3.2.3 A CIDADE E SUA LITERATURA NO CONTEXTO QUEBEQUENSE
5. REFLEXÕES CONCLUSIVAS
A ideia central deste trabalho consiste na reflexão sobre os deslocamentos, que procuramos explorar não apenas no sentido físico do termo, ou seja, como movência no espaço geográfico, mas também, em uma acepção mais ampla, como a descentralização do sujeito, em virtude das mudanças radicais advindas à sociedade ocidental na posmodernidade.
O século XX assistiu a transformações bastante significativas na maneira pela qual o indivíduo se relaciona com o mundo e com os outros indivíduos, o que abalou antigas certezas e ocasionou o surgimento de novos padrões identitários, plurais e cambiantes. O homem atual não se reconhece, apenas vislumbra em sua sombra fugidia uma possibilidade incerta. Daí a necessidade do diálogo com o tempo, com a história, do retorno às origens na tentativa, não de repetição do passado, mas de sua “refiguração” com vistas a uma renovação e regeneração da existência individual ou coletiva.
Essa sensação de dissolução, de deslizamento reflete-se nas artes em geral e, em particular, na literatura da contemporaneidade, já que esta, embora não possa ser considerada como um espelho do mundo, apresenta forte ligação com a sociedade, na medida em que absorve e expressa as condições de um dado contexto em que é produzida. A ficção não é, portanto, um obstáculo para se acessar a verdade, mas, ao contrário, muitas vezes, colocando-se a serviço da representação da invisibilidade da história, de seu sentido escondido, subestimado, negado, de suas ambiguidades ou do não dito, revela-se a única forma possível de abordar certos conteúdos que escapam à representação objetiva das ciências exatas. Não se trata de eliminar o lugar do literário, mas de conferir-lhe outro estatuto além do estético.
Se é certo que as nações colonizadas da América tiveram que afirmar-se culturalmente frente à matriz europeia, no caso do Quebec, essa situação adquire contornos novos. A cessão, pela França, de sua colônia na América do Norte à Inglaterra – como consequência do acordo que pôs fim à Guerra dos Sete Anos, no século XVIII – gerou entre os canadenses franceses uma situação ambígua de repúdio ao regime britânico e, ao mesmo tempo, de mágoa pelo fato de terem sido abandonados pela pátria mãe, a França. Tornam-se “cidadãos de segunda classe”, voltados sobre si próprios, por medo da assimilação à cultura dominante, ausentes da esfera econômica e excluídos do poder político pela coroa britânica. Aferram-se aos valores da herança da colonização francesa: a língua e a religião. A partir de então, os canadenses franceses viverão sob o domínio da igreja católica e de sua elite política conservadora até que nos anos 60 do século XX, transforma-se radicalmente sua busca identitária. Jovens políticos idealistas e nacionalistas reúnem-se sob a bandeira do Partido Liberal do Quebec e ganham a eleição de 1960 com o slogan “Maître Chez Nous”. É a época da deflagração da Revolução Tranquila que preconiza o exercício da modernização em profundidade do sistema político e social do Quebec. Durante os anos 70 e 80, assiste-se ao desenvolvimento de um sentimento muito forte de apego em relação ao Estado quebequense e, ao mesmo tempo, a uma conscientização do pertencimento ao continente americano. Os quebequenses não são mais “franceses da América”, nem “canadenses franceses”, pois passam a assumir plenamente sua “québécité” e sua “américanité” no plano econômico e político, tanto quanto cultural.
Os dois romances de Jacques Poulin que escolhi para análise, publicados um no final dos anos 70 e outro no princípio da década de 80, refletem bem o questionamento em relação às duas tendências entre as quais se debate o quebequense: a fixação às
raízes francesas de sua colonização e o reconhecimento da sua natureza americana. Na verdade, essa preocupação ronda, de forma menos explícita, os primeiros quatro romances poulinianos que parecem descrever um movimento de aproximação do tema que em Les grandes marées é tratado de maneira alegórica, sendo a sociedade formada na “Île Madame” uma reconstituição paródica da própria sociedade quebequense, insular, mas almejando, conforme os ideais difundidos pela Revolução Tranquila, o ingresso na sociedade capitalista em que os valores materiais, o trabalho e a organisação material importam mais que as relações interpessoais.
Em Volkswagen blues, temos o personagem escritor pouliniano, alterego do autor, que se exila de sua “francité”, partindo numa viagem à procura do irmão, do Outro, daquele com quem compartilha a terra de origem, o solo americano. A viagem através do continente oferece aos protagonistas, Jack e Pitsémine, a oportunidade de reverem fatos históricos da colonização francesa, da conquista do oeste pelos pioneiros, bem como de avaliarem criticamente as ações do europeu colonizador em relação à população indígena da América. Pelo final pessimista do romance, a decadência na qual é encontrado Théo, o irmão tão sofregamente buscado por Jack Waterman, Jacques Poulin representa a decepção com os rumos tomados pela civilização que se desenvolveu na América, estruturada sobre a violência e degenerada numa atitude de culto ao materialismo em detrimento dos valores humanos e subjetivos da existência.
Nosso estudo do livro L’immense fatigue des pierres, de Régine Robin, teve, como fio condutor, os deslocamentos que, embora estejam presentes no livro em sentido espacial – as deambulações na cidade ou a travessia em direção à América – prende-se, sobretudo à viagem da origem. Tendo como motivação para sua realização o propósito da autora de chamar à vida seus 51 parentes desaparecidos durante a Segunda Grande Guerra, é natural que o livro constitua-se como uma evocação indireta do Genocídio, percebido como uma imagem difusa, etérea e fluída que se desprende das páginas lentamente, como a fumaça cinzenta escapava pelas chaminés dos fornos crematórios dos Campos de Concentração.
