelam novas verdades e se modificam maneiras e opiniões com a mudança de circunstâncias, devem também as instituições progredir e acompanhar a marcha dos tempos. Senão seria o mesmo que exigir que um homem vista o paletó que usava quando menino ou querer que uma sociedade civilizada permaneça sempre sob o regime de seus predecessores.27

É a ideia de que a Constituição deve poder passar por reparos, posto que ―não aperfeiçoamos ainda nossas Constituições de modo a aventurar-nos a torná-las imutáveis‖, e ―porque a terra pertence aos vivos, não pode nenhuma Constituição ser

24

JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, 1964, p. 121.

25 Ibidem, p. 92. 26 Ibidem, p. 104. 27 Ibidem, p. 118.

(15)

perpétua‖.28 Mas Jefferson não abre mão da Constituição, ―resultado de nossas

deliberações, inquestionavelmente a obra mais sábia até então apresentada aos homens‖29

, o que confere a ela grande valor, ainda que de tempos em tempos precise ser revista e não seja infalível. Seu árbitro supremo é o povo da União, considera Jefferson, insistindo: ―malo periculosam quam quietam servitutem‖30

.

1.2 CONDORCET E A INSTRUÇÃO PÚBLICA

Pensar na educação pública em suas origens remete-nos à modernidade e aos teóricos que dela se ocuparam enquanto problemática, procurando lançar certos pilares que a sustentam como uma das instituições fundamentais à vida social. Em sua resenha da obra Cinco memórias sobre a instrução pública, de Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat, marquês de Condorcet31, Piozzi (2009) aponta-a como referência obrigatória no debate travado pelos iluministas e pelos revolucionários franceses sobre o papel do conhecimento na construção de uma convivência humana mais justa e feliz.

Ocupado em examinar questões que a seu ver marcam a história dos ―progressos dos espíritos humanos‖ (Condorcet, 1993, p. 06), ―o filósofo pressentia o advento próximo da época de ouro da humanidade, em que a razão e a justiça irradiariam de luz todos os cantos da terra‖, escreve Piozzi32

. Era o sonho do iluminismo que, embora nunca tenha se concretizado afinal, servia para mover uma considerável soma de forças com vistas aos seus ideais.

28

JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos, 1964, p. 119.

29

Ibidem, p. 130.

30

Ibidem, p. 63. ―Prefiro liberdade com perigos a uma escravidão tranquila‖, cf. tradução do próprio Jefferson.

31

Há consideráveis contribuições de Condorcet (1743-1794) sobre a educação pública. Esse intelectual participou da Revolução Francesa e colaborou para estabelecer as bases doutrinárias do sistema educativo burguês e definir o projeto educativo liberal republicano, baseado nos postulados teóricos e ideológicos da Ilustração e dos filósofos iluministas que influenciaram o pensamento pedagógico contemporâneo. Democracia e liberalismo aparecem fortemente no pensamento de Condorcet, de modo que apenas uma sociedade extremamente desenvolvida e muito bem instruída poderia ter esse tipo de política. A democracia direta seria o nível máximo de perfectibilidade social que o pensador imagina, de modo que toda a sociedade instruída e racionalizada saberia perceber quando um governante iria se tornar um déspota e tiraria do poder ao primeiro sinal disto. Dessa maneira o progresso seria eterno, o despotismo e a tirania nunca voltariam a dominar nenhuma parte do mundo.

32 PIOZZI, Patrizia. Ensino laico e democracia na época das luzes: as ―memórias‖ de Condorcet para

(16)

Mas atentando melhor às condições em que as coisas se dão no decorrer da história, Condorcet percebe que nem o progresso das ciências e artes, nem o estabelecimento da democracia política impediriam o surgimento de novas formas de domínio e desigualdade, se os povos não fossem esclarecidos em torno das leis e regras que governam o ―cosmos‖ das coisas e dos homens, aprendendo a aplicá-las, corrigi-aplicá-las, inová-las de forma inteligente e criativa, lembra Piozzi.33

Eis o espaço para a educação, cujos intentos seriam o de ―ilustrar‖ o homem, independentemente de seu país e religião, e assegurar o exercício efetivo dos direitos políticos e sociais conquistados pelas revoluções e fixados nas leis.

Escreve Piozzi:

As ―memórias‖ de Condorcet expõem seu ideal de uma instrução pública laica, unificada, aberta a todos, explicitando os princípios e fundamentos filosóficos que iriam nortear, um ano mais tarde, o plano de reforma das instituições educacionais francesas, por ele redigido e apresentado à Convenção em nome da comissão encarregada de sua elaboração.34

No entender de Piozzi, o projeto condorcetiano situa-se na perspectiva da formação intelectual, orientada pelo pressuposto de que todas as pessoas seriam dotadas de sensibilidade e aptidão para formar raciocínios complexos e ideias morais, não se atendo meramente a um ensino operativo que servisse de treinamento para executar tarefas.

A defesa do ensino laico, acredita Piozzi, estaria essencialmente vinculada à garantia da independência intelectual dos professores, seja da religião dominante, seja da doutrina política dos governantes, o que está em consonância com o ideal de uma escola pública republicana que não deve ater-se, sob hipótese alguma, em servir a interesses de particulares ou a ideologias de qualquer gênero, posto que se assim o fizesse contrariaria seu caráter de educação cujos ideais repousam na república.

A recusa de todo tipo de treinamento – tônica da resenha de Piozzi – se une à luta pela divulgação de um conhecimento laico e ―esclarecedor‖, que seja instrução pública em vez de disciplinamento de qualquer espécie: ensino humanista, independente e laico.

