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Destruição e recuperação: as Misericórdias depois da invasão holandesa

A dinâmica das Misericórdias na América portuguesa

2.2. Destruição e recuperação: as Misericórdias depois da invasão holandesa

Após a expulsão dos holandeses, as Misericórdias localizadas nas regiões ocupadas trataram de rogar ao rei por privilégios e esmolas perdidas. A documentação de muitos estabelecimentos foi destruída e com ela a memória da instituição. Assim, a ocupação pode ter servido também como argumento retórico para novos privilégios de

50 Russell-Wood afirma, sem citar fontes, que a Misericórdia de Belém foi criada em 1619. No entanto,

segundo a publicação coordenada por Yara Aun Khoury, a Misericórdia do Pará data de 24 de fevereiro de 1650. Ver: RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos... p. 31. KHOURY, Yara Aun (Coord.).

Guia dos arquivos das Santas Casas de Misericórdia... v. 1, p. 227-232.

51 Ver ARAÚJO, Maria Marta Lobo de, PAIVA, José Pedro. Introdução. In: PMM, v.6, p. 7-29. 52 AHU, Pará, cx. 02, doc. 133. PMM, v. 6, p. 410-411.

74 confrarias muito modestas desde sua origem. É difícil saber ao certo qual a importância dessas irmandades no cotidiano de localidades como Felipeia, Itamaracá, Igarassu ou São Cristóvão. Contudo, a julgar pelos parcos relatos de época, ou mesmo pela pequena importância das vilas e arraiais que as sediavam, pode-se argumentar que, naquela região, além de Salvador, apenas a Misericórdia de Olinda deve ter acumulado algum patrimônio e oferecido serviços sistemáticos antes da invasão dos holandeses. A partir das petições feitas ao rei após 1654 percebem-se, em linhas gerais, quais as principais atividades que essas instituições alegavam cumprir em cada localidade.

Em 1658, a irmandade olindense pedia ao rei o privilégio dos dízimos dos pescadores das redes da capitania para reconstruírem sua capela, que estaria “arruinada e destruída de todos os ornamentos e mais fábrica necessária para o culto divino pelo haverem assolado os holandeses”.54 Anos depois, em 1672, a irmandade tornava a clamar à coroa a fim de que se estendessem os privilégios de Salvador à confraria de Olinda. O pedido soava estranho, porque a irmandade havia recebido as prerrogativas de Lisboa, em 1606. Certamente, a perda da documentação explicava a solicitação feita em 1672,55 cuja argumentação ressaltava que em Olinda a confraria da Misericórdia era tão

bem paramentada e despendia tanto quanto a de Salvador.56 O pedido seguiu com os

pareceres do procurador da Fazenda e do Conselho Ultramarino anuindo a demanda. Nesse mesmo ano, foi expedido um alvará régio autorizando a Misericórdia de Olinda a usar os privilégios concedidos à da Bahia.57

Em 1676, a confraria de Nossa Senhora das Neves demandou os privilégios concedidos à de Olinda e à da Bahia. Com os mesmos privilégios de Lisboa, a Misericórdia da Paraíba também sofreu as consequências da invasão holandesa. Em outubro de 1724, solicitou ao rei para que ordenasse ao ouvidor o tombamento dos bens da irmandade, porque a mesma estava sendo usurpada em seu patrimônio e não tinha um livro de registro para comprovar a posse de suas propriedades. O parecer do ouvidor, Manoel da Fonseca e Silva, de 24 de novembro de 1723, era anterior à petição feita ao rei:

[...] o que se faz preciso sendo certo como é ter desaparecido o livro do tombo dela, por incúria de um Francisco da Costa Teixeira, já defunto, que fora naquele tempo, provedor da dita Santa Casa e não haver dúvida em que os livros antigos de notas

54 AHU, Pernambuco, cx. 7, doc. 605.

55 ANTT, Chancelaria de d. Filipe II, Doações, livro 17, fl. 118v.

56 “e no ornato e dispêndios lhe não excede a da Bahia ”. Ver AHU, Pernambuco, cx. 10, doc. 946. 57 ANTT, Chancelaria de d. Afonso VI, Doações, Livro 41, fl. 174 v.

