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Tessituras metodológicas no cotidiano de pesquisa

4 PERCURSO EMPÍRICO

4.2 Tessituras metodológicas no cotidiano de pesquisa

A realização desta tese foi pensada ensejando espaços para a criação e não exclusivamente para a aplicação de uma sequência de instrumentos investigativos definidos previamente. Sendo assim, apesar da adoção antecipada de algumas medidas metodológicas, deixei-me ser levado pelas surpresas do cotidiano de pesquisa, o que fez deste trabalho uma “bricolagem” no sentido dado por Denzin e Lincoln (2006). Dessa forma, ao longo dos dias de pesquisa, estratégias de investigação foram abandonadas em virtude de o cotidiano ter se apresentado sinuosamente, fadando aquelas concebidas previamente à inadequação em relação aos objetivos estabelecidos, estando sua completude presente em minha primeira experiência empírica. Sendo assim, relatarei a seguir como situações e métodos se relacionaram na constituição das mudanças investigativas desta tese, baseando-me apenas na experiência inicial.

Essas mudanças deram a este trabalho uma organização peculiar, fortemente entrelaçada com o cotidiano da pesquisa e, ainda, com a perspectiva pós-estruturalista. A princípio eu desejava fazer uma etnografia em apenas um circo, convivendo com circenses por um período estimado em seis meses, pois isso me parecia ser adequado para eu conseguir interpretar os significados que eles davam às suas ações e, assim, conhecer em profundidade um cotidiano circense. Com esse intuito, escolhi um circo cujos proprietários eu já havia conversado em pelo menos duas oportunidades em virtude da pesquisa da qual participei com os meus colegas do Neos, tendo sido fundamental para essa escolha a receptividade com a qual fui recebido anteriormente. Escolhido o circo era preciso negociar a minha entrada no campo.

Com esse intuito fui ao encontro das pessoas do circo. Como nas outras vezes, fui bem recebido, mas me chocou saber que residiria no circo durante seis meses como havia planejado. Toda a organização social e estrutural era bastante estranha, causando em mim, de fato, um enorme estranhamento. Conversei um pouco com um dos donos do circo sobre os objetivos da pesquisa e meio sem entender exatamente a minha proposta concordou com a minha presença para realizar o estudo (talvez tenha se perguntado: O que faz um administrador estudar circo?). Salientei, ainda, a necessidade de eu ter alguma função no circo, pois isso permitiria me envolver mais no cotidiano e, consequentemente, com os sujeitos de pesquisa para entender suas ações em meio às relações de poder. Curiosamente, ele não me queria no circo como alguém improdutivo, partindo dele também a necessidade de eu fazer algo para beneficiá-los na produção do espetáculo circense. Sendo assim, eu deveria ser “útil”, ou seja, deveria participar e não somente observar.

Perguntado por mim sobre onde eu poderia morar durante a pesquisa ele disse para eu ficar junto aos funcionários, mas naquele momento achei melhor ter mais privacidade, pois não conhecia a todos no circo e pareceu-me, desde aquele momento, arriscado dividir o mesmo dormitório com pessoas desconhecidas. A partir de então, decidi adquirir um trailer, mas uma procura exaustiva nos dias seguintes me revelou que esse tipo de moradia torna-se bastante caro quando em bom estado de conservação e com o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) quitado.

Mesmo assim eu estava decidido a manter a minha privacidade (e segurança) e a partir de então abandonei a ideia de ficar seis meses em somente um circo, como havia planejado para

a realização da etnografia. Isso me frustrou bastante, mas em vez de um circo arquitetei ficar períodos menores em vários circos. Não sabia ao certo quantos circos, pois havia a necessidade de primeiro conhecer o cotidiano circense e ver como seria a minha relação com os circenses. Para abrigar-me, considerei como única alternativa morar em uma barraca, estendendo a minha privação ao interior do meu automóvel.

Assim,

Às 09h00min cheguei ao circo em busca de um lugar para armar a barraca e tive certeza que os meus dias ali seriam sob o sol forte. Procurei por uma sombra que pudesse acomodar a minha residência provisória [barraca], mas não a encontrei. [...] Um dos proprietários do circo me assessorou na tarefa de escolher um lugar para a barraca. Percorremos uma área próxima à sua carreta, mas ele disse que seria melhor eu ficar próximo à carreta carregada de ferragens da arquibancada que não usavam mais (Diário de campo, 09 de janeiro de 2015).