33 PIOZZI, Patrizia. Ensino laico e democracia na época das luzes: as ―memórias‖ de Condorcet para

a instrução pública, 2009, p. 917.

34

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Com hipóteses e metodologia compartilhadas e postas a público, o conhecimento científico ganharia credibilidade - diferenciando-se do mito, da opinião, da religião, das crendices populares e de quaisquer orientações dogmáticas, escreve Boto35, nessa perspectiva, tratando de Kant, representante do iluminismo a quem podemos considerar uma base indubitavelmente sólida à escola que viria a se estabelecer com o passar do tempo à luz do ideário da modernidade. ―Sem dúvida‖, escreve Kant, ―um homem, para a sua pessoa, e mesmo então só por algum tempo, pode, no que lhe incumbe saber, adiar a instrução; mas renunciar a ela, quer seja para si, quer ainda mais para a descendência, significa lesar e calcar aos pés o sagrado direito de humanidade‖.36

No movimento ilustrado do século XVIII, houve uma proeminência da ação do Estado na matéria educacional. Boto pensa admissível que a instrução era - no mesmo Século das Luzes - um conceito operatório do concerto da civilização que se julgava construir. A sociologia, por exemplo, toma-a como uma das instituições de socialização37.

Como Diderot, escreve Boto, Condorcet compreendia a instrução por seu papel de esclarecimento, como privilegiada estratégia formadora de códigos de civilidade e, principalmente, de registros de civilização. Para comentar o pensamento pedagógico de Condorcet, Boto vale-se da observação de Francisque Vial:

Para ele, democracia e educação se supõem e se chamam. Ele não concebia que a democracia poderia ser outra coisa além do reino soberano sobre os espíritos da ciência e da razão; e reciprocamente ele só concebia que uma educação racional largamente expandida poderia produzir os frutos do amor à igualdade, à justiça e à liberdade, quais sejam, as virtudes democráticas por excelência.38

Aos olhos de Boto, o melhor e mais durável título de glória de Condorcet advém de ele haver sido verdadeiro teórico da educação, promotor da educação laica e da pedagogia democrática e liberal. Assinalando como ideal educativo o próprio ideal republicano e democrático, segundo a autora, Condorcet fixou verdadeiros princípios de educação moderna; ofereceu-lhe uma clara consciência de

35

BOTO, Carlota. Na revolução francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. In: Educação e Sociedade, setembro 2003.

36

KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos, 1989, p. 16.

37 Consoante à definição de Elias (1994), ―repertório de padrões sociais de auto-regulação que o

indivíduo deve desenvolver dentro de si, ao crescer e se transformar num indivíduo único‖ (p. 08).

38

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seus fins e de seu objeto e lhe ofereceu uma doutrina. O ensino das ciências, nesse ínterim, era considerado um antídoto contra os preconceitos, as superstições e qualquer forma de obscurantismo, como o propusera Kant e como inspirava a revolução iluminista.

―Por que não podemos nós remeter nosso presente para esse passado do qual somos todos - para o bem ou para o mal -, em alguma medida, herdeiros?‖, pergunta-se Boto39, apontando para a ideia de que somos tributários desse passado, o que vai ao encontro da perspectiva arendtiana no que tange a compreensão desta acerca da educação40, como veremos adiante. A utopia de uma escola pública de Estado, universal, única, gratuita e laica representa uma proposta cuja origem remonta à revolução burguesa ou liberal, prossegue Boto41, reconhecimento negado por muitos, como se essa adjetivação só pudesse produzir o mal e a exploração onde quer que venha a operar.

Na obra A escola do homem novo, Carlota Boto apresenta ideias e apostas do Iluminismo e da Revolução Francesa fundamentais e basilares na origem e na formatação da escola tal qual a conhecemos hoje. Segundo ela,

Do Iluminismo à Revolução Francesa, vislumbra-se o surgimento de um espírito público no qual a pedagogia passa a ser a pedra de toque. (...) Por tal utopia revolucionária, creditou-se à instrução o ofício de palmilhar a arquitetura da nova sociedade. A escola – como instituição do Estado – deveria gerir e proteger a República. ―Escola, templo da República‖, é a expressão dos atores revolucionários.42

Ravitch43 colabora escrevendo que as escolas são o mecanismo através do qual uma sociedade democrática dá às pessoas a oportunidade de obter alfabetização e mobilidade social. As escolas não podem resolver todos os problemas sociais, tampouco são perfeitas. Mas em uma sociedade democrática, elas são necessárias e valiosas para os indivíduos e para o bem comum.44

39

BOTO, Carlota. Na revolução francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. In: Educação e Sociedade, setembro 2003, p. 74.

40

Dimensão narrativa que engloba e totaliza os conhecimentos transmitidos pela educação, posto que ―somos menos parecidos com as contas do que com os contos‖, segundo Savater (1998, p. 164).

41

Idem.

42

BOTO, Carlota. A escola do homem novo, 1996, p. 16.

43

RAVITCH, Diane. Vida e morte do grande sistema escolar americano: como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação, 2011, p. 20.

