• Nenhum resultado encontrado

Uma Santa Casa diminuta: A Misericórdia de Vila Rica

4.1. O surgimento tardio

Como já ressaltado, a fundação das Misericórdias passou por significativas alterações a partir de fins do século XVII. A coroa desencorajou criações em regiões recém descobertas, provocando sensíveis diferenciações na política adotada até então. Vila Rica, principal localidade do território mineiro, permaneceu sem Misericórdia até o início da década de 1730, inaugurando um hiato típico ao longo do século XVIII entre a estruturação política e a dinamização assistencial nas regiões recém-descobertas. Não obstante a presença de irmandades que convergissem os principais de cada terra em suas

21 BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica... p. 50. Ver também CARRARA, Ângelo Alves. Agricultura e pecuária na capitania de Minas Gerais... p. 112-113.

22 BERGAD, Laird W. Escravidão e história econômica... p. 64. 23 PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais...

184 respectivas localidades, a Misericórdia permaneceu uma lacuna sensível, longe, portanto, do voluntarismo comum aos habitantes do século XVII. Foram, por sua vez, as irmandades dedicadas ao Santíssimo Sacramento, São Miguel e Almas, entre algumas outras, que convergiram os segmentos brancos nesses primeiros tempos.25

A de São Miguel e Almas distinguia-se das demais por exercer uma obra de misericórdia específica: rezar pelas almas dos vivos e dos defuntos. Diferente das outras irmandades que se caracterizavam por despender rendas apenas com missas em benefício dos confrades e parentes próximos, São Miguel e Almas, em Vila Rica, tinha um capelão contratado para dizer uma missa todos os domingos e dias santos: a dos domingos, em intenção dos irmãos vivos e defuntos; a dos dias santos pelas almas do purgatório; além da missa realizada todas as segundas-feiras, em intenção das almas.26

São Miguel e Almas era uma das mais antigas irmandades de Vila Rica.27 Na reforma dos seus estatutos, em 1735, era ressaltado o papel que lhe coube, desde cedo, de desempenhar uma função ordinariamente praticada pelas Misericórdias, inumar os corpos de certos pobres defuntos:

Nesta freguesia e Vila não há ainda irmandade de Misericórdia e sempre esta fez as suas vezes e as fará enquanto a não houver, para o que tem duas tumbas de que usa nos enterros, a saber: uma com pano rico, em que se conduzem os irmãos defuntos para as sepulturas, e outra com pano inferior que serve para os pobres e esta que se aluga aos que não são pobres, nem irmãos.28

O serviço feito pela irmandade não pressupunha exclusividade dos enterramentos, nem a caridade universalizante, tal como deveria acontecer com as Misericórdias: tratava-se, tão somente, de disponibilizar um serviço mais acessível aos brancos que fossem menos remediados. Assim, a irmandade deixava a critério de quem quisesse utilizar a tumba destinada aos pobres especificando, de antemão, o público a que se destinava o benefício: “Morrendo qualquer pessoa que não seja irmão, nem irmã, sendo branca e não sendo pobre, se lhe alugará a tumba decretada para os pobres, que levará o pano inferior e se lhe levará de aluguel 16 oitavas de ouro”.29 (grifos meus). O

25 SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas no ciclo do ouro. Estudos 1, Belo Horizonte,

UFMG, 1963, p. 31-72. BOSCHI, Caio Cesar. Os leigos e o poder.... p. 21-35. CAMPOS, Adalgisa Arantes. A terceira devoção do setecentos mineiro...

26 ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, caps. 19, 20 e 21.

27“Irmandade do Arcanjo São Miguel e Almas é uma das antigas desta freguesia do Ouro Preto da Vila

Rica, pois teve o seu princípio tanto [que] se erigiu templo a Deus, ainda sendo arraial o que hoje é vila”. ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, Preâmbulo.

28 ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, cap. 30. 29 ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, cap. 36.

