• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 02 – “A gente teve de se acostumar com aquilo Às penas, que, com aquilo, a

2.6. O destino dos mortos

Apresentei anteriormente os três tipos de morte que podem ter os Karajá, elencados por Schiel (2017). A fim de retomá-los e esmiuçá-los, adiciono a abordagem de Nunes (2016) sobre os possíveis destinos dos mortos, mais especificamente do tàkytàby, de suas almas. Após a morte, há uma dissolução dos componentes que formam a pessoa, que seguem diferentes destinos. O corpo é enterrado no wábádè, sendo este, o cemitério associado a uma determinada aldeia, assim como a aldeia dos mortos (woràsÿ) que existe sob o cemitério(Nunes,2016) e perece. Como vimos, o destino do tàkytàby depende da forma em que a morte se deu. O primeiro tipo de morte relatado seriam as “normais”, por feitiço ou alguma doença:

“Para os comuns, há duas formas. A primeira delas é a morte “normal”, que pode ser de velhice, de doença dos brancos (tori binana) ou de feitiço (kòwòru ♀, òwòru ♂). Até certo tempo, todas as mortes eram imputadas à ação maligna dos rubudỹỹdu

mahãdu, “os matadores”, os feiticeiros. Mas, com o aparecimento das doenças dos

brancos, os Karajá passaram tanto a reconhecer que há outras formas de morte quanto a separar essas doenças dos feitiços, imputando, respectivamente, aos médicos e aos

hàri a capacidade de cura de cada uma delas” (Nunes, 2016:335).

O autor aponta a “novidade” das mortes por velhice, um processo extenso, pois após o adoecimento há o sofrimento e o definhamento e então, a morte. “O tàkytàby de quem assim morre será levado pelos woràsỹ, a coletividade anônima dos mortos, e se tornará um deles” (Idem). Woràsy são os mortos – no capítulo que segue essa entidade será melhor elaborada – por ora, tomemos essa designação. Em resumo, esse primeiro “tipo” de morte, entendida como mais comum, remete às mortes por: feitiço, doença “de branco” ou “de inỹ”, ou menos frequentemente, à velhice. O destino reservado ao tàkytàby desses finados inclui uma infinidade de inversões. Quando a pessoa morre, ela demora cerca de cinco dias para acordar, e aqui referencio a etnografia de Nunes, e a alma da pessoa então acorda – para a morte. E aqui as inversões começam. Os woràsy, os mortos, vêm buscar o recém-morto. Jogam, então, água fria nele e depois quente. Mas ele só acorda um pouco, e só depois a alma do morto acorda mesmo, quando seus parentes levam a sua comida no wábádé, cemitério: “depois de cinco dias, a mãe e o pai preparam uma refeição para levar ao cemitério. Entre essas comidas estão o calugi, peixe, mandioca, café, chá e outros” (Lima Filho, 1994:153). Diferente dos dados etnográficos de Nunes, Lima Filho afirma que são os biu hàri, xamãs do céu, que controlam a viagem do morto, que:

“Eles (os biu hàri) descem o Araguaia até Belém, acompanhados pelos worysy, procuram pela “mãe”, “tia”, enfim os parentes. Lá, ele bebe água quente. Nesta

90 viagem ele demora de dois a cinco dias. No percurso de volta, já quase vivo novamente para a aldeia dos mortos, o hàri o vê diz para a família do morto: - Aõma Iraruki

Ratxireri. (Ainda está embaixo). O morto, acompanhado pelos worysy, sobe o rio

Araguaia em busca de água fria. Neste lugar ele encontra um hàri da aldeia do mortos e pede para ser jogado na água fria. O hàri joga o morto na água fria e este se torna novamente vivo. Nesta transformação o krolahi – um grande sapo- chupa os olhos dos mortos. Esta é a grande diferença entre os worysy e os vivos. Os olhos dos worysy são corroídos, pequenos, e por isso eles andam sempre cabisbaixos e comem com as mãos viradas para trás” (Lima Filho, 1994:153).

Há uma inversão nos dados etnográficos de Nunes e de Lima Filho, em que, em Nunes, primeiro joga-se água quente no morto e depois fria, para ele acordar. E também, outra diferença é que quem recebe o morto não são os woràsy, mas os hàri do plano celeste. No entanto, Nunes defende a dificuldade em entender se são pontos divergentes nos dados etnográficos dos autores ou se se tratasse da dificuldade e da confusão das narrativas dos hàri, em grande medida, sobre as narrativas pós-morte.

Após acordar para o “novo” mundo, agora vivo para os mortos, o novo morto passa a residir junto a seus congêneres, na aldeia que fica no local do cemitério em que foi enterrado65, sendo estes o wabàdè , termo que pode traduzido por algo como “meu lugar” (wa-, possessivo de 1ª pessoa, + bàdè que, nesse caso, tem um sentido de “lugar”, “mundo”)” (Nunes, 2016:337). Assim como nos posteriores registros de minha etnografia, diversos autores apontados por Nunes, como Donahue (1982:162-5) e Lima Filho (1994: 153), apontam que se trata de uma aldeia com casas, iguais às aldeias karajá. Toral identifica que a tradução de wabàdè como cemitério é incompleta:

