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5 PODER E AS “ARTES DE FAZER” NO COTIDIANO CIRCENSE

5.3 Do “fazer a praça” à estreia

5.3.1 Destinos incertos

Os circos pesquisados ficam, em média, duas semanas em cada cidade ou bairro. Esse período é determinado pelo número de pessoas que vão aos espetáculos, podendo ser inferior a esse tempo médio caso os ganhos sejam menores que os esperados. Leva-se também em consideração na determinação do tempo de permanência a disponibilidade de mão de obra para trabalhar na mudança do circo, pois havendo poucos funcionários contratados opta-se por ficar duas semanas. Isso evita desgaste excessivo dos trabalhadores. No entanto, dependendo da necessidade financeira dos proprietários o circo é mudado de cidade todas as semanas com vistas a arrecadar mais dinheiro. Com isso, aproveita-se somente o rendimento gerado pela primeira semana, sempre mais elevado que o da segunda.

Apesar da existência de um planejamento em que são conhecidos os dois ou três próximos destinos o itinerário pode ser alterado a qualquer momento, ao tempo em que a expectativa de lucratividade seja afetada por qualquer motivo. Mesmo com tal alteração, existem delimitações geográficas às quais os circenses estão condicionados, pois o acúmulo de conhecimento sobre determinadas regiões lhes beneficia mais que se fossem em busca de outras “praças” ainda não visitadas.

Por isso, a escolha do itinerário não é aleatória, como revela o fragmento discursivo a seguir: “[49] a visão que eu tenho é o seguinte: primeiramente conhecer a região. Conhecer aonde

você tá. Se você não conhece, dificulta muito as chances [...] de você acertar” [C01]. O

trecho “conhecer a região. Conhecer aonde você tá” denota que a atividade circense de “fazer a praça” requer conhecimentos prévios sobre a região. Caso não tenha esse conhecimento

“dificulta muito as chances [...] de você acertar”. Prova disso, é que em um passado recente,

um dos integrantes de uma das famílias dos circos pesquisados tinha o território nacional como limite para suas atividades, mas suas lembranças não eram boas, tendo em vista a baixa arrecadação.

Antes mesmo da montagem de um circo, o primeiro passo é ir à prefeitura solicitar ao prefeito, por meio de requerimento específico, a realização do espetáculo circense. Nesse documento, deve-se informar o período de realização do evento e os dados da empresa. No entanto, o pedido não torna a ida do circo para a cidade uma obrigação, muito porque também não é pago qualquer valor para protolocar o pedido. Essa facilidade permite aos secretários impetrarem vários requerimentos em quantas cidades acharem necessário. Feito o pedido e sendo ele aceito, outros circos ficam impedidos de serem armados nas datas estabelecidas nesses documentos.

Apesar disso, as observações mostraram que um circo pode se passar por outro que obteve a licença, sendo isso facilitado pela diferença existente entre o nome da pessoa jurídica e o nome fantasia usado pelas empresas circenses. Observa-se, a partir disso, como os secretários, aproveitando-se da falta dessa característica criam “espaços” para subversão, como elucida Certeau (2012a). A despeito dessa possibilidade, alguns secretários estabelecem entre si relações mais éticas que evitam essa prática. Nesse último caso, em vez de disputas, há a negociação do itinerário dos circos entre os secretários de cada um deles, promovendo com isso uma melhor dispersão geográfica das empresas circenses, no entanto, incerta.

Dentre as cidades presentes na região de atuação dos circos pesquisados, sobre as quais os secretários têm conhecimento, a característica mais importante que faz uma delas ser incluída no itinerário é a existência de terrenos favoráveis à instalação dos circos. Isso se dá pelo fato de em muitas delas haver grande ocupação da área urbana, o que dificulta reunir em um só lugar os requisitos para implantar a arquitetura circense, sendo o principal deles espaço suficiente, e atrair o público, ou seja, que não diste muito das aglomerações urbanas. Desse modo, quando o secretário chega à cidade para “fazer a praça” ele mobiliza a sua rede de contatos para conseguir um terreno previamente identificado. Caso se trate de um terreno público o mesmo é solicitado à prefeitura. Essa última opção é mais desejada, pois assim a gestão do circo tem certeza que ficará livre de pagar por sua locação.

Porém, não havendo terreno público disponível ou sendo a sua cessão negada, o secretário, nesse caso ocupante do “lugar do outro” nas relações de poder segundo Certeau (2012a), procura por proprietários de terrenos privados. Nesse caso, tenta-se primeiro obter a gratuidade para a utilização da área, usando para isso o estigma de que os circenses, tomados de maneira geral, sejam pessoas desfavorecidas financeiramente. Se a gratuidade não for

possível, paga-se pelo terreno ou procura-se por outra “praça”. Os valores cobrados dos circos são variados e conforme as observações partem de R$ 500,00, podendo alcançar até R$ 2.000,00 por temporada.

Dados os valores normalmente cobrados pelos terrenos alguns secretários em vez de locação optam pela invasão desses terrenos, porém, essa prática não é comum, e só acontece quando um circo com limitação financeira encontra dificuldade em obter áreas gratuitas. Por força da sequência de “praças” ruins alguns grupos circenses chegam às cidades financeiramente desestabilizados e não podem pagar pelos terrenos. Em face dessa dificuldade, observada em dois dos pesquisados, pode-se decidir excluir do itinerário as cidades em que os secretários não conseguiram terrenos de forma gratuita.