185 rendimento do aluguel dessa tumba era utilizado para se comprar azeite para a lâmpada do altar de São Miguel e, caso sobrasse alguma quantia, seriam ditas missas pelas almas, no fim do ano.30

Aos reconhecidamente pobres, a irmandade disponibilizava a mesma tumba do aluguel e uma cova da irmandade pelo amor de Deus. Contudo, esses despossuídos não eram quaisquer pobres. Mais uma vez, faziam parte de um segmento bem específico da comunidade:

Morrendo algum pobre em qualquer parte que seja, sendo no distrito desta freguesia, o procurador, ou quem primeiro o souber, dará parte à mesa e este convocará à irmandade e os capelães, que juntos com a dita irmandade em corpo de comunidade o irão buscar para a Matriz desta freguesia com a caridade que se observa há dois anos a esta parte com os tais pobres, e os enterrarão pelo amor de Deus em uma das sepulturas que a irmandade tiver.31

Era dentro de uma perspectiva bastante seletiva que os irmãos de São Miguel e Almas se apropriavam da noção de pobreza e de funções da Misericórdia. Diante dessas precondições, foi nesse sentido, por exemplo, que a irmandade de São José, composta por homens pardos, incluiu em seu compromisso de 1730 a reivindicação de ter tumba própria, tornando costume entre os habitantes das Minas não incumbir uma irmandade que detivesse qualquer tipo de exclusivismo nos enterramentos:

Porquanto nesta Vila não há Misericórdia de irmandade que costume ter tumba para se enterrarem todas as pessoas que falecerem, os quais só tem as irmandades particulares, querem os irmãos desta santa irmandade ter uma tumba com seu pano preto e branco para se enterrarem os irmãos dela e filhos legítimos de maior idade e para os de menor idade querem ter um esquife pequeno para os levarem à sepultura.32

Tudo indica que esse papel de identidade junto aos brancos da irmandade de São Miguel era corrente nas demais povoações das Minas. Segundo Adalgisa Arantes Campos, o auxílio a certo tipo de desafortunados era observável, além de Vila Rica, em Barbacena, Ouro Branco, Prados, São João del Rei, Tiradentes, Piranga, Monsenhor Horta e Mariana.33 Ainda nesse sentido, uma das principais manifestações rituais da

30 ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, cap. 37. 31 ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, cap. 38. 32 ACP, Compromisso da irmandade do Patriarca São José dos Pardos, 1730, cap. 21. 33 CAMPOS, Adalgisa Arantes. A terceira devoção do setecentos... Especialmente, cap. 3.

186 Misericórdia, a de recolher os ossos dos justiçados, em 1º de novembro, dia de Todos os Santos, foi desempenhada, em Vila Rica, pela irmandade de São Miguel e Almas.34

Foi essa irmandade que mais se aproximou do grande diapasão de serviços prestados pela Misericórdia. Dentro dessa perspectiva discricionária, São Miguel e Almas rezava pelas almas do purgatório e disponibilizava uma tumba para os que financeiramente não conseguiam manter a dignidade de seu estatuto.35 Todavia, em nada lembrava a importância social de gestora de dotes, de ajuda aos presos, recolhimento de enjeitados, auxílio a viúvas, ou manutenção de um hospital. Até 1735, quando foi criada a Misericórdia, o ideário de compaixão permanecia dentro de um horizonte possível, lembrando a necessidade de adequação, diante da ausência da mais representativa confraria do império português. No entanto, pouca coisa mudou depois da fundação da irmandade da Misericórdia em Vila Rica.

A tardia implantação da Santa Casa estava ligada a fatores de diferentes ordens: além de uma política consciente de desincentivo por parte da coroa, a estruturação da assistência na época moderna dependia de elites bem sedimentadas que estivessem dispostas a tomar para si uma ocupação onerosa, fosse do ponto de vista financeiro, ou de tempo. Assim, como já advertira Isabel dos Guimarães Sá, o início das Minas fez aparecer vazios de poder institucional, pouco propícios à criação de estabelecimentos paradigmáticos de intervenção régia, como era o caso das Misericórdias.36 Outro elemento que pode ter desestimulado a pronta fundação da confraria era o caráter altamente elitista de seu estatuto. Não obstante a convergência de elites brancas em

34“Em dia de Todos os Santos, de tarde, se fará a Procissão dos Ossos como é costume, a qual sai desta

