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DESVALORIZAÇÃO DO SABER E DA PRÁTICA DOCENTE: APROXIMANDO O OLHAR

PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE

8.1 DESVALORIZAÇÃO DO SABER E DA PRÁTICA DOCENTE: APROXIMANDO O OLHAR

Antes de discutir efetivamente a medicalização do professor, é necessário compreender as condições políticas e sociais as quais os educadores são submetidos na sua prática diária.

Uma das primeiras questões que perpassam a prática docente é a falta de estrutura física das escolas públicas do país. Salas quentes, às vezes apertadas e com acústica ruim atrapalham o processo de ensino-aprendizagem, tanto na perspectiva dos alunos como na dos professores. Os locais que funcionam algumas

escolas nem sempre foram construídos para esse fim, bem como por vezes não recebem os cuidados e reparos necessários. Na rede municipal de Salvador, é comum ver unidades escolares funcionando em locais adaptados e, às vezes, reformados superficialmente para funcionar como escola12. A distribuição dos espaços nem sempre é satisfatória, gerando salas inadequadas e pouco ou nenhum espaço para correr, brincar e realizar outras atividades educacionais, comprometendo a concentração e bem-estar de alunos e professores.

Aliado às instalações físicas precárias, outro problema comum às escolas é a grande quantidade de alunos por turma. É comum aos profissionais de educação terem que lidar com uma sala cheia de crianças e adolescentes para ensinar. Esse fato é um complicador para que seja ofertado um ensino de qualidade, não só pela dispersão que uma sala lotada causa, mas também por impossibilitar o acompanhamento próximo ao aluno, o respeito às suas dificuldades e dúvidas e a construção coletiva do saber. Para além do já citado, nessas condições, o professor também tem que falar mais alto, durante uma jornada diária de trabalho pesada, o que compromete a saúde, por exemplo, da sua voz.

No que tange à citada jornada de trabalho, é necessário colocar que, devido à má remuneração, os professores, para melhorar sua condição salarial, trabalham em mais de uma escola, por vezes, ocupando os seus três turnos diários13. Nessa rotina, em que não se tem tempo para nada, muitas vezes, nem para se alimentar direito, o professor sente-se exausto, impaciente e frustrado por não conseguir realizar um bom trabalho. Além do exposto, essa rotina dificulta que o professor crie vínculos com os alunos e com a escola, impossibilitando o acompanhamento, reflexão e construção de estratégias de casos particulares (PAPARELLI, 2009).

Posto o anterior, é de fundamental importância ressaltar o papel das políticas educacionais no constante processo de desvalorização do professor. Embora seja o docente o ator principal das questões educacionais, essa categoria fica alheia às

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Alguns espaços que funcionam como escola são casas de entidades filantrópicas e/ou religiosas cedidas para a prefeitura. Durante a experiência da pesquisadora como arte-educadora em uma ONG que atua na rede municipal da cidade do Salvador, era comum chegar em escolas que antes funcionavam como galpão, outras que não tinha pátio, apenas escadas e salas de aula em cima e embaixo; ficando a diretoria sem sala e as crianças sem espaço para o recreio.

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A categoria de professores é formada em sua maioria por mulheres. Na sociedade machista que vivemos, cabe à mulher as tarefas domésticas; cuidar da casa e dos filhos é uma obrigação dela, mesmo quando ela trabalha fora de casa. Nesse sentido, como são também donas-de-casa, a jornada de trabalho fica ainda mais pesada, pois tem os dois ou três turnos em sala de aula e mais uma jornada doméstica.

elaborações de políticas que regem as práticas escolares. Tais políticas são pensadas e criadas por quem sequer vivencia o contexto escolar, que esperam do professor o mero papel de executor de ordens superiores. Assim, como já citado na seção que foi tratado sobre o ciclo escolar, esse modo hierarquizado de pensar e implementar as políticas silencia as reais demandas da educação, demandas essas que os professores têm conhecimento; bem como tenta reduzir os educadores a meros técnicos que cumprem ordens, ou seja, colocá-los no lugar de peões da escola, trabalhadores braçais da educação, alheios ao seu próprio trabalho (PATTO, 2010b). Resistir a isso tem sido a luta de muitos professores, mas não sem sofrimento.

Mesmo diante dessas condições de exclusão do processo de elaboração de políticas, o professor é, a todo tempo, convocado a ser criativo na sua prática, responsável pelo seu planejamento e pela elaboração de projetos. Mas essa demanda não vem no sentido de quebra de hierarquia e democratização da escola, mas como uma sobrecarga de trabalho, pois vem desvencilhada de autonomia (PAPARELLI, 2009).

Muito pelo contrário, o professor é “convidado” a ser “criativo” nos estreitos limites colocados pelas regras da educação, definidas nos gabinetes dos tecnoburocratas e “especialistas” da área. Essa “criatividade” também é bastante solicitada para fazer funcionar as instituições educacionais com parcos recursos materiais e falta crônica de profissionais (PAPARELLI, 2009, p.17).

Nesse sentido, se as políticas educacionais apresentarem poucos resultados e muitas falhas, a culpa cairá (como tem caído) nos ombros dos professores, que não souberam fazer seu trabalho direito. Tudo isso se torna um ciclo vicioso e o professor vai trazendo para si, ou unicamente para si e para o aluno, a responsabilidade pelo sucesso ou fracasso das questões educacionais. Muitos professores buscam estratégias para lidar com as dificuldades encontradas, desgastam-se para pensar sozinhos em soluções e, por fim, frustram-se em não conseguir transformar sozinhos uma realidade tão complexa (PAPARELLI, 2009).