Publicado em 1996 em Montreal, essa coletânea composta por sete novelas é considerada pela crítica o terceiro projeto literário da autora, sendo antecedido por dois romances: Le cheval blanc de Lenine (1978) e La Québécoite (1983). A publicação de seu primeiro romance coincide com sua instalação definitiva no Canadá e marca também, em sua escrita, a inauguração desse gênero híbrido e polifônico que mistura relatos históricos, colagens discursivas, fragmentos de autobiografia e ficção e que se
presta à exploração de temas que são recorrentes não apenas em sua obra ficcional mas também em seus ensaios teóricos: a identidade, a memória, a origem, a guerra, a ou as línguas, os deslocamentos.
Na verdade, a atividade da escrita, para Robin, significa um processo de aproximação de suas raízes familiares, da busca de uma origem que, até determinada época de sua vida, permaneceu, de certa forma, ignorada. A militância comunista prevalecia, durante sua infância e juventude, sobre seu pertencimento ao judaísmo, ao qual, apenas através da língua – o ídiche, falado cotidianamente no ambiente familiar – sentia-se relacionada. Após a morte de seus pais, experimenta a necessidade, a urgência, de assumir sua judeidade, compreendida não como uma identidade cultural rígida, mas, ao contrário, como uma desconstrução de modelos identitários previamente determinados, como um vazio, uma falta, uma ausência de fronteiras delimitadoras. É exatamente esse sentimento ambíguo de situar-se simultaneamente dentro e fora, de não-pertencimento que define o exílio robiniano que se estende para além das contingências de deslocamentos geográficos e espaciais, pois prende-se a uma desterritorialização constituinte da própria essência do povo judeu. « Mes racines sont en l’air dans le vide, partout et nulle part... Mes racines sont en l’air, sans identité et sans lieu » (ROBIN, 1999, pp 25-26)
Dessa forma, ao representar indiretamente a Shoah, através das novelas que compõem o volume, Régine Robin procede ao trabalho de um luto que não será nunca definitivamente realizado, à tentativa de cicatrização de uma ferida que não pode ser completamente cicatrizada. No entanto, é necessário encenar a memória dos mortos, dar a eles um lugar na escrita, testemunhar o que não pode ser dito, dada a dimensão incomensurável da catástrofe. Daí, a presença no texto robiniano de um discurso voluntariamente fragmentado que se situa entre o biográfico e o ficcional, entre a ausência e o excesso de lembranças, entre a rememoração da saga familiar e a evocação de fatos históricos.
Mas não é apenas da morte que se fala em L’immense fatigue des pierres: a vida aí também se encontra inscrita, como apelo à reconstrução, como sugestão de continuidade ou de recomeço, não só no plano individual em que a escrita desempenha um papel regenerador para personagens e autora, mas também dentro de uma ótica do coletivo, da relação entre culturas. Se nos detivermos sobre um pequeno trecho do posfácio do livro escrito em sua homenagem, Une œuvre indisciplinaire. Mémoire, texte et identité chez Régine Robin, ouviremos sua própria voz que afirma:
Temos realmente o sentimento, apesar do peso do tempo e de tudo que vivemos juntos – acontecimentos históricos e insignificantes acontecimentos do cotidiano – que nos restam ainda cidades a serem descobertas, pessoas a serem conhecidas, livros a serem lidos, filmes a serem vistos, que a história não acabou, que tudo vai recomeçar (ROBIN in Désy et al, 2007, p. 273)
A escrita robiniana, embora vinculada a um projeto de resgate das origens judaicas, de reconhecimento de um pertencimento cultural, proclama a abertura, a relação com o Outro: discute a alteridade. Porque não se trata apenas, em seu texto, de meras citações de lugares diversos – Paris, Berlim, Buenos Aires, Nova Iorque, Montreal – de um simples plurilingüismo, do simples fato de se expressar em outras línguas, mas de ser investida por elas, de ser habitada por elas, de maneira global, no plano imaginário. E, se alguma referência, algum vocábulo escapa à compreensão do leitor, isso não implica em uma perda do sentido de cada narrativa ou do livro em seu conjunto. Afinal, parece ser difícil, senão impossível a transparência absoluta na troca entre indivíduos. Ao contrário, essa preocupação de transparência que, para as sociedades ocidentais, garantiria a autenticidade das relações, consiste, na verdade, em um obstáculo à coesão verdadeira entre indivíduos e coletividades. Exercendo seu direito à “opacidade”, Robin oferece ao leitor a oportunidade de se libertar de referências habituais de leitura para penetrar e de, principalmente, se deixar penetrar por uma obra original que o conduz por caminhos pouco frequentados, não a uma compreensão totalizante dos assuntos por ela tematizados, mas, através de um trabalho do imaginário, a uma desconstrução de fronteiras.
A produção literária de Régine Robin e Jacques Poulin insere-se no contexto da literatura quebequense da atualidade e, cada uma à sua maneira, aborda a realidade heterogênea, múltipla, fragmentada da sociedade na qual foi gerada, sociedade essa em que a questão da identidade e da alteridade, em virtude mesmo das condições de sua própria constituição, é permanentemente colocada em questão.
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