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O desvendar dos olhos: novas perspectivas e reflexões sobre concepções de moda e tradição

Em uma certa altura do desenvolvimento da pesquisa, busquei com- preender como se dá, na comunidade, a manutenção de tradições no vestir. Para tanto, foi necessário me despir de algumas concepções, carregadas de uma errônea noção de exotismo e diferença, associadas aos modos de ves- tir das mulheres Kalunga. Ao buscar compreender se existe uma noção de moda atribuída à comunidade, tornou-se claro como a divisão clássica ado- tada pela historiografia da moda se limita a uma perspectiva eurocentrada, desprezando a importância de trânsitos culturais. Esta contudo, conforme comenta Taylor (2013), tem sido confrontada a partir dos estudos pós-co- loniais e de uma compreensão de moda e cultura mais consciente acerca dos cruzamentos culturais e de uma interdependência global que esvazia o sentido de culturas homogêneas.

Gostaria de mencionar aqui, de forma sucinta, como o meu olhar so- bre o objeto de pesquisa adquiriu nova forma. Uma mudança significativa da minha abordagem aconteceu quando me dei conta de que o estudo da indumentária de um determinado grupo social não pode ser pautado em

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premissas de homogeneidade. Isso aconteceu a partir de uma percepção de que tanto entre as mulheres negras retratadas em fotografias do século XIX, quanto entre mulheres Kalunga, existe pluralidade e diferenciações. Burke (2005) ao discutir a complexidade da construção de determinadas segmen- tações sociais, problematiza da seguinte forma essa questão:

Quem é “o povo”? Todos, ou apenas quem não é da elite? Neste último caso, estaremos empregando uma categoria residual e, como acontece muitas vezes em se tratando des- sas categorias, corremos o risco de supor a homogeneida- de dos excluídos. Talvez seja melhor [...] pensar as culturas populares no plural, urbana e rural, masculina e feminina, velha e jovem, e assim por diante (p. 40).

O autor sugere que se considere que um mesmo indivíduo possa per- tencer a culturas ou subculturas autônomas. Essa noção foi sendo reforçada na pesquisa à medida em que eu me aprofundava no estudo das imagens do século XIX e do meu contato com a comunidade Kalunga.

Com isso, pude compreender que não seria possível falar de construções de indumentária que representassem esses dois grupos de mulheres tão dis- tintos, em sua complexidade. Considerando ainda que estes são formados por mulheres que, apesar de compartilharem de algumas semelhanças no modo de vestir, possuem suas particularidades, inclusive no que diz respeito à sua

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al relação com a indumentária. Quanto às mulheres Kalunga, foi possível notar

como essa relação, apesar de ser permeada por um senso de pertencimento à comunidade, é plural e fortemente influenciada pela individualidade de cada uma, tendo ainda uma influência da geração à qual pertencem.

A minha noção de tradição relacionada à indumentária também foi confrontada a esta altura. A princípio eu tinha em mente uma ideia crista- lizada acerca da existência de um modo de vestir que representasse uma tradição das mulheres da comunidade devido à característica combinação de saia rodada, blusa e lenço na cabeça, uma vez que esta foge de um modo de vestir aos moldes da contemporaneidade. Minha impressão era de que os elementos desse modo de vestir, usados cotidianamente, seriam um ícone de representação de uma tradição das mulheres da comunidade. Ao con- versar com elas e vivenciar brevemente o contexto da comunidade percebi, contudo, que estava me amparando em uma perspectiva reducionista.

Portanto, para pensar os atravessamentos diversos presentes na construção de modos de vestir de mulheres da comunidade, recorri ao conceito de tradição proposto por Burke (2005) que auxiliou na compre- ensão de que tradição e inovação não são ideias antagonistas. Para o autor “A ideia de cultura implica a ideia de tradição, de certos tipos de conheci- mentos e habilidades legados por uma geração para a seguinte” (p. 39). Ele comenta ainda que “uma aparente inovação pode mascarar a persistência da tradição.” Enquanto “inversamente, os signos externos da tradição po-

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dem mascarar a inovação” (p. 39), desse conflito surge a necessidade de compreensão de que “o legado muda [...] no decorrer de sua transmissão para uma nova geração.” (p. 40).

Duas falas de uma interlocutora da pesquisa tiveram papel fundamen- tal para despertar uma nova percepção nesse sentido. Na primeira ela evi- dencia como a manutenção de tradições no vestir pode ser sutil e diversa, ao mencionar o uso de trabalhos manuais na confecção de itens do vestuá- rio, combinados simultaneamente com itens que também são popularizados fora do contexto da comunidade (como o short jeans). Ela menciona também como as escolhas de vestuário se diferem entre gerações de mulheres da comunidade. E ainda, como as circunstâncias, como as que envolvem a rea- lização de danças, interferem na adoção de determinados modos de vestir. Ao comentar sobre o uso de saias longas e rodadas, ela diz:

Essas roupas, a gente faz para dançar. No dia-a-dia aqui, hoje, já entrou a moda de mostrar imbigo e coxa. Então, as menina[s] usa[m] mais é short jeans, é blusinha e tal, mas gosta[m] de usar um “topzinho” de crochê, uma blusa de crochê, faz blusa de frio de crochê. Elas gosta[m] muito de usar isso e esse crochê se for feito com linha de algo- dão, porque com um tempo frio desse, melhor ainda. Aí, elas faz[em] calça de tecido de chita, tem aquele outro te- cido, gorgurão, que elas faz[em] também, né? Costura[m] na mão, muitas costura[m] na mão. Eu aprendi costurar na

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al máquina tem uns cinco anos. [Sic] (Dalila, mulher Kalunga

moradora do Engenho II, 2018).

O exemplo reforça a ideia proposta por Burke (2005) de que o legado muda e é transmitido de diferentes formas entre gerações, em um processo em que inovações vão tomando lugar em meio às tradições.

Essa noção pode ser ainda expandida através dessa segunda fala em que a mesma interlocutora tece um comentário sobre o uso de saias e vesti- dos entre as mulheres da comunidade:

Então, por isso da saia, vai passando de geração em geração. Ou é um vestido, ou é uma saia. De 2014 pra cá que, parece, que eu vi, foi a Dona [...] ela costura na máquina lá no Vão do Moleque, lá ainda não tem energia. Ela costura naquela Sin- ger de pedal, ela fez um macacão. [...] As mais novas hoje só querem fofocar. Fazem esse tipo de vestido pras boneca[s]. É a forma que as mãe[s], ou a vó arranjou de continuar passando. [Sic] (Dalila, mulher Kalunga moradora do Engenho II, 2018).

Ao falar da confecção de roupas para as bonecas, ela traz à tona dife- rentes formas de transmissão de uma tradição entre gerações, que não se limitam ao vestir. Isso me levou a compreender que, por meio de sua relação com as roupas, as jovens Kalunga mantêm uma tradição cultural que é le-

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gada de uma geração a outra, inovando-a com a atribuição de suas próprias vivências e preferências. Assim, configura-se na comunidade uma relação dinâmica das mulheres com a indumentária e suas significações. Esta é re- configurada à medida em que é atravessada por processos de elaboração identitária que estão para além do vestir, uma vez que de forma sensível es- sas mulheres ressignificam e reposicionam a indumentária, criando para ela deslocamentos funcionais e de sentido (CABRAL, 2019).