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Os circos e os circenses

4 PERCURSO EMPÍRICO

4.1 Os circos e os circenses

Nesta tese as investigações não pretenderam uma apropriação linear da realidade (REY, 2005). Assim, não parti do princípio da existência de uma realidade pronta, à espera da contemplação. Assim, acessar o real “obsoluto” não se configurou em nenhum momento como objetivo, pois, no máximo, apresento, ao final, uma das possíveis realidades produzidas em uma “zona de sentido” (REY, 2005). Essa zona de sentido se deu a partir das escolhas feitas por mim, que mantiveram uma relação transformadora com a prática de pesquisa e com o cotidiano dos sujeitos circenses.

Diante da pesquisa que realizei, também investida dos meus interesses políticos, no início deste trabalho assumi um posicionamento a favor da organização circense, por acreditar que ela leva manifestação cultural às populações carentes em termos de eventos de produção cultural. Nesse contexto observam-se populações geralmente residentes nas periferias das cidades brasileiras. Alegrar-me-ia se eu fosse capaz de atuar neste trabalho como o fez Friedrich Nietzsche em “Genealogia da Moral”. “Ele [Nietzsche] pretende ser médico e salvador, e assume este papel com a paixão que lhe é peculiar” (SOUZA, 2009, p. 162). Paixão sim, mas não a capacidade de “medicar” a atividade circense de suas mazelas, “salvando-a”. Faltou-me essa pretensão, mas se ainda a tivesse, careceria de experiência sedimentada pela vida circense, da qual só conheço ínfimos substratos por meio deste trabalho.

Assumo também, os compromissos do pesquisador como um “bricoleur” (DENZIN; LINCOLN, 2006, p. 20). Como tal, anuncio a influência da minha história pessoal, do meu gênero, da minha raça, da minha classe, da minha etnicidade e daquelas pessoas que fizeram parte do cenário de pesquisa na realização deste trabalho. Portanto, esta investigação não é “neutra” e não atende aos critérios positivistas de validade de pesquisa.

Em minha incursão política investigativa pesquisei em cinco circos, cujos nomes foram mantidos em sigilo, conforme estabelecido na negociação para entrada no campo. Trata-se de circos itinerantes que no momento da pesquisa estavam nos estados de Minas Gerais (MG) e Espírito Santo (ES). O circo itinerante é caracterizado por realizar curtas temporadas nas “praças”34

(TEMPERANI, 2014). Sendo assim, os circos pesquisados mudam frequentemente de cidade ou bairro, sempre em busca de espectadores e, dependendo do caso, movidos pelo esgotamento das atrações, que após um final de semana se tornam repetitivas para o público e, assim, pouco atrativas. Além de itinerantes, os circos escolhidos têm outra característica importante, tendo em vista que lhes agregam muitos atributos: podem ser descritos também como de “variedades”. Segundo Magnani (2003), os circos de “variedades” são chamados assim por terem atrações variadas, como malabares, magia, trapézio, bailado, ventríloquo, números de equilíbrio etc. Por fim, são caracterizados também como circos de organização familiar, pois a sua constituição social é majoritariamente de pessoas com laços consanguíneos (SILVA, 1996).

As organizações investigadas também são caracterizadas por terem população numericamente variada e dividida entre aqueles que pertenciam às famílias proprietárias e aqueles contratados para atuar nas montagens e nos espetáculos. O mais populoso dos circos contava com 26 pessoas entre adultos e crianças. Desse total, 13 pertenciam ao núcleo familiar proprietário e o restante ao grupo de contratados contratadas. O segundo circo com maior número de pessoas tinha no total 16 integrantes entre crianças e adultos, sendo cinco deles contratados. O terceiro circo, em um escala decrescente em número de integrantes, contava com 12 pessoas, sendo duas contratadas. O quarto possuía nove integrantes, sendo apenas um contratado. Por fim, o quinto tinha oito componentes, sendo dois deles contratados. Entre os contratados desse circo, um deles residia em residência convencional em uma cidade próxima e só trabalhava no circo nos finais de semana.