44 Sobre a relação indivíduo/sociedade, ―nenhum existe sem o outro, são interdependentes‖, escreve

(19)

Boto reatualiza a plataforma democrática em sua gênese. ―Somos‖, escreve ela, ―tributários do ideário democrático da Revolução que consolida a política burguesa‖.45

É fio condutor de toda a obra supracitada de Boto a ideia de que ―o homem novo deveria ser educado pela pátria e para a nação‖46

, no sentido de que haveria uma mútua implicação entre escola e República nascente. Era a transferência da educação por parte da família ao Estado, ―uma institucionalização governamental do ofício da formação‖47

, que teve em Danton ardente militante:

Quando se semeia no vasto campo da República, não se deve ter em conta o preço dessa semente. Depois do pão, a educação é a primeira necessidade do povo... Caminhemos, portanto, para a instrução comum. Tudo se torna estreito na educação doméstica, tudo se engrandece na educação comum. E eu, eu também sou pai; mas meu filho não me pertence: ele pertence à República. É ela que lhe deve ditar os deveres para que ele possa bem servi-la.48

Considerável é o destaque dado a Condorcet quando a questão é uma

escola para o homem novo, para utilizar a expressão de Boto. Ela indica que

Condorcet ―dá uma nova dimensão para o problema da escola no que concerne à extensão das reais oportunidades para o cultivo intelectual‖.49

No entendimento da autora, o projeto pedagógico condorcetiano configura-se indubitavelmente como a grande herança da Ilustração francesa, na radicalização da perspectiva oferecida às ideias de talento e perfectibilidade. Radicando no interesse público o alicerce da instrução, Condorcet, ainda no período constituinte, discorreria acerca do problema pedagógico em suas Cinco Memórias sobre Instrução Pública, onde escreve:

A instrução pública é um dever da sociedade para com os cidadãos. Em vão se teria declarado que todos os homens possuem o mesmo direito; em vão as leis teriam respeitado o primeiro princípio da justiça eterna, se a desigualdade quanto às faculdades morais impedisse o maior número de homens de desfrutar de seus direitos em toda a sua extensão... É impossível que uma instrução de fato igualitária não proporcione a superioridade daqueles que a natureza dotou de uma complexão mais feliz.50

45

BOTO, Carlota. A escola do homem novo, 1996, p. 17.

46

Ibidem, p. 100.

47

Ibidem, p. 101.

48

Danton apud Boto, 1996, p. 101.

49

Op. cit., p. 118.

50

(20)

Boto afirma - sempre à luz de Condorcet - que o conhecimento adquirido na escola deveria ser mobilizado pelo homem adulto para que este se revelasse capaz de trazer a sua específica contribuição para o suposto progresso do espírito humano.51 A instrução preconizada deveria ser, para tanto, tão igual, tão ampla e tão universal quanto o permitissem as circunstâncias. Ensino ministrado que deveria ser oferecido pelos poderes públicos, sem, no entanto, depender destes. É a ideia da independência da educação em relação aos poderes instituídos, no sentido de que aquela não serviria a fins ideológicos: defesa de uma instrução para todos em um nível básico passível de ser partilhado, sem que este ou aquele grupo venha a instrumentalizar a rede de ensino em razão de objetivos específicos.

Sob esse pano de fundo, ―as escolas primárias compreenderiam a etapa de ensino universal, com o fito de oferecer a todos os representantes da espécie os instrumentos teóricos e os dispositivos conceituais que lhes oferecessem habilidades para a autonomia facultada pela razão‖, acrescenta Boto.52

Trata-se do espírito do Iluminismo. Recorrendo a Löwith53, Boto escreve: ―em homens como Condorcet, Turgot, Saint-Simon, Proudhon, a paixão setecentista pela razão e pela justiça deu origem a um fervor que, na verdade, pode ser chamado ‗religioso‘, apesar de irreligioso.‖

Condorcet é daqueles autores preocupados com a universalidade, e não são poucas suas referências à mesma, uma vez que a formação em pauta pode servir aos mais variados fins. ―Pelo desenvolvimento e multiplicação das ciências‖, escreve Boto, ―Condorcet vislumbra um momento de inflexão na história humana, quando a ambição de ilustrar pudesse ser substituta do anseio de dominar‖54

.

Universalidade que também fora expressa na Primeira Memória por Condorcet, cuja referência base é a noção de perfectibilidade:

Se esse aperfeiçoamento indefinido da nossa espécie é, como eu acredito, uma lei geral da natureza, o homem não deve jamais se encarar como um ser restrito a uma existência passageira e isolada, destinado a se dissipar... ele torna-se uma parte ativa do grande todo e o cooperador de uma obra eterna. Em uma existência de um momento sobre um ponto do espaço, ele pode, por seus trabalhos, abraçar todos os lugares, ligar-se a todos os

51

BOTO, Carlota. A escola do homem novo, 1996, p. 120.

52

Ibidem, p. 121.

53

LÖWITH, Karl. O sentido da história, 1991, p. 96.

54

(21)

séculos, e agir ainda muito tempo depois que sua memória houver desaparecido da Terra.55

Acessar o conhecimento que a Humanidade produziu e continua a produzir permite o privilégio, exclusivo ao humano, de entrar em conexão com uma riqueza tal que torna a função da escola de uma importância considerável, e da qual a República estaria em risco se abrisse mão, como será exposto adiante. Prosseguindo com Condorcet,

Jamais um povo gozará duma liberdade constante e segura, se a instrução nas ciências políticas não for geral e independente de todas as instituições sociais, se o entusiasmo que exciteis na alma do cidadão não for dirigido pela razão, se puder nutrir-se de outra coisa que não seja a verdade, se, ligando o homem pelo hábito, pela imaginação e pelo sentimento à sua constituição, às suas leis e à sua liberdade, não lhe preparais, mediante uma instrução geral, os meios de chegar a uma constituição mais perfeita, de se conferir melhores leis e de atingir uma liberdade mais completa.56