Notei a intenção do dono do circo em me manter afastado da sua residência e da de seus familiares, colocando-me próximo às moradias dos funcionários que estavam também próximas à carreta com as ferragens. Enquanto preparava a minha moradia rumores sobre a minha identidade e sobre os meus objetivos no circo já eram discutidos entre os funcionários. Um deles, dias após a minha chegada, confessou que perguntou a um dos donos do circo se eu era policial. Outro ventilava a ideia de que eu estava no circo para “curtir” a vida, experimentando o cotidiano circense. Inúmeros comentários chegaram ao meu conhecimento na medida em que eu estreitava o relacionamento com os circenses.

À medida também que os dias se passavam uns deixavam de temer a minha participação no circo, mas o meu temor em relação aos funcionários aumentava a cada dia. Isso se acentuou quando um dos sujeitos de pesquisa, funcionário do circo, disse que eu estava correndo risco de ter meus pertences furtados por outros funcionários, pois a minha barraca era bastante vulnerável, conforme pode ser vista na figura a seguir:

FIGURA 2 - Barraca usada como moradia pelo pesquisador no primeiro circo pesquisado Fonte: Arquivos de pesquisa.

Soma-se a isso o calor muito forte que me obrigava a deixar a barraca muito cedo e o fato de a minha presença no circo ter levantando a suspeita de que eu estava ali para de algum modo vigiar os funcionários, após quatro dias resolvi me hospedar em uma pousada diante do circo. Essa reorientação na construção dos dados me mostrou ser uma solução a suspeita que tinham sobre mim. Além disso, ao contrário das pesquisas etnográficas, em que os sujeitos são forçados a conviver com o pesquisador, a medida adotada proporcionou diminuir esses instantes de imposição, tendo em vista que os donos do circo consentiram na realização da pesquisa, não sendo nada perguntado aos funcionários.

Com os circenses deste circo passei a ter uma relação mais amigável após ter deixado de residir na barraca e, portanto, no circo. Nos dias seguintes as minhas observações se deram em momentos esparsos que permitiam a eles ter mais privacidade e se isentarem da necessidade de me dar atenção a todo o momento. Reverberando sobre essa alteração nos planos iniciais concluí sobre como o pesquisador pode tornar a sua presença indesejável se ele não se reconhecer como um estranho para os sujeitos de pesquisa, tomando como parâmetro as circunstâncias deste estudo. Em suma, considero salutar ter mantido certo distanciamento do cotidiano dos sujeitos de pesquisa, dando-lhes condições para que pudessem em momentos específicos criar o cotidiano sem a minha interferência.

Mesmo realizando várias tarefas conjuntamente com os circenses eu não ansiava romper com as diferenças entre nós. Nossas diferenças eram claras e não me inspirava a construção de uma identidade falseada para me passar como circense. Assim, decidi que a minha condição deveria ser assumida e não disfarçada. Além disso, se eu tentasse me passar por circense eu

deveria escolher ser integrante da família proprietária ou funcionário, estando a minha condição socioeconômica mais ligada ao primeiro grupo isso fatalmente implicaria na construção de barreiras que me distanciariam dos integrantes do segundo grupo. Assim, decidi ser pesquisador e com isso frequentar as relações sociais dos dois grupos.

Portanto, assumi-me diferente dos circenses, pois o meu modo de vida e como percebo o mundo são aspectos idiossincráticos. Não conseguiria fingir mais que um dia ser circense, em um esforço para abandonar quem realmente sou. Isso me exigiu não medir esforços para estabelecer “relações de troca” com os circenses, em que eu os ajudava para com eles conviver (MAGNANI, 2009, p. 135). Para isso, mesmo estando ali como pesquisador tornei os objetivos do grupo em torno da produção do espetáculo circense como sendo meus também. No entanto, não se tratou de colocar esses objetivos acima dos objetivos desta pesquisa, mas lhes dar importância suficiente para me tornar produtivo na visão deles. Assim, além de pesquisar eu tive que trabalhar.

