Roupas são objetos portadores de informações que nos permitem co- nhecer suas histórias. Segundo Brandi, Riello e Muzarelli (2010, p. 2):
Todos nós somos portadores de história de moda, frequen- temente autobiográficas, como também o foram, nossos pais e avós. [...] Além do elemento estritamente autobio- gráfico, as muitas e diversas histórias de moda fornecem informações sobre objetos e seus usos cotidianos ou sobre como pessoas comuns davam um sentido à indumentária.2
1. Este artigo é vinculado à tese de doutorado da autora (NOVAES, 2019) defendida em 2018 na Universi-
tà di Bologna, Itália e publicada em 2019 no repositório da Alma Mater: <https://bit.ly/2ThrLWP>. Agra- deço à João Lorenço Novaes Pessoa e à Isabela Novaes Pessoa pela leitura crítica e cuidadosa do texto. 2. Todas as traduções do italiano e do inglês para o português são de minha autoria.
Um spencer
Belle Époque
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s Roupas históricas de pessoas ricas e famosas ou de sujeitos comuns
são raras no interior do Brasil. Se existem acervos, para além daqueles pul- verizados e expostos em poucos museus do país, estes são privados e podem estar guardados em baús de famílias.
Este estudo analisa um spencer3 Belle Époque4, raro testemunho de ob-
jeto têxtil do Triângulo Mineiro, região do interior de Minas Gerais. De con- cepção francesa, ele foi construído (modelado, cortado e costurado)5 e usado
na cerimônia de casamento da jovem Maria Umbelina de Novaes, apelidada Inhazinha, então com 15 anos de idade, em Villa Platina6, hoje Ituiutaba. Como
3. Spencer é uma jaqueta curta usada tanto por homens quanto por mulheres.
4. O período denominado de Belle Époque não é unânime entre os inúmeros autores consultados, muitos dos quais nem mesmo o precisam em suas obras. Adotamos o período claramente definido por Marie Fogg (2014, p. 196) e por Sevicenko (1998, p. 34) que vai de 1890 a 1914. Sevicenko (1998, p. 34) sus- tenta que “[a] estabilização brasileira assinala uma sincronia com a ordem internacional, na medida em que no plano global o processo de transição desencadeado pela Revolução Científico-Tecnológica gerou um amplo excedente de produção lançando o conjunto do sistema numa “grande depressão” de que só iria emergir a partir de 1890. [...] O enriquecimento baseado no crescimento explosivo dos negócios for- mou o pano de fundo do que se tornou conhecido como ‘os belos tempos’ (Belle Époque)”. A percepção dessa sincronia também em relação à adoção das modas francesas pela burguesia brasileira norteou a adoção do termo como referência a este período nos meus estudos. O termo Belle Époque é tratado em
A era do capital (HOBSBAWM, 2010) e em A era dos impérios (HOBSBAWM, 2010).
5. A expressão “construção de roupas” adotada neste trabalho se refere aos recursos com os quais se faz vestimentas, neste caso, ao corte e à costura da matéria têxtil. Para conhecer os usos do termo relacionados à vestimenta ver: recursos construtivos em Saltzman, (2004, p. 85). Janet Arnold usa o termo no título de seu livro Patterns of Fashion 2: English women’s dress and their construction c. 1860-
1940. Para Anette Fischer (2010, p.7) “a construção é a base do vestuário e do design de moda [...]
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Coleção Desenrêdos, volume 13, 2021
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pontuam Brandi, Riello e Muzarelli (2010, p. 2), essa é uma história que reco- nhece sujeitos anônimos como portadores de história da moda7, pois o spen-
cer em análise, originalmente, pertenceu à avó da autora deste estudo. O objetivo geral desta pesquisa é buscar informações que nos permi- tam compreender as influências e os condicionantes de atividades dinâmi- cas como a concepção, o projeto e a manufatura de uma roupa no interior do Brasil da Belle Époque. Almejo estudar as formas, as técnicas e os processos de construção deste objeto têxtil. Para isso, parto da análise do objeto segun- do um método da cultura material (PROWN, 1994)8, exploro a pesquisa do-
cumental, a investigação bibliográfica e os resultados de dois experimentos de reconstrução desta blusa. Objetivo especificamente confrontar as infor- mações obtidas pelos resultados destes dois experimentos de reconstrução do objeto: o primeiro, uma interpretação utilizando métodos de modelagem e de costura da atualidade (NOVAES, 2010) e o segundo baseado naqueles contemporâneos ao período em que foi concebido e usado (NOVAES, 2019),
7. Uso o termo “moda”, no sentido de fenômeno social que “se configura quando a mudança é buscada por si mesma, e ocorre de maneira relativamente frequente” (SVENDSEN, 2010, p. 24). Já o termo “modas” se refere aos gostos, assim como modos de agir, viver e sentir coletivos e que estão em cons- tantes mudanças.
8. O método de Jules Prown prevê três etapas distintas para a análise de objeto: parte da “descrição, que é a anotação das evidências do próprio objeto; para a dedução, interpretando a interação entre o objeto e o observador; para a especulação, que vai levar as hipóteses e questões derivadas do obje- to para outras evidências, externas, para que sejam testadas e resolvidas.” (1994, p. 133). Na análise deste objeto em 2010/2 (NOVAES, 2010), todas as etapas foram exploradas embora não possamos descrevê-las neste ensaio.
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s por isso filológico. Considerando que a roupa é uma possibilidade de re-
construção do suporte em que a morfologia do corpo do sujeito e aquela da indumentária são duplamente condicionantes, busco também alcançar os vestígios desta relação. A pesquisa se estrutura como descrição e interpre- tação pelos métodos dialético e historiográfico através de operações como contextualização, associação, comparação, análise e ampliação.
O artigo aborda a circulação intercontinental de modas e técnicas de cor- te e costura francesas através dos periódicos e manuais técnicos do período e descreve: a trajetória do artefato, a análise do objeto pelos métodos da cultura material, os dois processos de reconstrução distintos e as relações entre a vila e os centros produtores de modas, de tecnologias e de bens de consumo.