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A pobreza na época moderna: ideias, justificativas e projetos

1.1. Em torno das noções de pobreza

1.1.2. O dever da caridade

“Ainda que amontoes em casa todas as riquezas do mundo, não virás a possuir mais que estes poucos palmos de terra que assinalei, se é que os chegará a possuir”.44 A

utilização da pobreza como argumento digno, ao mesmo tempo, de crédito e compaixão foi responsável por uma espécie de vulgarização do vocábulo da pobreza e da misericórdia. Frequentemente, a pobreza era percebida como uma condição humana, porque todos eram carentes sob algum aspecto. Mesmo a figura máxima da monarquia era vista como dependente da graça e misericórdia divinas. Não por acaso, os documentos régios começavam com um preâmbulo bastante regular ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, ressaltando a mercê divina concedida à figura do monarca: “por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves d‟aquém e d‟além mar em África, senhor de Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”.

A graça fazia parte de um engenhoso discurso político sustentado pela ideia de justiça distributiva, sedimentado sobretudo nos países da Europa mediterrânea (especialmente nas penínsulas Ibérica e Itálica), que buscava definir e justificar os espaços sociais das comunidades católicas, dos nobres até os mais pobres.45 As normas procuravam se orientar na máxima de que tudo era graça,46 uma vez que as relações sociais, mormente nas sociedades católicas, estariam inseridas numa mentalidade antidoral, na qual o favor religioso era uma obrigação natural.

Bartolomé Clavero, um dos principais estudiosos dos discursos jurídicos das sociedades mediterrâneas, fez o esforço de compreensão antropológica das justificativas de manutenção do corpo social nessas comunidades. Refratárias a inovações na ordem social, as sociedades católicas procuraram manter intocada a autoimagem que os povos – sobretudo as elites – faziam de si próprios como espaços organizados basicamente sobre três grandes estados interdependentes, onde cada parte deveria desempenhar uma

43 Adágios, provérbios, rifãos e anexins da lingua portugueza... p. 33.

44 BERNARDES, Manoel. Nova Floresta: ou silva de varios apophtegmas... p. 123.

45 Sobre a influência do tomismo nas sociedades ibéricas, ver: SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno... p. 414-449. Sobre a concepção “conservadora” que vigiu nas sociedades ibéricas, ver: MARAVAL, José António. A cultura do barroco... p. 217-243.

24 função específica. Uma das chaves explicativas do discurso católico pode ser encontrada na naturalização das diferenças como algo previamente determinado e que cumpriria aos homens reafirmar por meio de um intercâmbio desigual de graças e benefícios.47

Esse “sistema social”, reconhecidamente tradicionalista, movia-se a partir de uma gramática baseada na reciprocidade das operações de troca, ou seja, o dom impunha uma rede de obrigações interpessoais, nas quais aquele que recebia algo teria por obrigação retribuí-lo, sem que os valores fossem explicitamente contabilizados ou considerados.48 Tratava-se de um modelo baseado no amor e na amizade como elementos essenciais de justificação para manter a vida social, uma comunidade concebida como um círculo de afeto integrador e protetor,49 tal como adverte Pedro Mexia, no seu livro impresso em 1540:

os homens, por causa e respeito dos mesmos homens, foram formados e engendrados, e assim nasceram obrigados a ajudar uns aos outros (...) pois se só a luz natural nos mostra e declara isso, quanto mais o deve entender o homem cristão a quem a lei divina mandou amar a seu próximo como a si mesmo50

A ideia de amor como propunham os tratados e discursos morais não dizia respeito ao amor carnal, mas à boa relação entre os homens, sentimento objetivado por meio de gestos desinteressados.51 Diante de uma tradição que se fundava na literatura clássica, os discursos católicos sobre o amor como elemento explicativo das relações sociais sofreu um verdadeiro reforço em suas bases a partir do Concílio de Trento (1545-1563).