Sobre a minha participação em atividades cotidianas no circo, creio não ter ocorrido como eu esperava antes de entrar no campo. Antes, imaginava que seria fácil o meu engajamento em alguma atividade, mas logo descobri que as funções estão ligadas às vidas das pessoas, como se a apropriação de alguma delas por mim fosse uma apropriação de parte da vida de algum deles. Não só das dos funcionários. Todas as atividades realizadas no circo estavam ligadas a uma pessoa e, assim, a sua importância para o funcionamento da organização circense. É ingenuidade pensar que o campo está aberto às possibilidades pensadas por você sem antes conviver com os sujeitos de pesquisa, pois os espaços de práticas estão demarcados e cada um o defende com “unhas” e “dentes”. Invadir esses espaços é romper a ordem estabelecida e, em minha visão, dar início a conflitos não imagináveis. Por isso, engajei-me em atividades em que não havia pessoas zelando por sua demarcação. Em um lugar em que as pessoas querem mostrar “trabalho” não se admite que o perca para um “outro”. Quer-se mostrar trabalho! (Diário de campo, 17 de janeiro de 2015).

Minha participação ocorreu na medida do possível e após ter descoberto que para sê-lo em uma organização circense requeria reconhecer as necessidades durante o dia a dia, oferecendo-me para realizar atividades e ajudar quando solicitado. Sendo assim, pouco a pouco me envolvi nas apresentações, na venda de produtos na praça de alimentação, na negociação de locação de terrenos, na busca por licenças para o funcionamento do circo etc. Paralelamente observei os circenses nas mais diversas situações presentes no cotidiano daquele circo.

A descrição das minhas atividades e do cotidiano observado, como já evidente nas transcrições realizadas, foi registrada em diário de campo, conforme recomenda Cavedon (1999, 2001). Para a autora, o pesquisador deve descrever no diário de campo tanto as expressões do grupo investigado quanto seus próprios sentimentos. Para tanto, é necessário que eu tivesse o olhar treinado, sempre atento aos acontecimentos e sentimentos expressos no contexto; em outras palavras, foi preciso estar sempre “com os sentidos à flor da pele” (CAVEDON, 2001, p. 2). Nesse processo, foi inevitável o impacto da minha subjetividade, pois fui eu que selecionei quais acontecimentos eram importantes para compreender as relações de poder e que por isso deveriam ser descritos. Essa característica, por sua vez, reforça uma defesa já realizada nesta tese, quanto à sua falta de neutralidade.

Além da observação participante e do registro do dia a dia no diário de campo, realizei entrevistas semiestruturadas.

Podemos entender por entrevista semiestruturada, em geral, aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa, e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, fruto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que se recebem as respostas do informante. Dessa maneira, o informante, seguindo espontaneamente a linha de seu pensamento e de suas experiências dentro do foco principal colocado pelo investigador, começa a participar na elaboração do conteúdo da pesquisa (TRIVIÑOS, 1987, p. 146).

A entrevista semiestruturada me permitiu maior liberdade para desenvolver cada situação de entrevista em qualquer direção que considerasse adequada aos objetivos desta pesquisa e de acordo com a disponibilidade dos entrevistados para falar delas. Alguns assuntos foram evitados, pois mesmo sendo bastante reveladores eles comprometiam os sujeitos de pesquisa em suas relações de poder. As entrevistas foram necessárias para esclarecer pontos que não ficaram claros durante a observação participante, abrangendo somente aqueles circenses com posicionamentos políticos específicos, que me possibilitariam ouvir a multiplicidade de pontos de vista necessária aos objetivos desta pesquisa. Assim, entrar no campo foi algo fundamental nessa escolha. Nesse caso, a princípio, eu considerei todos como potenciais participantes, mas o cotidiano direcionou o meu olhar para determinados sujeitos, conforme preconiza a transcrição abaixo:

[...] a primeira atitude a ser tomada antes de selecionar alguém é envolver-se no campo para observar, conversar e conhecer, de forma geral, as particularidades do contexto em que a pesquisa será desenvolvida (REY, 2005, p. 110).