Matriz para o cemitério com as duas tumbas no meio da irmandade e irá a dos pobres adiante e a dos irmãos atrás, ambas entre o corpo da irmandade, todos os reverendos párocos da freguesia e ultimamente o reverendo vigário, a mão direita do qual irá o provedor e levará um Santo Cristo nas mãos com toda a decência e, em ausência do provedor, o levará o escrivão, e o mesmo provedor encarregará aos irmãos toda a decência e compostura neste ato para o que o procurador da irmandade irá no meio da procissão com vara preta na mão e outro irmão da mesa da mesma sorte, e o escrivão com outra vara preta na mão irá atrás do reverendo vigário e do irmão provedor, cobrindo a procissão. E chegando ao cemitério, findo o responso que ali se costuma cantar, se recolhem os ossos nas ditas tumbas e formada a procissão se trazem as tumbas atrás, e virá a tumba dos irmãos com o pano rico logo atrás do irmão que cobre a procissão e atrás desta, a dos pobres, aos padres que acompanham esta procissão se dava até o presente, uma oitava de ouro, o mesmo se lhe dará daqui em diante, ou quanto ajustarem os da mesa, e ao reverendo vigário, o costumado. E formada a procissão, dará volta por toda a vila como é costume, e pelas ruas por onde passa haverá altares armados com alguns ossos, nos quais se cantarão responsos costumados e se recolherá a dita procissão na Matriz e os ossos se enterrarão no fim do dito ofício que no outro dia se faz que é no dia de finados ”. (grifos meus). ACP, Compromisso da irmandade de São Miguel e Almas, 1735-1767, cap. 42 O ritual descrito pelo estatuto da Misericórdia de Lisboa mostrava-se consideravelmente semelhante. Ver, Compromisso da Misericórdia de Lisboa, 1739, cap. 37.

35 Para a noção de caridade e dignidade em territórios coloniais, ver o interessante artigo de: MILTON,

Cynthia E. Poverty and the politics of colonialism... p. 595-625.

36 SÁ, Isabel dos Guimarães. Misericórdias. In: BETHENCOURT, Francisco; CHAUDHURI, Kirti. História da expansão portuguesa – o Brasil na balança do império... p. 280-289.

187 irmandades específicas, os compromissos eram consideravelmente mais permeáveis, não fazendo interdição explícita aos que exerciam atividades ligadas ao comércio.

As irmandades mineiras procuraram, grosso modo, refrear a entrada de cristãos novos sem fazerem referência a condições subalternas para os comerciantes.37 Desde cedo, a ideia de que “o país das Minas é, e foi sempre, a capitania de todos os negócios”,38 parecia bem assente entre as elites do território. Mesmo que a livre

associação entre ascendência judaica e trabalho mecânico fosse corrente, o fato de não se tornarem nominalmente fechadas aos comerciantes era digno de nota. O compromisso da irmandade das Almas de Santo Antônio do Campo de Casa Branca, de 1720, advertia que os irmãos deveriam ser “cristãos velhos de limpo sangue, sem rumor em contrário (...) e caso que se casem com pessoas suspeitas na fé, ou de menos será riscada”.39 Em 1721, os estatutos da irmandade do Senhor dos Passos, de São José,

comarca do Rio das Mortes, faziam referência direta aos oficiais:

Os irmãos que se receberem hão de ser, sem nenhum escrúpulo, limpos de geração,

ou sejam nobres, oficiais e assim de não terem uns e outros raça de judeu, ou de

mouro, ou de mulato, ou de novo convertidos de alguma infecta nação, sejam

também livres de infâmia ou por sentença, ou pela opinião comum, e o mesmo se

entenderá das mulheres.40 (grifos meus)

Como essas irmandades não tinham clivagens internas que denotassem nobilitação – como acontecia com a distinção de foros na Misericórdia –, a possibilidade de integração poderia se fazer sem maiores embates. A situação era consideravelmente mais complexa numa Misericórdia que se inspirasse nos compromissos de Lisboa, porque os comerciantes deveriam participar, em tese, como irmãos de segunda classe. No início do século XVIII, quando o estatuto em vigor havia sido elaborado em 1618, as regras de seleção dos confrades da Misericórdia eram categóricas. Além de não se permitir a entrada de cristãos-novos, mulatos, mulheres, infamados, os oficiais admitidos deveriam ter tendas ou, caso fossem mestres de obras, deveriam ser isentos de trabalhar com as mãos.41 Mesmo que, ao longo do século XVIII, a participação dos comerciantes não fosse uma novidade nas principais Misericórdias americanas, os estatutos podem ter inibido a constituição de uma irmandade onde

37 Ver: SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas... p. 38-46. 38 Citado a partir de FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio... p. 197. 39 Citado em SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas... p. 38. 40 Citado em SALLES, Fritz Teixeira de. Associações religiosas... p. 38. 41 Compromisso da Misericórdia de Lisboa, 1618. cap. 1.