Às vezes faltam aos circenses opções de terrenos e isso os obriga a armar onde normalmente não armariam, como pode ser visto nos fragmentos discursivos a seguir: “[50] nós arrumamos lugares, mas os terrenos tava tudo fechado para festa na cidade, aí a prefeitura não quis

arrumar. Aí tivemos que montar aqui, às pressas” [B01] e; “[51] fui obrigado a armar aqui

porque não tinha outro jeito” [B03]. Subjaz às locuções “nós arrumamos” e “prefeitura não

quis arrumar”, presentes no fragmento [50], a ideia de que a personagem “prefeitura” ocupa

um “lugar” de poder na cessão de terrenos. Mesmo tendo encontrado um terreno, B01 revela que não foi permitido pela personagem armar o circo. Como consequência, tiveram que montar o circo “às pressas”, ou seja, como medida emergencial noutro terreno. Tal medida é corroborada por B03, quando afirma no fragmento [51] ter sido “obrigado” a armar o circo no local onde estava localizado no momento da entrevista.

A locução “não tinha outro jeito”, presente no último período do fragmento [51], é elucidativa do papel das prefeituras e de como elas organizam o uso do espaço urbano. Na relação com os circenses essa personagem localiza-se naquilo que Certeau (2012a) chamou de “lugar do próprio”. Estando assim localizada, ela consegue gerir também o comportamento dos circenses, limitando-os a atuarem em áreas determinadas por ela. Sendo assim, como evidenciou B03 por meio da seleção lexical “obrigado”, e tendo em vista as colocações de Foucault (2012), a prefeitura limitou o campo da atuação circense, tornando a procura por outra área para armar o circo previsível e de acordo com sua vontade.

A escolha de uma “praça” depende também de quando um circo esteve nela pela última vez. Em caso de contabilizar pouco tempo, deve-se evitar armar o circo nela. Os circenses costumam dizer nesses casos que a “praça” está “cansada” [Diário de campo, 18 de março de 2015]. Sendo assim, “[52] tem que esperar aí no mínimo, no mínimo um ano e meio, dois pra o povo sentir saudade de circo” [R01]. O léxico “saudade” revela ter decorrido o lapso temporal descrito pelo enunciador, ou seja, quando a ida do circo para determinada “praça” gerará o rendimento que justifica armar o circo nela.

Pior que a frequência de um circo na cidade nos últimos tempos, ou seja, sem que a “praça” esteja com “saudade” é se, além disso, o circo anteriormente presente for considerado pior que aquele que está por vir. Assim, “[53] não adianta você entrar atrás de um circo se o circo for pior do que você. Você vai se danar” [C01]. A expressão “entrar atrás” é usada pelo enunciador para se referir à chegada de um circo logo após outro ter saído de uma “praça”. No entanto, isso só será um problema se o circo for considerado “pior”. Basicamente, um circo é considerado pior que outro em termos de espetáculo. Nesse caso, armar o circo em uma cidade ou bairro onde havia um circo com espetáculo pior pode representar insucesso financeiro, sendo isso inferido através da expressão “se danar”.

Outro fator condicionante na determinação do itinerário circense é a programação de festas regionais. Talvez esse seja o mais importante deles, pois os circenses alegam o desprestígio do evento circense diante dos demais. Em alguns casos, a instalação do circo é expressamente vetada por atores públicos, normalmente pelas prefeituras, por consequência de a previsão de sua chegada coincidir com a realização de alguma festividade. Mais restritivo se torna se a festa for organizada por autoridades locais, como se poderia dizer de líderes espirituais. Nas pequenas cidades, as preferidas pelos circos pequenos, esses atores sociais exercem grande poder, não sendo possível opor-se diretamente aos seus interesses como revela trecho abaixo extraído do diário de campo.

Quem nos atendeu na prefeitura foi uma conhecida do circense que eu acompanhava e que também quis saber sobre a chegada do circo [...], pois ele não poderia ser armado antes da realização da festa do padre. Essa foi uma condição estabelecida antes de qualquer acordo o circense e a prefeitura. A festa do padre não podia contar com a presença do circo na cidade, tendo em vista a concorrência por público que se estabeleceria entre os eventos. [...] Não tinha outra opção, se não acatar tal exigência. [...] Além da festa do padre, também houve grande preocupação com a permanência do circo na cidade durante o carnaval. Foi solicitado, assim, que o circo fosse embora antes do início das festividades que marcam o período de carnaval,

também para não concorrer em público com ele [Diário de campo, 14 de janeiro de 2015].

No caso acima, a exigência em relação à chegada do circo seria cumprida, pois a prefeitura só liberaria o alvará de funcionamento após o encerramento das festividades. No entanto, mesmo o alvará tendo prazo de vigência, ou seja, com data determinada para que o circo deixe de oferecer espetáculos naquela cidade, havia o interesse do secretário em não deixar a cidade antes do carnaval. Dessa forma, ele iria descumprir um acordo feito com a prefeitura e disse que estando na cidade tudo mudaria, deixando-se entender que iria subverter as regras estabelecidas no acordo informal. Observa-se, nesse caso, que enquanto o circo não está na cidade o secretário atende às exigências feitas a ele, agindo, assim, convenientemente de acordo com o poder que determina, naquele momento, a atuação da empresa circense. À medida que passa a ter contato com a sociedade local é provável que o secretário consiga reunir elementos que o permitam ficar com o circo armado mais tempo, além daquele estabelecido previamente.