“Cada pessoa tem o seu wabàdè (wa=meu, nosso/bàdè=lugar), o lugar onde estão enterrados seus ascendentes. A palavra wabàdè foi traduzida de forma incompleta como “cemitério”. Na verdade, ela é cemitério, mas não é um cemitério qualquer, é um cemitério determinado. Dentro de uma mesma aldeia às vezes existe mais de um local de sepultamentos, em geral indicativos da localização de grupos familiares antes de sua reunião numa única aldeia. Descendentes de aldeias extintas que vivem em outras aldeias têm seu wabàdè no local de seus antepassados” (Toral, 1992:212). Toral (1992), traduz então wabàdè como: lado/lugar de meus ascendentes. Embora diz- se que os woràsy fiquem em suas aldeias com seus grupos de parentes, registros etnográficos (Nunes, 2016; Scartezini, 2018) revelam que os mortos acompanham muitas vezes os parentes vivos em suas atividades cotidianas. Nunes também aponta que a definição de Toral pode ser imprecisa, uma vez que wabàdè seja aquele lugar específico relacionado a uma determinada aldeia, onde os mortos daquele lugar são enterrados, como visto acima. Quando a pessoa vai até o mato procurar um remédio, quando os homens vão pescar, e por isso a importância dos

vivos realizarem o xiwè, a reza dos alimentos, ou como ouvi mais em meus registros “antes de comer, é bom dar um pouco comida para o morto”, assim eles a partilham e protegem os vivos. Na maioria das vezes, foram seus parentes quando em vida. Lima Filho (1994) aponta que a solidariedade entre os vivos e os mortos é orientada pelo ato de comer.

“Xiwè é uma espécie de “reza” feita sobre a comida e direcionada, no mais das vezes, aos woràsỹ, os espíritos dos mortos (...). Oferece-se a comida para que eles partilhem. Com isso, eles protegem as pessoas (...). O xiwè é uma injunção curta, que, no cotidiano, se limita hoje, na maior parte do tempo, a um simples hỹỹỹ! com as mãos abertas sobre a comida. A fórmula não é de todo padronizada, mas é geralmente algo como: Kiè-mỹ ini hè! [Sem tradução] Ijõ biràsỹbènỹ! (“Comam um pouco!”), podendo ser acrescida de pedidos específicos como wadèè aruki-mỹ! (“me protejam”), ou

aõbinabinahakỹ waràbi irèhè-mỹ biijàranỹ! (“Afastem de mim os coisas

ruins/perigosas”). No caso em questão, o verbo usado para se referir ao xiwè feito à Xiburè é o nome dele acrescido do verbalizador –nỹ e precedido pelo reflexivo -exi” (Nunes, 2016:152-153).

Schiel (2017) refere-se a esse fim dos mortos como um destino que retém as características negativas do plano terrestre:

“Trabalha-se muito para não obter quase nada da terra. Os instrumentos de trabalho são estragados, podres, furados. A comida é podre. Faz muito frio e a chuva é quente. Há constantes brigas e fofocas, característica do convívio com afins” (Schiel, 2017:249).

Dessa forma, o destino ocupa esses mortos de um pós-morte atordoado e não muito pacífico no wabàdè. Lima Filho (1994) aponta que os woràsy buscam de a todo modo retornar para a aldeia dos vivos, mas são sempre enganados pelos próprios mortos e acabam por retornar ao wabàdè. Retém-se que, pelo que é demonstrado nos dados etnográficos da literatura Karajá, de fato este destino não parece ser “paradisíaco”, como aquele reservado aos mortos que ao morrer, vão para o plano celeste. Passemos a esse outro tipo de morte.

O segundo destino possível para o morto (não há uma ordem pré-estabelecida sobre os tipos de morte) é aquela morte que reserva ao morto ao destino mais aprazível: o plano celeste. Esse destino é reservado não a partir da forma que a pessoa morreu, mas para os xamãs e seus familiares, mas apenas aqueles “profundamente bons”:

“Existem xamãs que em vida estiveram associados ao plano celeste. Isto significa ter usado seus poderes xamanísticos apenas para curar, apenas de forma benéfica. A estes xamãs e, caso eles queiram, a seus entes queridos, é reservado um destino post mortem agradável: subir para o plano celeste. Ali não é preciso trabalhar para ter o que comer. E a “vida” é um eterno fruir festivo: danças com as afins potenciais” (Schiel, 2017:249).

Como já apontado por Nunes, não há na literatura, muitos registros sobre biu wètàky, e o próprio aponta, lembrando de que o plano celeste também possui uma tripartição:

92 “O Ahãna, se a lógica procede, seria o “mundo dos mortos” do Biu. E se considerarmos que o destino póstumo (virar “aõni de verdade”) dos biu hàri é o próprio Biu, teríamos que o Inỹ são, de direito, os woràsỹ dos moradores do alto (embora, de fato, sejam apenas de alguns deles)” (Nunes, 2016:351).

Dessa forma, os woràsy que guiam os novos mortos seriam alguns destes mortos que como destino rumam para o biu wètàky. Assim como a morte é uma qualidade do ahãna, o mundo do meio, aonde estão os vivos, na tripartição do plano celeste, não é diferente: os mortos vão para, segundo narra Schiel (2005), este lugar idílico que seria o biu ahãna. Infelizmente não disponho de mais detalhes sobre estes destinos mortis para aprofundar a questão desse lugar reservado aqueles que tem uma “boa morte”.

O último destino pós-morte, e que mais nos interessa, por se tratar do destino reservado aos suicidas, terá espaço no capítulo que segue, acompanhando as etnografias a respeito. Passemos então para a discussão do suicídio karajá, que proporciona ao inỹ uma “má morte”.

Capítulo 03 - “E o rio-rio-rio, o rio - pondo perpétuo. Sou doido? Não. Na nossa casa, a