Condorcet insiste na ideia da escuta da razão, em ensinar a escutá-la exclusivamente: ―tal é a marcha que prescreve o interesse da Humanidade, e o princípio sobre o qual deve basear-se a instrução pública‖, reitera ele57

, demonstrando a aposta nas luzes própria ao período e ao espírito que anima suas reflexões. É a adesão ao que ele próprio denomina ―superioridade da cultura‖58

, que exigiria reconhecer a escola como templo nacional, capaz de, no exercício de seu lugar institucional, ―substituir os livros aos charlatães e o raciocínio à eloquência‖59

, irmanando-nos pela superioridade da cultura. Nas palavras de Boto, Condorcet anteciparia a célebre definição de Durkheim acerca do papel da educação: ―uma geração poderia transmitir à seguinte o que recebeu da anterior e o que ela mesma pode acumular‖.60

Ademais, afirma Boto, em Condorcet, pensar a educação é fundamentalmente ater-se ao âmbito da escolarização, já que sua perspectiva pedagógica delegaria uma parcela fundamental da tarefa educativa ao encargo autônomo, e, até certo ponto, espontâneo da família e da vida social como um

55 Condorcet, 1968, p. 182. 56 Condorcet, 1943, p. 37. 57 Ibidem, p. 38. 58 Ibidem, p. 95. 59 Idem. 60 Op. cit., p. 135.

(22)

todo.61 Não é só a escola quem educa, mas ela sim é uma instituição republicana e deve pautar-se sob essa efígie - embora, não se negue, as contribuições familiar e social são deveras bem-vindas, e cada vez mais a escola tem se tornado aquela que tem de dar conta de demandas de outras instâncias que, em princípio, não seriam de sua alçada, ao menos não de forma específica. Condorcet assinalava, assegura-nos Boto, que, em sua concepção,

os progressos do espírito não estariam reduzidos à descoberta de novos conhecimentos, mas consistiriam fundamentalmente na partilha das descobertas do gênero humano por um número cada vez maior de pessoas, o que permitira que a humanidade efetivamente pudesse mobilizar sua sabedoria acumulada para aprimorar suas maneiras de estar no mundo.62

Se Condorcet é claro quanto à interdependência intrínseca entre democracia e educação, como processos em constante interação, escreve Boto, ―a regeneração funda-se sobre um pilar imprescindível: o da instrução pública que, repartindo o conhecimento acumulado, libertaria o povo da pior das servidões: aquela que decorre da pequenez do espírito‖.63

Ainda nesta direção, auxilia-nos Brutti (2007), com sua investigação que objetivou examinar princípios filosóficos e apostas políticas assumidas por Condorcet, além de procurar esclarecer os termos nos quais esses assuntos se relacionaram e orientaram as reflexões do autor sobre a questão da instrução pública. Nas palavras de Brutti,

No cenário de embates que permeia a formação da República Francesa, Condorcet examinou de modo original temas ligados à política e à instrução pública. Suas propostas para a instrução convergem com apostas políticas dirigidas a estimular o exercício das capacidades humanas de discernir e de julgar, a apreensão e desenvolvimento de conhecimentos científicos e artísticos, e a liberdade de questionar e reivindicar direitos publicamente. Em outras palavras, os âmbitos da política e da instrução aparecem atravessados por um discurso que convoca ao exercício público da razão.64 Aos olhos de Brutti, ―a perfectibilidade em Condorcet parece caracterizar a condição humana e as indefinidas possibilidades de sua ação sobre o mundo‖.65

61

Condorcet, 1968, p. 137.

62

Condorcet apud Boto, 1996, p. 145.

63

Ibidem, p. 147.

64

BRUTTI, Tiago Anderson. Condorcet: luzes da razão e instrução pública, Ijuí, 2007, p. 11.

65

(23)

Perfectíveis, estando em devir, cresce a razoabilidade da ideia de que também por isso a escola tem um papel a cumprir. Pode-se deixar o humano a si mesmo, assim como também é possível educá-lo, e as apostas do período em questão deixam claro que as escolhas feitas, tendo por base o movimento iluminista, pautaram-se pela segunda opção. Ademais, convivemos, e eis o compromisso recíproco que temos uns com os outros. Brutti cita Silva, para quem:

a moral condorcetina resultaria de uma instrução adequada, que promovesse o desenvolvimento equilibrado da sensibilidade e da racionalidade. Com isso, ela tornaria a pessoa capaz de se preocupar não apenas consigo mesmo, com o interesse de sua família e de sua nação, mas também com o destino de toda a humanidade. Mas semelhante instrução não poderia estar desvinculada dos avanços dos saberes realizados pela humanidade. Caberia a ela formar pessoas capazes de agenciar moralmente os sentimentos naturais despertados nas mais variadas situações diárias, as regras comuns admitidas coletivamente e as informações recebidas dos mais diversos canais de comunicação.66

E eis que, em se tratando de uma perspectiva republicana, universalizante o quanto for possível, ―cabe à República ampliar a igualdade de direitos e disponibilizar a cada indivíduo a instrução necessária para exercer as funções comuns de homem, de pai de família e de cidadão‖, recorta Brutti de Condorcet.67

E prossegue: ―Condorcet assume um forte discurso contra aqueles que propagam erros, preconceitos ou superstições, os quais, segundo ele, não têm outra finalidade senão formar rebanhos de homens ignorantes e dóceis aos seus interesses e paixões‖.68

A escola estaria incumbida de trabalhar justamente na contracorrente da (de)formação apontada por Condorcet , dada sua função precípua ancorada na República. Brutti insiste na responsabilidade apontada por Condorcet ao poder público, que deve ―oferecer aos indivíduos as condições de adquirir os conhecimentos que a força de sua inteligência e o tempo que dediquem a se instruir possibilite alcançar‖.69

As revoluções que promulgaram a liberdade estão na origem da escola laica, republicana, fruto de processo tal que a torna uma instituição que demanda cuidado maior ainda, posto ser conquista da qual não parece ser uma boa abrir mão. Tomando emprestadas as palavras de Brutti:

66

Silva apud Brutti, 2007, p. 24.