Em relação àquilo que compunha as estruturas dos circos, todos eles tinham capacidade para abrigar até 600 pessoas durante os espetáculos. Contudo, haviam entre eles demasiada diferença, principalmente se levada em consideração a quantidade de mastros que cada um

34“Praça” é uma metáfora comum no vocabulário circense e usada para designar a cidade ou bairro onde o circo é armado (BOLOGNESI, 2009; TEMPERANI, 2014). Já o termo “fazer a praça”, significa preparar a cidade ou o bairro de destino, ou seja, fazer a propaganda, escolher o terreno, entrar em contato com as autoridades locais, entre outras coisas (SILVA; ABREU, 2009, p. 69).

possuía, de forma que quanto mais mastros os circos possuíam mais trabalhoso era levantar a lona que abrigava os palcos. Dois deles tinham quatro mastros, enquanto outros dois tinham dois mastros cada e um de apenas um mastro. Todos eles, além da lona principal, eram compostos também por uma lona menor chamada de marquise, onde funcionavam as praças de alimentação, usadas como espaço para a comercialização de brinquedos, mas principalmente de gêneros alimentícios vendidos nas “praças”.

Em suas itinerâncias os circos pesquisados procuram por “praças” localizadas no interior, estando sempre armados em pequenas vilas e bairros distantes dos centros das cidades. E foi em um desses lugares que tive o primeiro contato com os circenses de umas das organizações pesquisadas. Naquela oportunidade, meus objetivos de pesquisa de doutoramento ainda não eram claros, por isso, conversei com eles por interesse apenas na arte que praticam. Passado algum tempo sem vê-los tive notícias do paradeiro do circo, desta vez na fase de elaboração do projeto, e à procura por circos para realizar esta investigação. De posse das informações que me levariam ao circo, fui ao seu paradeiro para saber se os circenses aceitariam a realização da pesquisa. Como resultado, interessei-me pelo circo em questão, sobretudo, pelas pessoas daquele circo pelos seguintes motivos: a) por ser de organização familiar; b) por ser itinerante; c) por eu ter sido bem recebido pelos circenses quando estive com eles, e; d) pelo fato de os circenses terem aceitado participar da pesquisa. A partir de então, levando em consideração essa primeira experiência, adotei os motivos que despertaram o meu interesse como critérios para a seleção dos próximos circos.

Para mim era necessário escolher circos familiares, pois trabalharia com organizações do mesmo tipo e isso poderia facilitar a minha compreensão em torno do cotidiano das pessoas. Os circos também deveriam ser itinerantes e, assim, percorrerem vários municípios ou bairros. Isso permitiria que eu pudesse observar relações instáveis entre os circenses e citadinos, bem como observá-los durante a montagem do circo, apontada por Ruiz (1987) como uma das partes mais penosas da atividade circense. Disse o autor: “Tarefa absolutamente difícil é a montagem de um circo” (RUIZ, 1987, p. 22).

Destaco também como sendo um fator decisivo na escolha dos circos a receptividade dos circenses em relação a mim, que entraria de modo invasivo em suas vidas para fazer algo que a princípio interessava somente a mim. Por último, incrustada nas instâncias lógica e ética, a permissividade quanto à realização da pesquisa. Ocorre que, em pelo menos uma vez a minha

presença não se mostrou desejável, quando em contato com o proprietário de um circo e após lhe apresentar os objetivos da pesquisa houve recusa. De modo sutil ele me indicou outro circo para a realização desta investigação e isso me fez ainda mais curioso quanto à vida circense e as relações de poder.

A procura por circos durou vários meses e eles foram surgindo enquanto objetos de estudo selecionados de modo bastante aleatório, sendo a aproximação feita de acordo com a notícia de localização de circos com as duas primeiras características descritas (a e b), sendo as duas últimas observáveis somente em contato com as pessoas do circo. Nos circos selecionados vivem várias pessoas, dentre familiares e funcionários, todas elas envolvidas na produção dos espetáculos e/ou na venda de produtos na praça de alimentação e, de igual modo, sujeitos desta pesquisa.

Complementarmente às estratégias de pesquisa, os instrumentos para a construção dos dados e os métodos de análise empregados não foram usados para elevar os conhecimentos retratados neste trabalho ao grau de verdade “última”, ou seja, a um tipo de verdade indubitável. Em vez disso, os dados analisados têm caráter reflexivo em relação ao social. Por isso, durante a execução deste trabalho rompi com a consciência tranquila que poderia ter, para admitir que as colocações em termos de construção de dados e análises têm certo grau de perspectivismo, pois estão pautadas na epistemologia pós-estruturalista (PETERS, 2000).