Segundo Pedro Cardim, “mais do que em dominação ou em poder, ao longo de todo o Antigo Regime falou-se em amor pelo próximo, em proteção, em confiança, em „criação‟ dos sentimentos por via do condicionamento, e, ainda, em misericórdia e em perdão”.52 Esse discurso organicista encontrava embasamento na tradição greco-

47 CLAVERO, Bartolomé. Antidora – antropologia catolica… p. 197.

48 RACINE, Luc. Les formes élémentaires de la réciprocité... p. 97-118. Ver ainda: XAVIER, Ângela

Barreto; HESPANHA, António Manuel. Redes Clientelares. In: HESPANHA, António Manuel (coord.).

História de Portugal...

49 Para um estudo detalhado do modelo ibérico ver: CARDIM, Fernando. O poder dos afetos...

50 “los hombres, por causa y respecto de los mismos hombres fueram formados y engendrados, y assi nacieron obligados, a se ayudar y aprovechar los unos a los otros (...) pues si so la lumbre natural nos muestra y declara esto, quanto mas lo deve tener entendido el hombre Christiano a quien la divina ley tiene mandado amar a su proximo como a si propio” Citado por CARDIM, Pedro. O poder dos afetos... p. 52.

51 Ver, sobretudo ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho... 52 CARDIM, Pedro. O poder dos afetos... p. 33.

25 romana, na Segunda Escolástica e no texto bíblico. Embora os exemplos bíblicos sejam numerosos, vale a pena citar um trecho bastante paradigmático da noção corporativa da comunidade cristã descrita por São Paulo, que em sua carta aos Coríntios,53 procurou legitimar os espaços e funções diferentes do corpo místico da Cristandade. Ainda que diferentes, todos faziam parte de um só organismo: eram, portanto, fundamentais como indivíduos do corpo místico da Igreja, pois “se um membro sofre, todos os membros padecem com ele; e se um membro é tratado com carinho, todos os outros se congratulam por ele”. São Paulo não apenas procurou legitimar os diferentes espaços, mas também pregou as boas relações entre os homens como forma de amainar as diferenças e manter a coesão: “Deus dispôs o corpo de tal modo que deu maior honra aos membros que não a têm, para que não haja dissensões no corpo e que os membros tenham o mesmo cuidado uns para com os outros”.

A transposição do modelo paulino para o corpo político foi feita, pela primeira vez, por João de Salisbury que, na segunda metade do século XII, havia empregado essa noção organicista recorrente na Igreja para a res publica.54 A metáfora secularizada da

monarquia como um corpo místico ressaltava a dimensão hierárquica e, num só tempo, solidária, por meio de uma união indissolúvel do mesmo corpo. Publicado na Espanha em 1529 e presente em Portugal antes de 1545,55 o Libro Segundo del Espejo del Perfecto Principe Christiano, do Frei António de Guevara, destacava o papel da cabeça como representativa do soberano; o coração, os magistrados; os olhos, as orelhas e a língua eram os juízes e governadores das cidades e províncias; as costas e o ventre, os oficiais encarregados da fazenda; os pés representavam os lavradores, oficiais e gente popular.56 Esse discurso teve considerável longevidade em Portugal e permaneceu nas mesmas bases após a Restauração de 1640. Em suma, as concepções em torno do poder régio integraram a linha católico romana e repudiaram influências de Maquiavel, dos protestantes e do pensamento galo-cristão.57

Dentro dessa perspectiva mantenedora das ordens sociais, cujas hierarquias possuíam um caráter ontológico, as relações sociais não tinham, em tese, uma propensão à elasticidade, mas, pelo contrário, primavam pelo conservadorismo. A

53 “Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os membros do corpo, embora

muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Em um só Espírito fomos batizados todos nós, para formar um só corpo, judeus ou gregos, escravos ou livres; e todos fomos impregnados do mesmo Espírito. Assim o corpo não consiste em um só membro, mas em muitos”. I Coríntios 12, 12-31.

54 DUBY, Georges. As três ordens, ou o imaginário do feudalismo... p. 288-293. 55 BUESCU, Ana Isabel. Um discurso sobre o Príncipe... p. 39.

56 Ver BUESCU, Ana Isabel. Imagens do príncipe – discurso normativo e representações... p. 194-211. 57 Ver TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do estado... v.2. p. 168-232.

26 honra, a precedência e a manutenção do estatuto social faziam parte de uma economia, cuja moeda baseava-se na troca de favores, no reconhecimento das hierarquias, no valor da amizade.