67

BRUTTI, Tiago Anderson. Condorcet: luzes da razão e instrução pública, Ijuí, 2007, p. 29.

68

Ibidem, p. 41.

69

(24)

Consideradas em seus aspectos políticos e filosóficos, as Revoluções Americana e Francesa apresentaram ao mundo propostas de regimes políticos republicanos e laicos, organizados pretensamente em função do interesse geral e da justiça social e conciliando simultaneamente a igualdade cívica dos cidadãos e a máxima liberdade individual. Essas revoluções apostaram, maior ou menor grau, em discursos segundo os quais é possível estabelecer estruturas sociais que favoreçam condições de dignidade aos homens. Por essa via, convicções religiosas ou ideológicas individuais, ainda que socialmente majoritárias e com livre expressão no espaço público, não poderiam ser impostas a toda a população.70

Laitano (2013, p. 02), noutro contexto, aponta para perigos de se decidir passionalmente. Na presente perspectiva, a educação escolar é tributária da razoabilidade, à esteira da colocação de Martins Martins (2012, p. 12), contrária a um espírito particularista. É inaceitável que ao bel-prazer demo-nos o direito de sepultar a constituição cidadã, para usar expressão de Wedy (2014, p. 21), que não pode ficar à mercê do humor dos governantes ou de quem quer que seja, assim como a aula enquanto tal não está para ser ―experimentada‖, por assim dizer, ou feita às pressas também de acordo com as circunstâncias momentâneas ou aquilo que o indivíduo professor julga apropriado à base de posições político-ideológicas, sejam elas quais forem, uma vez que há um currículo à base do qual se deve lecionar, se quisermos falar em republicanismo e democracia.

Pautada pelos princípios republicanos, à escola cabe trabalhar no sentido de rumar por veredas coerentes com esses mesmos princípios, sem comprometer-se com inclinações outras que não lhe sejam próprias, que não emanem de sua condição de instituição republicana por excelência.

Volvendo ainda uma vez às considerações de Brutti a partir da investigação em torno das proposições de Condorcet,

a instrução pública é fundamental para recordar os tempos de escravidão e de desigualdades; para difundir entre as gerações presentes e vindouras os conhecimentos produzidos e os princípios das luzes; e para incentivar a autodeterminação, evitando com isso ambientes propícios ao obscurantismo. O cidadão atua livremente em espaços públicos à medida que possua os conhecimentos necessários para se fazer entender e discernir e julgar. Caso contrário, sua presença pode ficar comprometida à mera escuta e repetição.71

70

BRUTTI, Tiago Anderson. Condorcet: luzes da razão e instrução pública, Ijuí, 2007, p. 61.

71

Ibidem, p. 65. A instrução em questão sintoniza-se ao ideal iluminista classicamente expresso por Kant (1985) em Resposta à pergunta ‗O que é esclarecimento?’: ―Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.‖

(25)

Enfim, ligando o que até aqui se disse a considerações daqueles que ousaram instituir o novo ancorado na razão e na liberdade, insiste-se na ideia de que a escola provém do ideal democrático72. Está inserida em um contexto determinado que não lida bem com a hostilidade aos princípios de liberdade. Imbuída está de uma recusa radical a escolhas mesquinhas e iliberais. Não compactua com proposições cujas procedências sejam inamistosas à Constituição. Necessita estar em conformidade com os princípios do governo republicano, adoção que incumbe processo consonante às exigências do mesmo.

1.3 A PERSPECTIVA ARENDTIANA

Hannah Arendt é uma pensadora política. Alicerçados no posto acima como fundamentação republicana, percorreremos algumas de suas elaborações a fim de situar a crise na educação como um problema eminentemente político.

A filosofia é o ponto de partida e de chegada do pensamento de Arendt, esclarece e lastreia a sua reflexão política, propõe Lafer (1979, p. 18). Ele afirma também que Arendt aprendeu com Heidegger que a relação dos filósofos com a política, desde Platão, é uma relação dilemática, e a tentação de servir à tirania, para impor uma verdade, é grande73.A reflexão da obra arendtiana aponta para a ideia de que em política lidamos com opinião, e não há um ser superior que tenha as respostas todas no que tange aos rumos que se deva tomar enquanto sociedade.

Na Crítica do Juízo Arendt defende, ancorada em Kant, que, politicamente, não existimos no singular, mas coexistimos no plural. Pluralidade que requer o diálogo. Compreender isto impede de procurar impor aos outros a própria verdade - como teria feito boa parte dos filósofos, no entender de Arendt. O espaço público é o espaço da liberdade e da intersubjetividade. Relendo Aristóteles - que interpreta o homem em termos de zoon politikon: o político seria inerente ao homem - Arendt acentua que a política surge não no homem, mas sim entre os homens (Arendt, 2012, p. 24).