188 grandes parcelas das elites, de início, não tinham origens muito nobilitadas e viviam do comércio.42

Em outubro de 1726, o então vigário da paróquia de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto de Vila Rica43 encabeçou uma petição solicitando ao rei a criação de uma irmandade da Misericórdia. Os suplicantes alegavam que “florescendo a dita vila na mesma freguesia, tanto em culto divino, como em bens temporais”, sentiam falta de não terem uma Casa de Misericórdia com hospital “para refúgio da pobreza e aumento da caridade como nas mais terras principais”. Salientou que os 66 moradores que assinavam a lista se ofereciam para fazer a Casa de Misericórdia e hospital por devoção e às suas custas. Arrematavam o documento pedindo que se concedesse à congênere vilarriquenha os mesmos privilégios que tinha a Santa Casa da corte. O Conselho Ultramarino concedeu-lhes a permissão para a ereção da Misericórdia, entretanto considerou que os privilégios pleiteados eram “incompatíveis”; ordenou que, depois de feito o compromisso, pedissem a confirmação.44

Muito do interesse das elites em integrar os quadros das Misericórdias deveu-se às regalias que a Santa Casa disponibilizava aos seus confrades. Geralmente conferidos em primeiro lugar à congênere lisboeta e depois sistematicamente estendidos às do reino e do ultramar, por meio de pedidos dos confrades, os privilégios estavam ligados a isenções de cargos concelhios (militares, financeiros e de aposentadoria), à criação de vantagens para o exercício da caridade (apoio aos presos e condenados à morte, entrada nos hospitais) e à doação de recursos econômicos (autorização para efetuar peditórios em regime de quase exclusividade, arrecadação de multas de justiça etc.).45

Por sua vez, a falta de privilégios das instituições mineiras vinha se tornando crônica se comparadas às vilas e arraiais do litoral da América portuguesa. A Câmara de Vila Rica é um bom exemplo de municipalidade que insistentemente solicitou privilégios, os quais ou foram negados ou negligenciados.46 O Concelho jamais gozou

42 Ver: FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio...

43 Vila Rica era composta por duas paróquias urbanas: Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto e Nossa

Senhora da Conceição de Antônio Dias.

44 AHU, Minas Gerais, cx. 09, doc. 05.

45 SÁ, Isabel dos Guimarães. As Misericórdias Portuguesas de d. Manoel I a Pombal... p. 132, nota 20.

Ver ainda da mesma autora, Quando o rico se faz pobre... p.58-74.

46 Segundo Cláudia Damasceno Fonseca os privilégios dos núcleos espelhavam, muitas vezes, a

importância dos seus habitantes. Por outro lado, os habitantes também poderiam atrair privilégios para suas terras. Como mostra a autora, a criação de vilas e a hierarquização das mesmas através dos privilégios era um expediente utilizado pela coroa na manutenção do poder régio. FONSECA, Cláudia Damasceno. Des terres aux villes de l‟or...

189 das desejadas regalias tal como aconteceu no Rio de Janeiro ou em Salvador que, à semelhança das principais povoações do reino, tinham várias isenções e precedências.47

A composição da Câmara que, em tese, estaria restrita a segmentos brancos e sem ascendência cristã-nova ou africana, em Vila Rica, com certo exagero de Russell- Wood, caracterizara-se pela “mediocridade” dos componentes, para a qual o governo de Lisboa fazia “vistas grossas”, sobretudo aos mulatos que serviam no Senado. Cite-se o caso de um ex-sapateiro que serviu como juiz ordinário na Câmara de Vila Rica. Em 1725, d. João V ordenara que todos os candidatos a cargos municipais da Vila deveriam ser brancos e casados com mulheres brancas.48 Ainda de acordo com Russell-Wood, a origem duvidosa dos componentes do Senado continuaria crônica durante todo o século XVIII, entretanto era possível notar a mudança de perfil entre uma governança majoritariamente composta por mineradores que deu lugar, a partir do segundo terço da centúria, a um Senado em que mercadores, comerciantes e produtores agrícolas eram a maioria. Júnia Furtado matiza tal afirmação e salienta que, em virtude de uma grande fluidez das funções exercidas, o comércio certamente foi mais precoce do que supôs o autor.49 O fato é que, em 1726, diante da resposta do Conselho Ultramarino aos

habitantes de Vila Rica, o desejo de se constituir uma instituição paradgmática como a Misericórdia, nos moldes de Lisboa, permaneceu letra morta. Anos depois, surgiria outra proposta de criação, dessa vez, na freguesia de Antônio Dias.