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Capítulo 02 – “A gente teve de se acostumar com aquilo Às penas, que, com aquilo, a

2.1 A morte para os vivos

2.1.1 O luto, os rituais e o enterro

O período do luto necessita de especial atenção dos parentes vivos. É um momento após uma abertura dolorosa e perigosa: uma abertura entre mundos49. Assim como nos tempos míticos, quando o mundo era outro e o que se compreende por realidade estava em formação, a morte amplifica e potencializa uma abertura entre o mundo dos vivos e suas crenças e os rituais devem ser capazes de neutralizar ou controlar os perigos neste período, de encaminhar cada agente aos seus respectivos enlaces relacionais.

Carneiro da Cunha (1978:42) aponta que os costumes mortuários reconstituem relações alteradas por uma morte, não apenas as dos viventes com seus mortos, mas também a relação dos viventes entre eles. Desta forma, entre os Krahô, o funeral reserva uma função diversa a cada grupo de parentes envolvido. É obrigatório para os consanguíneos, e, de certa forma, contratual para os afins. A duração do período do luto varia e quem a determina são os consanguíneos do morto, podendo haver ou não uma festa que o encerra, dependendo do prestígio do morto e das possibilidades de realização da família. É complexa a prescrição do luto para o afim do morto, uma vez que existem várias prerrogativas que definem sua duração. Quando se trata de um viúvo, o casamento é visto como um contrato entre marido e família da esposa, assim, o viúvo não está liberado do luto para a contração de outro casamento até que resolva seu débito com seus sogros e sua família. O luto dos afins está sujeito ao recorte de gênero, dependendo de se a esposa era virgem antes da união, se tiveram filhos no casamento, entre outros fatores que influenciam a dívidas com os sogros, aumentando-as ou diminuindo- as significativamente. Tratando-se da morte de homem, a viúva deve mudar-se com seus filhos para a casa de sua sogra, trata-se de uma virilocalidade provisória. Entre os Krahô, o esforço da viúva em respeitar o luto e manter a castidade é respeitado e até mesmo recompensado com consideráveis presentes. Quando o morto não possui consanguíneas suficientes ou dispostas a

49 O que ocorre é que nesse momento a “abertura” se torna ainda mais intensa, o que significa que mesmo no

cotidiano, podem ocorrer “aberturas” entre planos e seres, sem a necessidade da ocasião de um ritual, por exemplo.

70 acolher a viúva, ela é logo dispensada do luto, sendo que, de modo geral, o luto das mulheres enviuvadas dura menos (Carneiro da Cunha, 1978:52). O corpo da pessoa deve ser velado na casa de sua mãe ou família materna. Não importa que o morto tenha construído uma família e passado boa parte de sua vida em outra casa ou aldeia, ainda assim os rituais funerários devem ser feitos na casa de sua mãe.

Durante o luto, os enlutados ficam à margem da sociedade em um período que Carneiro da Cunha (1978) define como reajustamento. É importante a participação de toda a aldeia durante o período de luto, o que também diz respeito à influência do morto naquela coletividade. Dessa forma, os papéis funerários são distribuídos de acordo com as relações de proximidade e distância, uma vez que os consanguíneos devem ter cuidado e não podem entrar em contato direto com a substância do morto, pois afetado pela relação aflorada, está vulnerável a atração da presença do morto que pode também o levar consigo. O ideal é que outra espécie de alteridade, um outro que não participe daquele grupo familiar, enterre o morto e o alimente. Há consanguíneos que o fazem, e são interpretados como sovinas, pois os trabalhos funerários devem ser pagos, assim para que não se divida os bens, o enterro é feito entre a própria família. Entre os Krahô há o segundo enterro, as exéquias definitivas, assim como os Kayapó, embora, assim como os Karajá, não realizem mais. No primeiro enterro, ainda há sangue, a força vital do morto ainda está ali e não foi neutralizada, por isso deve ser enterrado longe e deve-se ter cuidado com que manipula seu corpo. A força vital está ligada à carne, ao sangue e à água, que estão juntos e que denotam movimento, que é o mesmo que vida. Após o primeiro enterro e passado o tempo devido, em que o organismo cessa a sua existência e a força vital se exaure (Carneiro da Cunha, 1978:109), desenterra-se os ossos do morto, que sem a presença de sangue e do perigo pode até mesmo ser enterrado na casa onde vivia. Ossos são como a personagem que não pertencem ao indivíduo, mas à sociedade, por isso podem ser socializados, enterrados no centro da praça ou nas casas, sendo o sangue o indivíduo biológico. As crianças não costumam ter suas segundas exéquias, pelo fato de seus “ossos serem moles”, ou seja, no âmbito social sua personagem também não foi “endurecida” o suficiente.

Como observado brevemente no caso Mebengokré-Xikrin, as lógicas do enterro de adultos e crianças possuem distinções, como os caminhos pós-morte, em que os parentes mortos vão ao encontro da criança para guiá-la e garantir sua passagem adequada. No entanto, como aponta Cohn (2010), as diferenças possuem um limite que fica claro na pintura e ornamentação da pessoa morta para seu enterro: neste caso a alteridade entre morte e vida é prevalecente, as

caracterizações de crianças e adultos são as mesmas. Considerando que no contexto Mebengokré-Xikrin a ornamentação corporal é um poderoso mecanismo para a promoção e comunicação da marcação de diferença, incluindo de idade, é patente a marcação majoritária entre a dualidade “nós” e “outro”.

Entre os Xavante, há também uma reclusão após a perda de um parente, as mulheres pausam a confecção de artesanatos e cuidados domésticos e os homens não caçam. Assim como entre os Krahô, é importante que a aldeia inteira se solidarize com a família enlutada. O silêncio predomina e as autoridades como o cacique devem prestar apoio a família, lamentando conjuntamente sua perda. O corpo pode ser ornamentado com cascas de madeira, prevalecendo a preferência de um “outro”, alguém de um clã oposto que deve cuidar do enterro, evitando o contato direito dos parentes com o morto. O choro ritual predomina durante o enterro, que deve ser realizado em até doze horas para que haja um espaço entre o corpo e a terra, permitindo a passagem entre mundo, a terra encobre o morto aos poucos e uma madeira deve ser colocada para a proteção do corpo. Encerro assim esta breve passagem sobre as exéquias e os rituais pós- morte, fornecendo mais que um quadro comparativo, um caminho inicial para as futuras relações que a pesquisa irá gerar.