72

Alimentamos que Hannah Arendt associa-se aos ideais das revoluções Francesa e Americana, atendo-nos mormente àqueles apresentados no princípio do capítulo e a este em sua conclusão, à luz de Thomas Jefferson, Alexander Hamilton, James Madison e John Jay.

73

(26)

Há, no entender arendtiano, uma ruptura entre o passado e o futuro, o que a leva a procurar compreender o que está na origem dessa cisão. Procura pensar e, assim, convida-nos a pensar também.

Embora essa ruptura tenha origem no fenômeno do totalitarismo, o escrito que apresentamos não intenta tratar detalhadamente de sua análise como faz Arendt em As origens do Totalitarismo, ainda que porção considerável da concepção política arendtiana se dê em oposição a qualquer espécie de totalitarismo, como expressa sua crítica àqueles que pretenderam solucionar o problema da política pelo viés impositivo e não propositivo. Veja-se, por exemplo, a propaganda nazista, que orquestra uma verdade oficial baseada numa ideologia. Há uma certeza, e ela é divulgada, inquestionável, decidida por alguém de antemão, sem consultar as pessoas, que devem unicamente procurar se adequar à mesma.

Arendt recorre a outras exigências ou condições: a partir do que propõe enquanto condição humana, mostra que a palavra e a ação74 requerem um espaço que constitui o mundo político para se converterem em política, espaço que possibilite a liberdade - aquela da polis grega, da participação, do diálogo no plural, que aparecem no espaço público.

Espaço público que é frágil, na compreensão arendtiana, assim como a verdade que informa o diálogo que nele se dá. Fragilidade que exige cuidado: o espaço público corre perigo de desaparecimento, uma vez que tudo é possível. Daí a importância de instituições que o preservem, como a lei, por exemplo. O agir plural, em conjunto, é o que confere poder assegurar aquilo que fundamos e que julgamos importante.

Arendt contrapõe-se criticamente a tudo o que possa ameaçar o agir conjunto, ameaça ao espaço público e à liberdade, reafirmando seu compromisso republicano, por assim dizer. ―Restaurar, recuperar, resgatar o espaço público que

74 ―A diferença decisiva entre as ‗infinitas improbabilidades‘ nas quais se baseia a vida

terrestre-humana e o acontecimento-milagre no âmbito dos assuntos humanos é, claro, existir aqui um taumaturgo e o fato de o próprio homem ser dotado, de um modo extremamente maravilhoso e misterioso, de fazer milagre. No uso idiomático habitual e comum, nós chamamos essa aptidão de agir. É característico do agir a capacidade de desencadear processos, cujo automatismo depois parece muito semelhante ao dos processos naturais; é-lhe característico, inclusive, o poder impor um novo começo, começar algo novo, tomar iniciativa ou, adotando-se o estilo de Kant, começar uma cadeia espontaneamente. O milagre da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes dele e vai continuar existindo depois dele‖ (idem, p. 43).

(27)

permite, pela liberdade e pela comunicação, o agir conjunto (...) é o grande tema unificador da reflexão de Arendt‖ (Lafer, 1979, p. 38).

Ao tratar da política, Arendt não pretende travar uma discussão do atual aparato de conceitos das ciências sociais e políticas, senão fazer uma reflexão sobre o que a política é originalmente e com que condições fundamentais da existência humana a coisa política tem a ver.

Kierkegaard, Marx e Nietzsche são para nós, pensa Arendt75, como marcos indicativos de um passado que perdeu sua autoridade. Foram eles os primeiros a ousar pensar sem a orientação de nenhuma autoridade, de qualquer espécie que fosse. A ―transvalorização dos valores‖ de Nietzsche, afirma ela, foi uma tentativa de se livrar da tradição.76 Fazendo menção a Platão, no que tange à ―superação‖ da tradição, escreve:

O ―bem‖ perde seu caráter de ideia, padrão pelo qual o bem e o mal podem ser medidos e reconhecidos; torna-se um valor que pode ser trocado por outros valores, tais como eficiência ou poder. O detentor de valores pode recusar-se a essa troca e se tornar um ―idealista‖ que estima o valor do ―bem‖ acima do valor da eficiência; isso, porém, em nada torna o ―valor‖ do bem menos relativo.77

Desde o ascenso da Ciência moderna, entende Arendt, cujo espírito é expresso na filosofia cartesiana da dúvida e da desconfiança, o quadro conceitual da tradição tem estado inseguro.78 Não são poucos os questionamentos feitos pelos pensadores e pelo devir histórico à tradição. Arendt dedica páginas a apresentá-los e a pensá-los, partindo, depois, à apresentação de questões atinentes à política, inicialmente com os gregos antigos.

Nessa incessante conversa, os gregos descobriram que o mundo que temos em comum é usualmente considerado sob um infinito número de ângulos, aos quais correspondem os mais diversos pontos de vista. Em um percuciente e inexaurível fluxo de argumentos, tais como apresentados aos cidadãos de Atenas pelos sofistas, o grego aprendeu a intercambiar seu próprio ponto de vista, sua própria ―opinião‖ - o modo como o mundo lhe parecia e se lhe abria - com os de seus concidadãos.79

75

ARENDT, Hannah. Entre o passado e futuro, 1972, p. 56.

