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DESVENDAR O TEXTO DAS RUAS: A INCESSANTE DEAMBULAÇÃO DA ESCRITA

3. DESLOCAMENTOS ESPACIO-TEMPORAIS 1 AS GRANDES TRAVESSIAS

3.2. SOBRE A CIDADE

3.2.1. DESVENDAR O TEXTO DAS RUAS: A INCESSANTE DEAMBULAÇÃO DA ESCRITA

Ao longo do tempo, a imaginação humana tem oferecido respostas variadas a este fenômeno no qual se constitui a cidade e sua imagem sempre mereceu múltiplas associações, todas caracterizadas por fortes sentimentos ambivalentes: a presunção de Babel, a corrupção de Babilônia, a perversão de Sodoma e Gomorra, o poder de Roma e a revelação de Jerusalém. Talvez isso aconteça porque a cidade foi percebida, desde o início, como o lugar onde pulsa mais fortemente a vida e, significativamente, essas antigas aglomerações urbanas, descritas nos épicos e na Bíblia, têm conservado sua força metafórica através da história ocidental.

Na literatura, a cidade é, antes de tudo, uma imagem e como imagem, é grande demais e imensamente complexa para ser pensada apenas como um topos literário, já que possui uma dupla referência: ao objeto material no mundo exterior e aos reflexos e refrações desse objeto “introjetados” na mente de escritores e leitores. Na verdade, as associações em relação à determinada cidade já se encontram delineadas no pensamento de um leitor antes que este se debruce sobre o livro que a contém e recria como um

conjunto coerente de representações que pode ter, apenas, uma tênue ligação com a cidade de concreto abordada. A cidade real fornece o material para a composição do mito literário, e adquire, com isso, um valor mítico, atribuído pelo autor que, ao dar determinado arranjo aos elementos da realidade, procura uma correspondência com a ideia da cidade primeiramente concebida em sua mente. Isso equivale a dizer que um autor não se limita a representar mimeticamente a cidade que vê, mas faz com que as visões por ele percebidas correspondam a um modelo pré-existente.

Embora, frequentemente, estejamos habituados a pensar a cidade narrada como um fenômeno moderno, desde o aparecimento das primeiras manifestações literárias, encontramos suas representações na literatura. É impossível, para nós, conceber a Epopéia de Gilgamesh16 sem o núcleo urbano de Uruk, de onde parte o herói para a sua longa viagem e ao qual retorna ao final, tanto quanto não se pode pensar na Ilíada ou na Eneida, ignorando a cidade de Tróia, à qual os dois poemas se conectam. Isso porque a cidade, mesmo sendo uma realização especificamente humana, de tal forma se integra à paisagem física, que passa a compor o ambiente natural onde circulam personagens e desenvolvem-se as tramas e, embora cada uma delas possua suas características e sua história individual, parece que apresenta padrões comuns a todas, sendo que, deles, o mais facilmente identificável talvez seja a interpenetração de passado e presente. Se por um lado existe uma cidade visível com ruas e construções – formas cristalizadas de vidas condensadas em diferentes épocas no passado, em torno das quais rodopiam vertiginosamente as vivências do presente –, por outro lado, existem, nas mentes dos habitantes, correntes subterrâneas de pensamentos, que se originam, justamente, dessa combinação de passado e presente. Essas elaborações mentais incluem as ligações da cidade com o reino dos mortos e se expressam materialmente através de seus templos, cemitérios, cerimônias de culto às tradições, bem como através de seus velhos edifícios, enquanto estes se constituem como sede do poder secular encarnado por reis e governantes e instituições financeiras.

Seguindo o pensamento de Burton Pike (1981), para quem “a cultura do passado não é apenas a memória da espécie humana, mas nossa própria vida enterrada” (PIKE, 1981,p. 4), chegamos à conclusão de que pensar a cidade, debruçar-se sobre o seu texto de pedra, enquanto registro, cristalização das energias de outrora, leva a um reencontro, 16 A Epopéia de Gilgamesh é um poema épico da Mesopotâmia, uma das primeiras obras conhecidas da

literatura mundial. Algumas das tábuas de argila que a contêm foram datadas do século XX a.C, constituindo-se a narrativa, a mais antiga referência conhecida sobre o “dilúvio” (OLIVEIRA (trad.), 2001)

um reconhecimento, uma descoberta na qual nos deparamos, não com um passado estático, fixo, acabado, mas com os contornos culturais de nosso próprio presente. Daí, dessa tensão inerente às relações que o homem estabelece com seu próprio mundo criado, decorre, provavelmente, a importância que a cidade adquire na literatura do Ocidente, bem como a atração hipnótica pelas narrativas de sua destruição, desde Troia, Sodoma e Gomorra, e Cartago.