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nos quais devia estar lançada a dita doação faltam e [desde] o tempo da invasão dos holandeses nessas conquistas não aparecem, podendo-se de algum modo recuperar ao menos parte do muito que tem perdido.58

Em 1729,59 a demanda foi refeita nos mesmos termos; em 1744, o problema persistia com a irmandade sem saber ao certo qual era seu patrimônio;60 em 1771, os irmãos ainda solicitavam uma solução definitiva para essa questão.61 A partir de um pedido de ajuda feito em 1755 constata-se também que a Paraíba já possuía um hospital antes da invasão holandesa.62

A Misericórdia de Igarassu é outro caso, cuja data de criação é imprecisa, mas certamente anterior à invasão holandesa. Décadas depois do fim da ocupação, a irmandade ainda amargava a perda de crédito e patrimônio decorrentes do conflito. Em 1705, os confrades de Igarassu tiveram seu compromisso confirmado orientando-se pelos estatutos do Porto.63 Na década de 1720, os irmãos escreveram ao rei pedindo obras na igreja, ajuda de custo para ornamentos. Segundo a petição, havia 14 anos que tentavam finalizar sua capela, no entanto, não tinham recursos financeiros: “pelas impossibilidades em que nos achamos e ser esta vila uma das que ficou mais atenuadas com as guerras dos holandeses que nela fizeram o alvo para o saque, por ser a mais populosa naqueles tempos, além de Olinda”.64 Na mesma petição informavam sobre a

necessidade de construir um hospital e, como indicavam os suplicantes, deveria ser custeado por uma quantia anual dada pela Câmara.

Também já adiantado o século XVIII, surgiram as primeiras comprovações documentais de Misericórdias em Goiana (Pernambuco) e São Cristóvão (Sergipe), o

58 AHU, Paraíba, cx. 5, doc. 425.

59 “Dizem o Provedor e mais irmãos da Mesa da Santa Casa da Misericórdia da cidade da Paraíba do

Norte que pela invasão e entrada dos holandeses a esta cidade, se perdeu e consumiu o arquivo da dita Santa Casa onde se conservam vários papéis e títulos das terras que pertenciam à mesma Santa Casa e por isso se acham hoje a maior parte delas usurpadas e senhoriadas por intrusos possuidores.” AHU, Paraíba, cx. 07, doc. 611. Ver também AHU, Paraíba, cx. 07, doc. 608.

60 AHU, Paraíba, cx. 13, doc. 1094. 61 AHU, Paraíba, cx.25, doc. 1911.

62 “Erigida a Santa Casa da Misericórdia desta cidade da Paraíba o foi também o hospital dela que se

conservou até a tomada dos holandeses, tempo em que não só foi o dito hospital destruído, mas também ficou sem mais renda que o limitado rendimento dos dízimos de ovos, frangos e mais aves que os antecessores de Vossa Majestade por piedade concederam e até o presente [1754] se tem conservado esta terra nesta miséria, aumentando estas o número do povo que tem acrescido de sorte que muita parte destes morrem à necessidade pela falta de quem os socorra como se testifica pelas certidões juntas, pois ainda que esta Misericórdia lhe queira acudir, as poucas posses e rendimento nos impossibilita para os socorrer.” AHU, Paraíba, cx. 18, doc. 1437. AHU, cx. 18, doc. 1456.

63 PMM, v. 6, p. 104.

76 que fez crer a alguns estudos que essas irmandades foram criadas naquela centúria.65

Contudo, a partir das solicitações feitas ao Conselho Ultramarino é possível constatar que essas congêneres também datavam de antes da invasão holandesa. Destruídas durante os conflitos, as duas foram recriadas a partir de iniciativas bem diferentes ao longo do século XVIII.

Em 1720, por exemplo, uma ordem régia comunicou ao ouvidor geral da capitania da Paraíba, Manoel da Fonseca e Silva, que o ouvidor anterior, Jerônimo Correa do Amaral, recebera dinheiro de alguns devedores da Misericórdia de Goiana. O rei ordenava que se “pusesse em execução a obra da dita Casa da Misericórdia para por este meio se conseguir o remédio de muitos necessitados”. Tudo indica que essa primeira iniciativa de recriar a Misericórdia fora obra de um homem bom da capitania, Francisco Afonso Varea, desejoso de “empregar bem o muito que Deus lhe dera”, não tinha filhos a quem deixar, “nem parentes necessitados a quem socorrer”.66

Em 1722, a irmandade da Misericórdia de Goiana estava oficialmente recriada e fazia seus atos e funções na Matriz, enquanto não ficava pronta a sede da confraria. Em um documento de 5 de julho de 1722, três dias após o início do ano compromissal, os irmãos confirmam a recriação da Misericórdia:

Novamente se criou nesta Vila de Goiana a irmandade da Santa Misericórdia de que damos a[?] parte seguindo o compromisso da Misericórdia da cidade de Lisboa que é o que segue a da cidade de Olinda e o procedimento desta eleição remetemos o traslado [...] acha a dita irmandade e no enquanto com faculdade do reverendo vigário desta Vila fazemos os atos e funções nesta Matriz [?] para haver de se cobrar o que se esta devendo à antiga Misericórdia desta capitania, destruída pelos holandeses67