76 Ibidem, p. 57. 77 Ibidem, p. 60. 78 Ibidem, p. 67. 79 Ibidem, p. 82.

(28)

A percepção de que a política tem o diálogo por base não é algo dado de antemão. A história, afirma ela citando Vico, é feita por homens, e a verdade, histórica, pode ser conhecida por homens, os autores da história.80

Prenunciando a crise da qual tratará adiante, Arendt pergunta: ―O que mais, além de desespero, poderia ter inspirado a asserção de Tocqueville de que ‗desde que o passado deixou de lançar sua luz sobre o futuro a mente do homem vagueia na escuridão‘?‖81

Seguindo em sua análise de uma espécie de niilismo ascendente, Arendt aponta para a crescente ausência de sentido do mundo moderno.82 Horizonte que ela amplia, ao questionar a exacerbação da ideologia do utilitarismo83. Sob sua perspectiva:

Conhecemos a curiosa ausência de sentido que surge em última instância em todas as filosofias estritamente utilitaristas tão comuns e características da fase industrial da época moderna, quando os homens, fascinados pelas novas possibilidades, pensavam todas as coisas em termos de meios e fins (...). O problema está na natureza do quadro de referência categórico de meios e fins, que transforma imediatamente todo fim alcançado nos meios para um novo fim, como que destruindo assim o sentido onde quer que este se aplique, até que, no decurso do aparentemente interminável questionar utilitarista: ―Para que serve...?‖, em meio ao aparentemente interminável progresso onde a finalidade de hoje se torna o meio de um amanhã melhor, surge a única questão que nenhum utilitarista pode jamais responder: ―E para que serve servir?‖, como colocou Lessing de modo sucinto certa vez.84

Utilitarista, a sociedade também é caracterizada por ser de massas, aponta ela, sendo esta última ―aquele tipo de vida organizada que automaticamente se estabelece entre seres humanos que se relacionam ainda uns aos outros mas que perderam o mundo outrora comum a todos eles‖.85

Perder o mundo comum tem a

80

ARENDT, Hannah. Entre o passado e futuro, 1972, p. 88.

81

Ibidem, p. 112.

82

Ibidem, p. 113.

83

No que tange à ideia de que o currículo precisa conter matérias ditas úteis à vida do estudante após a sua formatura, consta no anexo de Coombs (1976) como resultado da Conferência Internacional sobre a crise mundial da educação, ocorrida em Williamsburg, Virgínia (Estados Unidos), em 1967: ―É de bom alvitre uma palavra de cautela contra o perigo de se adotar uma orientação exagerada no estabelecimento de objetivos ocupacionais. Há certos instrumentos intelectuais básicos e certas informações também básicas que o estudante precisa adquirir a fim de ser um homem instruído no mundo moderno e capaz de formar uma imagem adequada de si mesmo e da sociedade à qual pertence‖ (p. 255).

84

Ibidem, p. 115.

85

(29)

ver com inúmeras mudanças legadas à contemporaneidade, entre elas, argumenta Arendt, o desaparecimento da autoridade.86 Precisamente:

O sintoma mais significativo da crise, a indicar sua profundeza e seriedade, é ela ter se espalhado em áreas pré-políticas tais como a criação de filhos e a educação, onde a autoridade no sentido mais lato sempre foi aceita como uma necessidade natural, requerida obviamente tanto por necessidades naturais, o desamparo da criança, como por necessidade política, a continuidade de uma civilização estabelecida que somente pode ser garantida se os que são recém-chegados por nascimento forem guiados através de um mundo no qual nasceram como estrangeiros.87

Arendt apresenta rigorosamente a função da escola e do professor por meio dessa exposição. Responsabilidade de introduzir os forasteiros ao mundo humano, mundo já organizado em regramentos, tradições, valores pelos quais nos pautamos e aos quais prezamos. É possível questionar esses constructos todos? Sem dúvida. Mas a seu tempo, e não sem antes conhecê-los.

Com a perda da tradição, prossegue, perdemos o fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado.88 Ocorre algo análogo com a perda da religião, diz. Desde a radical crítica das crenças religiosas, nos séculos XVII e XVIII, permaneceu como característica da época moderna o duvidar da verdade religiosa.89

A perda da autoridade como que esfacela certezas. É equivalente à perda do fundamento do mundo, aponta Arendt. Mundo cujo processo de transformação levando-nos a vê-lo como um universo proteico, onde todas as coisas, a qualquer momento, podem se tornar praticamente qualquer outra coisa, aponta. E indica:

Mas a perda da permanência e da segurança do mundo – que politicamente é idêntica à perda da autoridade – não acarreta, pelo menos não necessariamente, a perda da capacidade humana de construir, preservar e cuidar de um mundo que nos pode sobreviver e permanecer um lugar adequado à vida para os que vêm após.90

Arendt parece estar antecipando problemática que será aqui, sob inspiração sua, tratada em seguida. A ideia de que mesmo que muitas mudanças tenham se

86

ARENDT, Hannah. Entre o passado e futuro, 1972, p. 127.

87 Ibidem, p. 128. 88 Ibidem, p. 130. 89 Ibidem, p. 131. 90 Ibidem, p. 132.

(30)

dado no mundo comum, certas instâncias, tais como a educação, que é nossa questão central aqui, não podem abrir mão daquilo que o processo educativo exige, da autoridade, no caso - não como prerrogativa, mas como condição essencial.

Arendt pergunta que espécie de mundo chegou a um fim após a época moderna ter não apenas desafiado uma ou outra forma de autoridade em diferentes esferas da vida, mas feito com que todo o conceito de autoridade perdesse completamente sua validade?91 Aproxima-se da máxima marxiana de que tudo o que é sólido se desmancha no ar. Ou seja, não há nada que escape a esse processo de esfacelamento das referências, ou perda do mundo comum92, como Arendt o nomeia. Aristóteles foi, recupera ela, quem primeiro recorreu, com o fito de estabelecer o governo no trato com os assuntos humanos, à ―natureza‖, que estabeleceu a diferença entre os mais jovens e os mais velhos, destinados uns a serem governados e outros a governarem.93 Daí o estranhamento quanto a, na contemporaneidade, haver uma tendência à inversão de papeis94.