No trecho acima Rey (2005) mostra como que a experiência no campo de pesquisa indicará ao pesquisador quem são as pessoas que poderão contribuir para a construção da resposta do problema de pesquisa. Assim, como ocorreu nesta tese, a entrada no campo e a posterior escolha dos sujeitos entrevistados me conferiram tempo para programar o contato com os sujeitos avaliados como tendo algo revelador a dizer sobre o cotidiano circense e de preparar formas de aproximação e contato capazes de promover a interação adequada para estabelecer a confiança mútua.

Contrariando as minhas expectativas, alguns circenses se recusaram a participar das entrevistas, mesmo aqueles que durante a minha estadia no campo se mostraram receptivos e curiosos quanto à pesquisa. Lamentei profundamente a recusa de alguns, pois tinham uma capacidade incrível para verbalizar seus sentimentos e falar sobre o cotidiano no circo. Nos encontros diários em torno da atividade circense fizeram revelações profundas e análises que aguçaram o meu entendimento sobre as relações de poder. Em geral, não participaram porque consideraram a entrevista desnecessária, ou porque tiveram vergonha de falar a um ouvinte portando um gravador, ou pelo mais surpreendente, como em um dos casos: por pura coerção do marido. Não era o que eu esperava, tendo isso frustrado minhas ambições, mas ao mesmo tempo fui lembrado de que eu estava agindo em um campo organizado por poderes.

Essa primeira experiência empírica norteou as vindouras. Sendo assim, adotei como parte do método as seguintes medidas: dar aos sujeitos mais liberdade e privá-los da observação contínua; conviver com eles o tempo suficiente para esclarecer fatos importantes ligados às relações de poder, antes que a minha presença passasse a incomodar; participar, na medida do possível, de atividades de produção do espetáculo circense; confeccionar diário de campo e; realizar entrevistas.

Ao todo a construção de dados envolveu mais quatro circos, além desse primeiro, sendo esse número referente à quantidade de experiências que me proporcionaram recriar a mecânica do poder no cotidiano circense. Assim, findada a experiência inicial no primeiro circo, sobretudo após ter notado que a minha presença se tornara indesejável, várias dúvidas persistiram, sendo necessário contatar mais circenses e lhes propor esta pesquisa para, a partir da convivência com eles, compreender mais aspectos ligados às “artes de fazer”. Com esse objetivo, foram pesquisados mais quatro circos, totalizando cinco organizações circenses, estando duas delas no estado de MG e três no ES.

A experiência de convivência com os sujeitos desta pesquisa resultou em cinquenta e cinco dias de observação participante no ano de 2015 e a participação de dezessete entrevistados que tiveram suas falas gravadas em áudio. Devo salientar, entretanto, que apesar de ter usado observação participante e realizado entrevistas, recursos esses do método etnográfico, eu não fiz uma etnografia. Considero ter fugido a diversos princípios essenciais do método etnográfico, pois eles não se ligam ao posicionamento epistemológico que assumi nesta tese.

Em primeiro lugar, porque desde o princípio não quis interpretar o esquema de pensamento dos sujeitos de pesquisa (MALINOWSKI, 1978). Em vez disso, intentei interpretar o modo de vida deles a partir do meu olhar. Em segundo, o meu posicionamento e o meu olhar sobre os fenômenos não ensejavam que eu ultrapassasse o que chamam de “estranhamento” ou “deslumbramento” (MAGNANI, 2009, p. 150). Ora, eu tinha a convicção de sempre ser um estranho, pois a minha estadia no campo não me livraria de aspectos objetivos e subjetivos alicerçados durante os anos de minha existência. Em terceiro, não observei o cotidiano em busca de padrões que pudessem retratar a vida de uma comunidade (MALINOWSKI, 1978). Existem padrões observáveis no cotidiano, mas a princípio eles não configuravam em meus objetivos. Em suma, em vez de um método, preocupou-me fazer uma pesquisa em que eu pudesse ser um “bricoleur” e, assim, jogar criativamente com métodos de pesquisa existentes, tendo liberdade para combiná-los para melhor compreender as “artes de fazer” de acordo com a epistemologia pós-estruturalista.