Dessa forma, esse desgaste intensifica-se ainda mais quando os docentes se veem sem apoio nessa busca por melhorias. Eles tentam criar e fazer a escolarização acontecer com mais qualidade, mas não têm apoio do poder público para que o trabalho aconteça. Aliado a esse sentimento de solidão, muitos docentes sentem-se desmotivados com a falta de reconhecimento pelo seu trabalho, oriunda

dos mais diversos setores da sociedade. O professor é visto, de maneira geral e com o reforço das grandes mídias, como um profissional de subcategoria, desinteressado e mal formado14 (PAPARELLI, 2009).

Os profissionais da educação carregam consigo a marca do mito da incompetência docente, em um argumento que tem no seu cerne a ideia de que um dos principais motivos para a baixa qualidade do sistema educacional é a incompetência dos professores, os quais são mal formados, tecnicamente incompetentes e politicamente descompromissados (SOUZA, D., 2014). A lógica hegemônica se pauta no seguinte mito:

Em função de sua má formação inicial, os professores não saberiam como lidar com a diversidade de alunos presente nas escolas hoje, especialmente aqueles das camadas populares. Consequentemente, seguindo essa linha de raciocínio, a única ou a principal ação a ser perseguida para melhorar a qualidade do sistema educacional, seria melhorar a competência dos professores (SOUZA, D., 2014, p.80).

A “melhoria” proposta para a mudança educacional é, com base nesse viés, garantir que esses professores sejam mais bem capacitados (em uma denominação que reforça o lugar de incapaz) através de cursos de formação continuada, que dariam conta, sozinhos, de suprir as “deficiências” da formação inicial, uma vez que proporcionariam ao professor o contato com novas teorias e técnicas facilitadoras de ensino-aprendizagem (SOUZA, D., 2002). Como se fosse falta de saberes atualizados os problemas enfrentados na educação pública, a partir dessa concepção, recai, mais uma vez, para o professor, individualmente, a responsabilidade e a cobrança pela qualidade no sistema educacional. Esse modo cristalizado de análise ignora todos os condicionantes políticos, culturais, sociais e escolares que fazem com que a educação oferecida às camadas populares não seja de qualidade e não cumpra com seu objetivo primordial de ensinar.

Dessa forma, os professores são culpabilizados pelas dificuldades de escolarização apresentadas pelos alunos e buscam, com isso, nos cursos de formação continuada oferecidos, respostas imediatas para os problemas enfrentados em sala de aula (SOUZA, D., 2002). Ao não encontrarem as soluções

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É possível perceber a forma como a mídia reforça esse tipo de concepção durante a cobertura das greves dos professores. Frequentemente, os veículos midiáticos culpabilizam o professor pela situação de greve, mostrando entrevistas com familiares e, às vezes, também com alunos que dizem sentir-se prejudicados pela falta de aula nesse período.

esperadas, vivenciam essas questões como problemas individuais, incorporando o argumento de incompetência, esvaziando sua prática de sentido e, não raro, apontando o dedo para seus colegas de trabalho.

Por incorporar e fazer parte dessa concepção ideológica dominante, os professores, comumente, não percebem que as limitações de sua prática vão muito além do modo individual de saber e atuação docente e, diante de questões estruturalmente políticas, buscam soluções individuais para lidar com as condições precárias e desrespeitosas às quais estão expostos. Dessa maneira, os professores são acometidos por justificativas medicalizantes que se propõem a explicar e tratar o mal-estar e a angústia vivenciados rotineiramente por esses profissionais, entendendo-os como uma questão particular do próprio docente.

8.2 DESGASTE MENTAL E PROCESSO DE ADOECIMENTO DO PROFESSOR

O afastamento de professores por questões de saúde, tanto física quanto mental, tem sido cada vez mais frequente na realidade escolar, sobretudo das escolas públicas. As problemáticas políticas e sociais apresentadas anteriormente são condicionantes estruturais para que esse processo de adoecimento do professor ocorra. Porém, quando pesquisadores, profissionais de saúde, mídia e até mesmo os próprios professores voltam-se para a compreensão da temática, eles tendem a analisar as más condições de trabalho como fator desencadeante e não constitutivo do problema (PAPARELLI, 2009).

Quando o educador se vê diante do mal-estar provocado pelos problemas educacionais, eles, frequentemente, buscam alternativas individuais de lidar com isso e sanar tais “sintomas” (PAPARELLI, 2009). O professor chora escondido para pôr para fora as frustrações trazidas pela impossibilidade de exercer seu papel fundamental de educador; procura um fonoaudiólogo para ajudá-lo a preparar melhor a voz, aquecendo-a e desaquecendo-a, para encarar uma jornada imensa de trabalho em turmas lotadas e salas com pouca acústica; vai a um especialista para tratar do seu estresse; e silencia os verdadeiros problemas fazendo uso de psicofármacos ou medidas alternativas de saúde.

No sentido do exposto, como nos mostram algumas pesquisas feitas na Bahia e em outros estados do Brasil, é comum encontrar professores com disfonia (MACEDO; SOUZA; PONDÉ, 2008; PROVENZANO; SAMPAIO, 2010), dores