Dos gregos aos romanos antigos, Arendt rememora que no âmbito da política destes, desde o início da República até virtualmente o fim da era imperial, encontra-se a convicção do caráter sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez alguma coisa tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras. Participar na política significava, antes de mais nada, preservar a fundação.95 E as divindades mais profundamente romanas eram Jano, o deus do princípio, com o qual de certo modo ainda iniciamos nosso ano, aponta, e Minerva, a deusa da recordação.96 Precisa ela:

91

ARENDT, Hannah. Entre o passado e futuro, 1972, p. 142.

92

Carvalho (2008), reportando-se a Hannah Arendt, destaca o esvanecimento do ideal ético político da educação devido à diluição das fronteiras entre a esfera pública e a esfera privada. Compromete-se então o ideal maior Compromete-sempre almejado pela educação, que era a participação de um mundo comum e público, para limitar-se à obtenção de competências e habilidades para a produção para o lucro e o consumo; todas as demais esferas da ação laborativa são sufocadas por essa finalidade consumista. Supremacia do labor, da produtividade e do consumo nas metas educacionais esvazia por completo o investimento na formação do cidadão. Opera-se então a substituição do sentido público e político da formação, tal como pleiteado pela tradição humanista que se fizera matriz e princípio dos ideais republicanos, por seu valor de mercado. Não se compartilha mais uma herança cultural pública, mas um capital cultural privado. Os valores culturais passam a ser tratados como meros valores de troca, perdendo toda sua destinação de formadores de sujeitos cidadãos (p. 411-424).

93

Op. cit., p. 157-8.

94 Aquilo que autores têm chamado de ―pedocracia‖, como trabalharemos oportunamente na

sequência.

95

Ibidem, p. 162.

96

(31)

Essa fundação e a experiência igualmente não-grega da santidade da casa e do coração, como se homericamente falando, o espírito de Heitor houvesse sobrevivido à queda de Tróia e ressurgido no solo italiano, forma o conteúdo profundamente político da religião romana. Em contraste com a Grécia, onde a piedade dependia da presença imediatamente revelada dos deuses, aqui a religião significava, literalmente, re-ligare: ser ligado ao passado, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por conseguinte sempre lendário esforço de lançar as fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade.97

É a ideia de reverência à tradição, de não ultrajá-la ou menosprezá-la; antes ao contrário, fazê-la sempre presente. Nesse contexto basicamente político é que o passado era santificado através da tradição, explica. A tradição preservava o passado legando de uma geração a outra o testemunho dos antepassados que inicialmente presenciaram e criaram a sagrada fundação e, depois, a engrandeceram por sua autoridade no transcurso dos séculos, apresenta. Agir sem autoridade e tradição98, sem padrões e modelos aceitos e consagrados pelo tempo, sem o préstimo da sabedoria dos pais fundadores, era inconcebível, completa.99

A verdade, recupera Arendt de Platão, é auto-evidente por sua própria natureza e, portanto, não pode ser patenteada e demonstrada satisfatoriamente. É a convicção platônica de que a verdade está além do discurso e da argumentação (p. 176). Visão revista no decorrer dos séculos. Contudo, é de deixar pensando a atitude crescente de uma espécie de desdém à tradição que grassa em muitos bancos escolares por se estar portando o dispositivo tecnológico do último lançamento ou porque aquilo que se está tentando veicular ―não tem aplicabilidade‖ ou ―é muito antigo‖, ―fora do contexto‖ ou argumento que o valha100

.

97

ARENDT, Hannah. Entre o passado e futuro, 1972, p. 163.

98

Habermas (2012) também toma como ponto de partida à sua reflexão entre direito e democracia o que chama de ―uma sociedade profanizada, onde as ordens normativas têm que ser mantidas sem garantias meta-sociais, em que as certezas do mundo da vida, já pluralizadas e cada vez mais diferenciadas, não fornecem uma compensação suficiente para esse déficit‖ (p. 45).

99

Op. cit., p. 166.

100

Cabe aqui uma referência a Tomizaki (2010), em seu artigo Transmitir e herdar: o estudo dos fenômenos educativos em uma perspectiva intergeracional, em que ele aponta que ―a relação entre diferentes gerações coloca em evidência um dos grandes problemas do homem: a finitude da vida. Nesse sentido, os processos de sucessão geracional, de maneira geral, tendem ao conflito, visto que podem determinar a morte de um dos grupos que se confrontam. Morte física ou simbólica‖. Quanto o professor está vivo diante do aluno desinteressado, em que ―já não cola‖ mais aquilo que ele tem a apresentar, dado que na maior parte das vezes isto também já não está ―vivo‖, no sentido que se refere ao passado? Recordamos também Bueno & Sant‘ana (2011), com seu artigo Os significados da autoridade docente na fala de alunos de escola pública, onde relatam algumas falas instigantes, tais como a simples ordem docente de ―Ler o texto e responder as questões do livro didático‖, que ―os alunos fazem perguntas, mas estas dificilmente dizem respeito às questões da aula. Pedem para sair, trocar de lugar. A professora tenta explicar o assunto. Mas fala para poucos. Há muito barulho na sala e ela precisa gritar várias vezes‖ (p. 08). Ou ainda que, no entendimento dos alunos entrevistados, ―o

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