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Sobre a terceira margem: o destino dos hurè – suicidas

Capítulo 03 “E o rio-rio-rio, o rio pondo perpétuo Sou doido? Não Na nossa casa, a

3.4 Sobre a terceira margem: o destino dos hurè – suicidas

E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado.

O eu-lírico acima conseguiu romper, ao que parece, a relação instável com seu pai e mesm sentindo-se tomado pela culpa, cessa a tentativa de seguir o mesmo destino rumo à terceira margem, mas e seu pai, qual seu destino? Uma vez que ele não vai em definitivo e nem

volta, mas perturba e representa um risco. Afinal, qual o destino do huré?93 No capítulo anterior, falei da destinação dos mortos por morte “normal” de doença para o wábádè ou dos xamãs e seus familiares, e aqueles “profundamente bons” para o plano celeste. Deixei para esta última sessão a reflexão sobre o destino daqueles que suicidaram-se ou, como vimos, são vítima de feitiço e cometem um ato contra si próprio, que em realidade, tratando-se desse último surto ao longo das duas últimas décadas, configura-se em homicídio.

Voltemo-nos ao plano terrestre94, onde opera a consanguinidade e também as mais diversas formas que pode ter a alteridade. Pensando nos mortos enquanto representantes de uma alteridade radical, e no caso dos huré, não se aproximando sequer de uma situação de uma possível afinidade, uma vez que aqui, o risco máximo aos vivos é reproduzido: é preciso negá- lo, esquecê-lo controladamente. Visto que os pensamentos ameríndios apontam, de modo geral, para um assemelhamento da morte à afinidade, como duas problemáticas caras aos vivos.

“Não é possível separar o problema da afinidade do problema da mortalidade, sobretudo atribuindo ao primeiro uma primazia sociológica ou política diante da evanescência ‘cosmológica’ do segundo. A morte e a aliança são condições conexas do socius, como atestam aquelas utopias ameríndias que, negando uma, negam conjunta e necessariamente a outra” (Viveiros de Castro, 2002:171).

Como já visto, após uma morte violenta, o morto transforma-se em kuni e no pior dos casos (o da morte), esse estado intensifica-se para huré. O wábádè, destinado aos woràsỹ, já possui a inversão negativa da aldeia dos vivos, e para os kuni, sua aldeia, parece intensificar as características negativas já presente na morada dos woràsỹ. Os huré, sempre à procura de seus parentes vivos, seja até mesmo para assombrar e assustar, não realizam relações sexuais entre seus pares:

“Não há relações sexuais entre os assassinados. Segundo Rodrigues, eles não seriam nem consangüíneos, nem afins, ficando sozinhos. Os objetos (casas, canoas, pás, enxadas) são imprestáveis, furados, apodrecidos. Não há fogo nem roça, a carne é crua e vermelha, assim como a água dos rios, igualmente vermelha. A chuva é muito quente, queimando os assassinados ao cair e, não obstante, eles passam muito frio. Os assassinados estão sempre brigando e lutando e ficam por isso muito cansados. Eles

93 Faço uma alusão do “pai” do conto de Guimarães a imagem do huré, com base no perigo representado por

ambos.

94 Na literatura específica, as autoras e autores (Pétesch,1992,2000; Toral,1992, Lima Filho,1994; Schiel,2005;

Rodrigues, 1993 e Nunes, 2012,2016), adentraram de forma detalhada a tripartição cosmológica Karajá e os diversos planos, produzindo assim uma análise pormenorizada da localização de cada plano, especialmente as divisões, do ahanã, plano terrestre. Reconheço a vasta bibliografia e reafirmo aqui não ser o espaço de atualização ou discussão pormenorizada dos planos cosmológicos Karajá, por esse objetivo, não aprofundo as reflexões nesse sentido.

128 perpetuam o estado em que morreram, derramando sangue, tendo todas as feridas abertas” (Rodrigues, 1993: 408-409 apud Schiel, 2005:64)95.