Indagar sobre as representações da cidade na cena escrita construída pela literatura é, basicamente, ler textos que leem a cidade, considerando não só os aspectos físicos geográficos das mesmas – a paisagem urbana – os dados culturais mais específicos, os costumes, os tipos humanos, mas também a cartografia simbólica em que se cruzam o imaginário, a história, a memória da cidade e a cidade da memória. É, enfim, considerar a cidade como um discurso, ou melhor, uma linguagem, já que ela fala a seus habitantes que, por sua vez, também lhe falam quando circulam por ela, dirigem para ela o seu olhar, habitam-na, como propõe Barthes (1985).

A cidade escrita é então resultado da leitura, uma construção do sujeito que a lê enquanto espaço físico – levando em conta seus contornos arquitetônicos, o traçado de suas ruas, seus habitantes –, como mito cultural, pensando-a como condensação simbólica de energias do passado e do presente, e como cenário de mudanças, numa prospecção de significações futuras. Escrever, portanto, a cidade é também lê-la, mesmo que ela se mostre ilegível em uma primeira abordagem; é engendrar uma forma para essa realidade sempre móvel. Mapear seus sentidos múltiplos e suas múltiplas vozes e grafias é uma operação que procura apreender a escrita da cidade e a cidade como escrita, num jogo aberto de possibilidades em que se entrecruzam perspectivas variadas.

Quando se escolhe analisar a presença da cidade na literatura contemporânea, é preciso levar em consideração a noção de “metrópole”, pois a cidade grande do século XX é um lugar de intensa aglomeração, rede de concentração da maioria das necessidades humanas, palco de transformações radicais no contexto econômico e social, das quais o escritor se faz testemunha e cronista, sem, no entanto limitar-se a uma contemplação passiva e distanciada.

Régine Robin, em uma entrevista concedida a Yan Hamel (2008), considera que as grandes cidades – Nova York, Los Angeles, Tokio, Londres, por exemplo – são suporte de nosso imaginário, mesmo se nós nunca tivermos nelas posto o pé, porque são cidades que nos habitam através de todos os textos produzidos sobre elas, na literatura, no cinema ou em séries televisivas. “Essas cidades, nós as conhecemos, não apenas nós

as conhecemos, mas elas são completamente fantasmáticas e, afinal de contas, gostamos mais de fantasmas do que de realidade” (ROBIN e HAMEL, 2008, p. 23). Em Mégapolis, les derniers pas du flâneur, livro que publicou em 2009, a autora fala de sua paixão pelas cidades grandes:

Hoje em dia como antigamente, é o calçamento das cidades que me entusiasma, as ruas, sua animação, as praças, os monumentos, as luzes à noite, os letreiros de neon, a calçada molhada depois da chuva, o cheiro do metrô, o barulho do ônibus quando se aproxima do ponto, a buzina do táxi querendo atravessar o sinal vermelho, as mulheres apressando-se em voltar do mercado com seus filhinhos, os jovens em bando, aos gritos enquanto descem de patins o boulevard, os namorados que continuam a se beijar nos bancos de rua. (ROBIN, 2009, p.9)

Ainda sob a ótica da autora, é preciso fazer uma distinção entre a escrita da megalópole, que em sua descontinuidade e fragmentação, reproduz, de certa forma, o tecido urbano ao qual se conecta e a escrita das metrópoles, textos produzidos a partir do século XIX até inícios do século XX, mais especificamente, os anos vinte, quando assistimos a uma metropolização do mundo. Nesse contexto, vale a pena destacar a flânerie, como uma prática de apropriação do espaço urbano e a figura do flâneur como personagem consagrado pela literatura da época e que reaparece em textos contemporâneos, mesmo que se apresente, alternadamente, sob suas inúmeras faces.