Logo no início de sua segunda fundação, a Misericórdia de Goiana enfrentou problemas financeiros, a despeito da cobrança dos devedores e dos legados deixados à instituição. Em 1733, a Misericórdia reivindicava os mesmos privilégios de Olinda e Salvador,68 e, em 1763, teve seu compromisso confirmado.69 Também neste ano, a irmandade solicitou o valor dos dízimos das miunças para custear o hospital recém- construído, com capacidade para 20 pobres.70

65 Ver, por exemplo, PMM, v. 6. p. 219-220. 66 AHU, Paraíba, cx. 5, doc. 385.

67 AHU, Paraíba, cx. 5, doc. 385. 68 AHU, Alagoas, cx. 01, doc. 84. 69 AHU, Códices I, cód. 1940.

70“Dizem o provedor e mais irmãos da Casa da Misericórdia da Vila de Goiana, que eles têm feito uma

77 Em 1732, foi a vez da Misericórdia de São Cristóvão reaparecer na documentação do Conselho. A petição, feita em nome do provedor e demais irmãos, explicava a origem recuada:

Dizem o provedor Pedro da Silva Daltro e mais irmãos da Santa Casa da Misericórdia da cidade de São Cristóvão da capitania do Sergipe de El Rei, por causa da destruição que houve quando os holandeses invadiram aquela cidade não só ficou aquela Santa Casa sem títulos alguns, desde a sua primeira fundação, porém também se acha sem provisão de Vossa Majestade de proteção real por cujos [princípios] experimentam os suplicantes atualmente dúvidas e controvérsias não só com o ordinário e vigários paroquiais, porém também com as justiças seculares por se intrometerem com os foros da Santa Casa. 71

Tal como expresso acima, a fundação da Misericórdia de São Cristóvão não datava do século XVIII, mas, possivelmente, do século anterior. Também nessa congênere observava-se o funcionamento de serviços regulares, ainda que não seja factível dimensionar a representatividade dos mesmos. Todavia, a petição fez referência a um hospital, ao auxílio de presos, à visita aos pobres, ou seja, a uma rotina de serviços considerável.72 No mesmo ano, uma ordem régia concedeu à irmandade de São Cristóvão os privilégios de Lisboa. Anos mais tarde, em 1738, uma carta do padre Gonçalo Pinto denunciava a difícil situação da confraria, cujos legados estavam malparados, os bens e rendimentos mal administrados. Em sua queixa, afirmava que a irmandade estava naquela situação desde “o tempo em que lhes tomou conta o doutor Diogo Pacheco de Carvalho, ouvidor e provedor que foi da dita cidade e comarca por ordem de Vossa Majestade”.73

As agruras das Misericórdias na região ocupada pelos holandeses dificultaram bastante o futuro dessas instituições em um curto prazo. Irmandades como as de Itamaracá e São Cristóvão parecem ter sofrido uma considerável perda de patrimônio, consequência que foi agravada pelo descrédito que progressivamente se abatia sobre essas agremiações ao longo do século XVIII. Mesmo os exemplos de Olinda, São Luís e

e prontos remédios, sendo tão falto de rendas que [?] aquelas que logram os Hospitais vizinhos das miunças de que Vossa Majestade lhe tem feito mercê”. AHU, Códices I, cód. 1940.

71 AHU, Sergipe, cx. 4, doc. 41.

72“E como o limitado rendimento dela se aplica e distribui em obras pias como é curar os doentes pobres

que se vão recolher ao Hospital dela, livramentos dos presos, visitar aos [necessitados] e todas as mais obras do serviço dela, recorrem os suplicantes a Vossa Majestade para que em ponderação do referido, lhes faça a esmola de conceder Provisão de proteção por graça que Vossa Majestade costuma dar às suas Casas de Misericórdia, incorporando nelas a isenção, privilégios, regalias que competem e gozam as mais casas da proteção de Vossa Majestade, que sendo servido conceder as que tem a Misericórdia da cidade da Bahia”. AHU, Sergipe, cx. 4, doc. 41.

73 AHU, Sergipe, cx. 04, doc. 62. Diogo Pacheco de Carvalho, primeiro ouvidor nomeado para Sergipe

78 Filipeia de Nossa Senhora das Neves, não obstante terem conseguido manter um funcionamento confrarial regular, ressentiram-se da desorganização advinda dos conflitos do século XVII. Por sua vez, são notáveis os esforços empreendidos por irmandades estabelecidas em lugares de menor expressão econômica, como Igarassu e Goiana, cujos estatutos foram aprovados respectivamente em 1705 e 1763.