No trabalho de Nunes (2016), assim como nas falas dos inỹ de Ibutuna, fala-se muito do “mato”, como um lugar em que estão os aõni e kuni:

“O ibràra é, ainda, local de moradia de uma série de outros seres, visíveis apenas aos olhos dos hàri. Todos estes são bàdèrahy làdu ♂, bàdèrahyky làdu ♀, “moradores do mato”. O bàdèrahy é o “mato”, no sentido de lugar inóspito, inabitado; pode ser um varjão, uma mata, um lugar de vegetação bem fechada (uma “macega”). Entre seus habitantes, além dos animais (iròdu iròdu, animais terrestres), estão os aõni. Alguns deles são hàrina, ou seja, eles atacam as pessoas que eles desejam que se tornem xamãs. Outros são donos (wèdu) de algumas espécies animais. Já outros são ainda mais perigosos, podendo inclusive matar os Inỹ: este é o caso do Ilabièhèkỹ ou

Aõnihikỹ, “o grande avô” ou “o grande aõni” (Nunes, 2016:334).

Embora o autor refira-se, nesse trecho, exclusivamente aos aõni, mesmo os huré não habitando exclusivamente o ibràra, pode-se depreender que esses tipos extremados de kuni, também, de alguma forma, o povoam, mesmo que indiretamente e temporariamente. O mato é onde costumam realizar seus ataques, até porque habitam as proximidades da mata. Estes não fazem a viagem pelo rio, não se transformam-se em woràsỹ. Os huré habitam a hurè mahãdu

hãwa, “aldeia dos huré”:

“A aldeia dos hurè fica afastada dela rumo à ibràra, também sob a terra. Como me disse um homem, “é por isso que no ibràra tem muito hurè”. As pessoas com quem conversei sobre o assunto, porém, não souberam me dizer se, assim como entre os Javaé, existe um rio que separa as duas (rubuo [??] mahãdu bero, “rio dos mortos”; RODRIGUES, 1993: 404; 2008b: 255) (...)O morto tenta enganar sua mulher, fingindo que estava vivo. Quando ela descobre, foge com suas duas filhas. O hurè a vê indo embora e a persegue, correndo de ponta cabeça, com as mãos no chão e as pernas para o alto. Por fim, ele arranca e come o fígado das três, matando-as. Essas duas aldeias dos mortos, a dos woràsỹ e a dos hurè, apesar de se localizarem sob o chão, estão no Mundo de Fora, kaa suu-ki, “neste chão”, e não no Fundo do Rio ou em algum outo tipo de “nível inferior” (como sugere RODRIGUES, 2008b)” (Nunes, 2016:339).

Estendo em sua dissertação, em que há a um complexo de associações cromáticas aos cosmos karajá pela autora, as análises do destino dos huré, Schiel (2005) , o hurè mahãdu hãwa seria:

“O extremo imaginável da alteridade. E é a esta concepção que encontramos a cor vermelha associada, seja em seus rios rubros, seja em sua alimentação, que é constituída de carne crua. No outro extremo está a aldeia do céu, descrita como perfeita. Ali os alimentos, inclusive da roça, são muito bem cozidos e a água é límpida, transparente. Rodrigues mostra que a cor branca é associada tanto ao céu (biura: céu branco) quanto ao alimento bem cozido” (Schiel, 2005:66).

95 Infelizmente não consegui o acesso à dissertação de Patrícia Rodrigues: “O Povo do Meio. Tempo, Cosmo e

Gênero na Ilha do Bananal”, de 1993, sobre os Javaé, entendendo a importância da obra e as comparações, nesse aspecto específico, com os Karajá, utilizo suas marcações através de outros autores.

Dessa forma, a autora observa que não haveria fogo e nem roça na aldeia dos assassinados e assassinos, que também é um lugar de escuridão profunda, onde os hurè sentem muito frio e a carne, seu único alimento, está sempre crua. Lembrando de seu oposto, o plano celeste, onde: “Os alimentos seriam super cozidos, a temperatura é ideal (não se fala em calor ou frio) e seria, ainda, descrita como muito clara, seus habitantes podem enxergar muito longe” (idem).Assim, esse seria o destino que representa o máximo das características negativas à uma pessoa. Um destino, no mínimo, digno de horror e evitação dos inỹ, em vida.